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    Marcelo Leite

    A inutilidade do prêmio Nobel, ou por que o Brasil não precisa de um

    10/10/2016 02h00

    Guillermo Legaria/AFP Photo
    Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia, que venceu nesta sexta-feira (7) o prêmio Nobel da Paz
    Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia, que venceu Prêmio Nobel da Paz

    Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia, ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mesmo depois de ter fracassado no plebiscito que insistiu em fazer para aprovar o acordo de pacificação que negociou durante quatro anos em Cuba. Bola na trave.

    Talvez a láurea ajude a desencalacrar o acordo derrotado, mas é difícil saber. Veja o caso do IPCC: ganhou o mesmo Nobel em 2007, e um acordo para conter a mudança do clima demorou oito anos para sair (Paris, 2015), ainda assim vago e insuficiente.

    Fato é que a Colômbia pode agora vangloriar-se com dois Nobel: o de Santos e o de Gabriel García Márquez (Literatura, 1982). A Argentina tem cinco; o México, três; Chile e Guatemala, dois; Brasil, Costa Rica e Venezuela, um.

    Não há engano. Pelo critério de local de nascimento, o Brasil tem, sim, um nobelista: Peter Medawar (1915-1987; Nobel em Medicina ou Fisiologia, 1960), que nasceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

    Verdade que ele deixou o país pelo Reino Unido ainda menino. Depois renunciou à cidadania brasileira para não ter de prestar serviço militar. Mas sirva de consolo, vá lá.

    O Brasil tem cinco Copas do Mundo de futebol, mas também tem o 7 a 1 –em casa. Tem uma Medalha Fields de matemática (Artur Avila, 2014), mas não tem nenhum Nobel de verdade. Nem Oscar. São várias pedras na chuteira da pátria.

    A verdade é que o Nobel –ao menos em suas versões científicas– não serve para grande coisa, além de rechear o bolso e inflar o ego de quem ganha. No caso dos países, ele é a consequência, e não causa de nada.

    Só leva o prêmio a nação que não tem medo de investir em pesquisas que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), talvez qualificasse como inúteis. Ou que não faz força para reter seus talentos e permite que eles se bandeiem para outras praças para fazer pesquisa com recursos adequados.

    "Eu acho uma coisa muito ruim quando agências de governo começam a dizer... não devemos nunca dizer coisas como 'para que serve isso?' Porque todas as grandes descobertas de coisas realmente úteis não acontecem porque alguém se senta e pensa 'quero descobrir algo realmente útil'. Elas ocorrem porque alguém descobre algo interessante e depois acontece de isso ser tremendamente útil."

    A reflexão acima está numa entrevista que Duncan Haldane, ganhador do Nobel em Física deste ano com David Thouless e Michael Kosterlitz, deu à página da fundação sueca (em inglês).

    Ele foram agraciados por suas descobertas teóricas de transições topológicas de fase e fases topológicas da matéria. Registre-se que o físico brasileiro Jairo Rolim Lopes de Almeida, aposentado da UFPE, foi orientado no doutorado pelos dois últimos depois de concluir mestrado com Sergio Machado Rezende (ex-ministro de Ciência e Tecnologia).

    Qualquer um percebe, deixando a topologia de lado, que a palavra chave aí é "teóricas". São descobertas no plano do conhecimento puro, que podem ou não encontrar aplicação um dia (e é quase certo que encontrarão), mas isso pouco importa para que sejam reconhecidas hoje.

    Os Nobel em Química e em Medicina ou Fisiologia deste ano também são ilustrativos. No primeiro caso premiaram-se os trabalhos de Jean-Pierre Sauvage, Fraser Stoddart e Bernard Feringa com motores moleculares; no segundo, o contemplado foi Yoshinori Ohsumi, por ter inaugurado sozinho o campo de estudos da autofagia celular (reciclagem), um processo biológico fundamental.

    "Às vezes nos sentimos como crianças brincando com essas moléculas e vendo quais são as possibilidades de construção", afirmou Feringa numa entrevista.

    As maquininhas que eles inventaram ainda não servem para nada, rigorosamente. Mas podem ser a chave para abrir a porta de um novo salto de miniaturização de dispositivos de memória e computação, lançando-os da escala de bilhões de átomos para algumas centenas ou milhares.

    Ohsumi tampouco deu ao mundo algo de imediatamente útil. Limitou-se a descobrir e descrever 15 genes que controlam ou participam da autofagia. Só que o campo de pesquisa aberto por ele fervilha com 5.000 artigos científicos publicados por ano, e parece destinado a produzir avanços na compreensão e tratamento de doenças como alzheimer e parkinson, quem sabe até tumores.

    "Ainda temos tantas questões", disse Ohsumi em sua entrevista. "Mesmo agora temos mais perguntas do que quando eu comecei."

    Eis aí uma atitude difícil de encontrar entre brasileiros. Aqui temos por hábito acreditar que já se nasce gênio (incompreendido, talvez), ou esperto (com boa chance de se dar bem). É como se não precisássemos de Nobel algum, porque não há Nobel para as habilidades que cultivamos (nem Oscar para o cinema raso que produzimos), sem muito esforço.

    Não precisamos de um Medawar nem de um Ohsumi, de um Feringa, de um Haldane. Temos Lula e Dallagnol, Milionário e Zé Rico, Dilma e Marta, Neymar e Dunga, Sarney e Temer, Safadão e Paulinho, Marina e Palmirinha, Russomanno e Datena –e por aí vai.

    Estamos bem servidos.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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