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    João Pereira Coutinho

    A ressurreição de Christopher Hitchens

    22/02/2016 02h00

    De tempos a tempos, pergunto a amigos meus, gente letrada, por que motivo eles não entram na vida política. Todos sorriem, todos devolvem a pergunta: e por que motivo eu não entro na política?

    Não respondo. Nem eles. Eu sei; eles sabem; todos sabemos o preço da lama. É preciso uma dose invulgar de loucura, ou ambição, ou ganância, para hipotecar a vida privada e entregar o corpo e a alma a um auditório selvático –do jornalismo tradicional às "redes sociais"— que fareja os recantos mais pessoais da existência como as antigas inquisições.

    Ninguém está disposto a cruzar o Rubicão, arrastando a família e os amigos para as torturas da transparência totalitária. Até porque ninguém é perfeito: em matéria de dinheiro, relações amorosas ou multas por pagar, nenhuma vida sobrevive aos fanáticos da perfeição.

    Claro que estas deserções têm um preço: se os melhores desistem da causa pública, que tipo de agente se aproxima do pote? Todos conhecemos essa gente. No fundo, é a gente que nos governa.

    Eis uma das inquietações que Christopher Hitchens (1949 - 2011) partilha com os leitores no seu primeiro livro póstumo: "And Yet...: Essays" (Simon & Schuster, 352 págs.).

    Sim, admito: já tinha saudades de Hitchens. Entre os "public intellectuals" dos últimos anos, só ele era capaz de combinar, nas doses certas, erudição, estilo e humor. Não interessa muito se concordamos ou discordamos dele. Antes disso, há uma mente brilhante que deslumbra e surpreende a cada página.

    No livro, surgem-nos textos diversos escritos para a "Vanity Fair", a "Atlantic" ou a virtual "Slate". Podem ser textos pessoais (e hilariantes) sobre as tentativas de Hitchens para "viver uma vida saudável", ou seja, sem fumo, álcool ou sedentarismo.

    Mas podem ser textos políticos com ressonância sempre atual. Exemplo: será que apoiar George W. Bush contra Saddam Hussein transformou o esquerdista Hitchens em republicano?

    A pergunta não faz sentido, avisa o próprio: ele sempre foi um "republicano" no sentido rigoroso da palavra –um feroz opositor da monarquia e do absolutismo.

    O ódio a Saddam Hussein era anterior, e superior, a qualquer maniqueísmo partidário. Tal como o seu herói George Orwell –que tem direito a destaque no livro— existe em Hitchens uma resistência instintiva a qualquer forma de opressão política.

    Por último, só Christopher Hitchens seria capaz de escrever um texto com o qual concordo e discordo ao mesmo tempo. Sobre o Natal, esse período que dura mais do que um mês e no qual existe uma espécie de imposição totalitária da alegria. Como se a humanidade inteira tivesse que viver num Estado de partido único, onde o amor e a benevolência são rigorosamente obrigatórios.

    Assino por baixo. Mas creio que Hitchens erra ao identificar o "sentimentalismo opressivo" do Natal contemporâneo com uma particular denominação religiosa.

    No Ocidente multiculturalista, há muito que o Natal deixou de ser o Natal "cristão". É um período de "férias" (ou de "festas", como se lê nos cartões) em que a dimensão cristã foi abolida para não ofender ninguém.

    Na sua cruzada ateísta contra o elemento religioso do Natal, um homem inteligente como Hitchens não estará, no fundo, fazendo um favor aos seus inimigos –a intolerância, o obscurantismo e a covardia moral?

    Que pena uma questão como essa ficar eternamente sem resposta.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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