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    Manuel da Costa Pinto

    Filme é adaptação da obra-prima do romance neorrealista italiano

    16/02/2014 02h30

    "Cristo Parou em Éboli" (1979) é um fruto tardio do neorrealismo. Menos da vertente do cinema italiano inaugurada por Luchino Visconti e Vittorio de Sica que do neorrealismo literário, já que o filme de Francesco Rosi é baseado no livro homônimo de Carlo Levi (1902-1975) —marco daquela literatura de teor social que surgiu na Itália do fascismo.

    Em cena, temos o próprio Levi, um pintor nascido em Turim e formado em medicina (mas que nunca exerceu a profissão). Depois de colaborar com revistas culturais anti-fascistas, ele caiu em desgraça e foi obrigado pelo governo de Mussolini a viver numa espécie de degredo interno: entre 1935 e 1936, Levi passou um período de confinamento numa cidade do sul, Gagliano, onde tinha liberdade de transitar, porém prestando contas às autoridades.

    Divulgação
    Cena do filme "Cristo Parou em Éboli", de 1979, de Francesco Rosi, baseado em livro de Carlo Levi
    Cena do filme "Cristo Parou em Éboli", de 1979, de Francesco Rosi, baseado em livro de Carlo Levi

    A ação começa com Levi (Gian Maria Volonté) já velho, em seu ateliê (os belos quadros mostrados no filme de fato são dele). Sua voz em "off" explica o título: Cristo ficou em Éboli, última estação de trem para quem vai a Gagliano; ou seja, o pobre e isolado vilarejo meridional foi esquecido pelo Estado, pelos homens, por Deus.

    Narrativa híbrida, ensaio com fatura romanesca, essa obra-prima literária não tem o tom dramático ou heróico dos livros neorrealistas que tratam da penúria do pós-guerra e dos "partigiani" (os resistentes ao fascismo). E a adaptação de Rosi segue essa contenção emotiva.

    Para espectadores familiarizados com a miséria terceiro-mundista, o quadro não provoca estupor. A carência é menos econômica do que moral: são seres embrutecidos, isolados num mundo repetitivo e sem história, que degrada os poucos vestígios da vida institucional -como o chefe fascista que bestializa os camponeses, ou o padre alcoólatra suspeito de pedofilia.

    Levi contempla esse cenário desolador com o ceticismo de um antropólogo que descobre, no sofrimento de homens e animais, o fracasso dos projetos de curar o mundo. Só lhe resta (na frase de Italo Calvino que bem se aplica ao filme) a linguagem como "instrumento de relação amorosa com o mundo, de fidelidade aos objetos de sua representação".

    FILMES

    CRISTO PAROU EM ÉBOLI – * * *
    DIRETOR: Francesco Rosi
    DISTRIBUIDORA: Cult Classic (R$ 29,90)

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    A TERRA TREME – * * * *
    Luchino Visconti (1948, Cinemax, R$ 44,90)
    Rosi foi assistente de Visconti nessa adaptação do romance "Os Malavoglia", de Verga, sobre conflitos num povoado de pescadores sicilianos.

    STROMBOLI – * * * *
    Roberto Rossellini (1950, Versátil, locação)
    Em outro clássico neorrealista, uma refugiada política se asila na ilha de Stromboli, onde eclode o confronto entre o arcaico e o moderno.

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    LIVROS

    RUA DE MÃO ÚNICA: INFÂNCIA BERLINENSE: 1900 – * * * *
    Essa reunião de aforismos do filósofo alemão, morto em fuga do nazismo, aborda temas diversos como os cartazes de rua, a hiperinflação e as prostitutas — iluminando o sentido mágico e fantasmagórico da metrópole moderna (tema do monumental "Passagens"). A segunda parte traz fragmentos mais longos e memorialísticos, mas não menos enigmáticos.
    AUTOR: Walter Benjamin
    TRADUÇÃO: João Barrento
    EDITORA: Autêntica (160 págs., R$ 34)

    SOLOMBRA – * * * *
    O último livro de Cecília Meireles (1901-1964) é também o mais crepuscular, uma suntuosa despedida, uma cintilação antes do ocaso:
    "Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,/ a que não se recusa a esse final convite,/ em máquinas de adeus, sem tentação de volta". A aspiração ao absoluto —tônica na obra da grande poeta— faz o trabalho de luto por sua impossibilidade.
    AUTOR: Cecília Meireles
    EDITORA: Global (96 págs., R$ 32)

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    DISCO

    SHOSTAKOVICH: SYMPHONY Nº 7 "LENINGRAD" – * * *
    Royal Liverpool Philharmonic Orchestra; regência de Vasily Petrenko (Naxos, R$ 36,40, importado)
    Composta durante os conflitos entre a Alemanha e os exércitos soviéticos, na Segunda Guerra, essa sinfonia alterna ímpeto nacionalista e perplexidade. No primeiro movimento, um tema militar vai agregando naipes da orquestra em repetição hipnotizante, culminando numa apoteose que corresponde a um dos grandes momentos sinfônicos do compositor russo.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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