SÃO PAULO - Alguns leitores me escreveram para criticar passagem de meu texto de domingo em que disse que Cristo não viu problemas éticos na escravidão. Segundo eles, a mensagem "ama ao próximo como a ti mesmo" já vale como condenação moral da escravidão. Será?
Se pinçarmos nossas frases favoritas na Bíblia e generalizarmos sua aplicação, "provaremos" o que quisermos e o seu contrário também. A boa exegese requer passagens específicas. No caso da escravidão, ela está em Lucas 12:47-48. Ali, Jesus fala sobre servos e senhores e não só deixa de condenar a escravidão como parece defender a chibata: "O servo que soube a vontade do seu senhor, e não se aprontou, nem fez conforme a sua vontade, será castigado com muitos açoites; mas o que não a soube, e fez coisas que mereciam castigo, com poucos açoites será castigado".
Outros livros do Novo Testamento são mais explícitos: "Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo" (Efésios, 6:5); "Todos os servos que estão debaixo do jugo considerem seus senhores dignos de toda honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados" (Timóteo, 6:1).
No Antigo Testamento, as passagens pró-escravidão são ainda mais abundantes e vívidas. Gosto especialmente de Êxodo 21:7 que nos autoriza a vender filhas como escravas.
E o que isso tudo nos diz? Não muito. Penso que o conjunto de trechos bíblicos só reforça a tese de minha coluna dominical de que somos prisioneiros de nosso tempo. Durante a maior parte da história, a escravidão foi vista como um fato da vida, que não comportava dilemas éticos.
É claro que isso só funciona para quem, como eu, sustenta que a moral é historicamente determinada. Os que creem que ela é eterna e que as Escrituras têm inspiração divina precisam de muita ginástica mental para conciliar o texto antigo com nossa sensibilidade moderna.
É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.