"Cristo Parou em Éboli" (1979) é um fruto tardio do neorrealismo. Menos da vertente do cinema italiano inaugurada por Luchino Visconti e Vittorio de Sica que do neorrealismo literário, já que o filme de Francesco Rosi é baseado no livro homônimo de Carlo Levi (1902-1975) —marco daquela literatura de teor social que surgiu na Itália do fascismo.
Em cena, temos o próprio Levi, um pintor nascido em Turim e formado em medicina (mas que nunca exerceu a profissão). Depois de colaborar com revistas culturais anti-fascistas, ele caiu em desgraça e foi obrigado pelo governo de Mussolini a viver numa espécie de degredo interno: entre 1935 e 1936, Levi passou um período de confinamento numa cidade do sul, Gagliano, onde tinha liberdade de transitar, porém prestando contas às autoridades.
Divulgação |
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Cena do filme "Cristo Parou em Éboli", de 1979, de Francesco Rosi, baseado em livro de Carlo Levi |
A ação começa com Levi (Gian Maria Volonté) já velho, em seu ateliê (os belos quadros mostrados no filme de fato são dele). Sua voz em "off" explica o título: Cristo ficou em Éboli, última estação de trem para quem vai a Gagliano; ou seja, o pobre e isolado vilarejo meridional foi esquecido pelo Estado, pelos homens, por Deus.
Narrativa híbrida, ensaio com fatura romanesca, essa obra-prima literária não tem o tom dramático ou heróico dos livros neorrealistas que tratam da penúria do pós-guerra e dos "partigiani" (os resistentes ao fascismo). E a adaptação de Rosi segue essa contenção emotiva.
Para espectadores familiarizados com a miséria terceiro-mundista, o quadro não provoca estupor. A carência é menos econômica do que moral: são seres embrutecidos, isolados num mundo repetitivo e sem história, que degrada os poucos vestígios da vida institucional -como o chefe fascista que bestializa os camponeses, ou o padre alcoólatra suspeito de pedofilia.
Levi contempla esse cenário desolador com o ceticismo de um antropólogo que descobre, no sofrimento de homens e animais, o fracasso dos projetos de curar o mundo. Só lhe resta (na frase de Italo Calvino que bem se aplica ao filme) a linguagem como "instrumento de relação amorosa com o mundo, de fidelidade aos objetos de sua representação".
FILMES
CRISTO PAROU EM ÉBOLI – * * *
DIRETOR: Francesco Rosi
DISTRIBUIDORA: Cult Classic (R$ 29,90)
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A TERRA TREME – * * * *
Luchino Visconti (1948, Cinemax, R$ 44,90)
Rosi foi assistente de Visconti nessa adaptação do romance "Os Malavoglia", de Verga, sobre conflitos num povoado de pescadores sicilianos.
STROMBOLI – * * * *
Roberto Rossellini (1950, Versátil, locação)
Em outro clássico neorrealista, uma refugiada política se asila na ilha de Stromboli, onde eclode o confronto entre o arcaico e o moderno.
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LIVROS
RUA DE MÃO ÚNICA: INFÂNCIA BERLINENSE: 1900 – * * * *
Essa reunião de aforismos do filósofo alemão, morto em fuga do nazismo, aborda temas diversos como os cartazes de rua, a hiperinflação e as prostitutas — iluminando o sentido mágico e fantasmagórico da metrópole moderna (tema do monumental "Passagens"). A segunda parte traz fragmentos mais longos e memorialísticos, mas não menos enigmáticos.
AUTOR: Walter Benjamin
TRADUÇÃO: João Barrento
EDITORA: Autêntica (160 págs., R$ 34)
SOLOMBRA – * * * *
O último livro de Cecília Meireles (1901-1964) é também o mais crepuscular, uma suntuosa despedida, uma cintilação antes do ocaso:
"Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,/ a que não se recusa a esse final convite,/ em máquinas de adeus, sem tentação de volta". A aspiração ao absoluto —tônica na obra da grande poeta— faz o trabalho de luto por sua impossibilidade.
AUTOR: Cecília Meireles
EDITORA: Global (96 págs., R$ 32)
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DISCO
SHOSTAKOVICH: SYMPHONY Nº 7 "LENINGRAD" – * * *
Royal Liverpool Philharmonic Orchestra; regência de Vasily Petrenko (Naxos, R$ 36,40, importado)
Composta durante os conflitos entre a Alemanha e os exércitos soviéticos, na Segunda Guerra, essa sinfonia alterna ímpeto nacionalista e perplexidade. No primeiro movimento, um tema militar vai agregando naipes da orquestra em repetição hipnotizante, culminando numa apoteose que corresponde a um dos grandes momentos sinfônicos do compositor russo.

É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.