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    João Pereira Coutinho

    Brincadeiras de Carnaval

    09/02/2016 02h00

    Ainda não parei de rir: o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aceitou o pedido do Ministério Público do Estado e decidiu proibir a venda, a exposição e a divulgação de "Minha Luta", o livro de Hitler que caiu em domínio público em 2016.

    Quando li a notícia, pensei que fosse brincadeira de Carnaval. Não era. O riso continuou.

    E atingiu patamares incontroláveis com um texto de Ricardo Lísias nesta Folha, na qual o "escritor", com total ignorância sobre a prática editorial na Inglaterra, nos Estados Unidos ou até em Portugal, defendia uma versão não comercial do bicho. Em que mundo vive o Brasil?

    Vamos dizer o óbvio: a decisão da Justiça não é apenas intelectualmente aberrante; é inútil. O livro de Hitler está disponível em dezenas ou centenas de sites. Se existem interessados em ler a obra, basta ligar o laptop.

    Não que isso seja problemático —no fundo, a velha ideia de que "livros proibidos" são os mais apetecidos não funciona com "Minha Luta". Um neonazista não precisa do livro de Hitler para acreditar em imbecilidades criminosas. Até porque o livro, na sua extensa mediocridade, é de difícil leitura. Para acreditar em imbecilidades criminosas, um neonazista só precisa ser um neonazista.

    Mas quem, em juízo perfeito, teria interesse em ler "Minha Luta"?

    Agora confesso: qualquer aluno meu. "Minha Luta", tal como os textos de Robespierre ou Lênin, são leituras obrigatórias para estudantes de ciência política. Desconfio que o mesmo acontece em história.

    Digo mais: uma das melhores teses que eu supervisionei em Lisboa foi escrita por um aluno brasileiro (nem de propósito) que fez um estudo comparativo entre o pensamento utópico e revolucionário de Lênin e Hitler a partir dos seus escritos. Esse aluno é hoje um excelente cientista político, e o nome —Bruno Garschagen— encontra-se em livrarias.

    Uma tese dessas seria possível no Brasil? Melhor ainda: um brasileiro que tenha interesse em estudar o nacional-socialismo e o Terceiro Reich está proibido de usar uma das suas fontes primárias mais importantes? Não me matem de riso.

    "Minha Luta" pode ser um livro "infame". Mas ele é, antes de tudo, um documento histórico. Escrito na prisão de Landsberg, depois do "putsch" fracassada dos nazistas contra o governo da Baviera em 1923, o livro constitui o único texto "sistemático" (digamos assim) da mundividência de Hitler.

    Em primeiro lugar, ao mostrar o antissemitismo do futuro Führer: os judeus, ou os "judeus bolcheviques" (Hitler não distingue), são uma praga para o futuro da Alemanha. E por quê?

    Para responder, Hitler roubou descaradamente as ideias de Gobineau: porque são uma raça inferior, que põe em causa a grandeza da raça germânica. Se no reino animal as espécies não se misturam com outras espécies, o mesmo deverá acontecer no reino humano.

    Para exemplificar a sua "teoria científica", Hitler lembrava a superioridade dos Estados Unidos (onde os europeus não se misturaram com os indígenas) sobre a América do Sul (onde as intimidades históricas só produziram uma raça bastarda).

    Engraçado: se a Justiça brasileira deseja evitar o "neonazismo", os juízes deveriam incentivar, e nunca proibir, a leitura de "Minha Luta" pelos neonazistas do país. Lendo "Minha Luta" eles ficariam a saber que, aos olhos de Hitler, fazem parte de uma raça inferior e degenerada.

    Como é evidente, esta concepção racista teve consequências na Alemanha hitleriana. As Leis de Nuremberg, em 1935, proibiam o casamento entre arianos e judeus; a "Kristallnacht" de 1938 foi apenas o início de uma matança mais organizada do povo semita; e o Holocausto dispensa apresentações.

    Mas "Minha Luta" é igualmente importante porque ali vemos a obsessão de Hitler com a conquista de um "espaço vital" —território no leste da Europa para acomodar a grandeza do povo germânico.

    Será preciso lembrar que essa obsessão foi rigorosamente cumprida antes e depois de 1939, ano em que a Europa mergulhou novamente na guerra?

    A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é um insulto à inteligência dos brasileiros e um atestado de atraso intelectual do país.

    Aliás, para que a anedota fosse perfeita, só faltava mesmo que o tribunal decidisse multar-me por divulgar aqui o conteúdo da obra maldita.

    Estejam à vontade. Quando se atinge o cume do ridículo, perdido por cem, perdido por mil.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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