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    Marcelo Leite

    Acordo de Paris entra em vigor, mas brasileiros não estão nem aí

    04/11/2016 09h53

    Nesta quinta-feira (3), mais um temporal se abateu sobre São Paulo. A cidade entrou em estado de atenção, o túnel do Anhangabaú inundou, a rodovia Anchieta foi interditada por alagamento.

    No fim de semana anterior, o litoral sul do Estado se viu castigado por uma ressaca incomum. Em Mongaguá, as ondas batiam na mureta da praia e subiam 3 metros; postes caíram, a calçada cedeu.

    Em Santos, no sábado (29), o mar invadiu a avenida Bartolomeu de Gusmão, no Embaré. Na Ponta da Praia, ruíram trechos da amurada na avenida Almirante Saldanha da Gama.

    A ressaca foi causada por um ciclone extratropical, nome dado a grandes bancos de nuvens de chuva em forma de espiral com ventos na periferia muito mais fortes que no centro. No Rio de Janeiro, o ciclone produziu ondas de 4 metros, inundou barracas da orla e encheu de areia a avenida Delfim Moreira, no Leblon.

    O ciclone também golpeou Santa Catarina com a habitual sequência de ventos, aguaceiros e ressaca. E isso depois de o litoral catarinense já ter sofrido temporais devastadores nas duas semanas anteriores.

    A meteorologia está na boca do povo, mas sua ligação com a mudança do clima provocada pelo homem, não. Boa parte da culpa por essa indiferença cabe a nós, jornalistas, acomodados com a sabedoria convencional de que é impossível atribuir eventos climáticos particulares ao aquecimento global.

    Isso era o que diziam os pesquisadores do clima dez anos atrás. Mas a ciência não ficou parada e já consegue, em muitos casos, estabelecer o nexo entre uma coisa e outra, no que se chama de "estudos de atribuição". Há um bom resumo desses avanços num boletim recente da OMS (Organização Meteorológica Mundial).

    Ali se aprende que esses estudos empregam dois tipos de simulações de computador para a região afetada, um que leva em conta só fatores naturais e outro em que pesa também a influência humana sobre o clima. Comparando quanto as simulações se aproximam ou divergem do ocorrido, dá para estimar a probabilidade de esses eventos extremos serem artefatos criados pelo homem.

    Debruçados sobre a onda de calor que matou 35 mil pessoas na Europa em 2003, pesquisadores concluíram que o aquecimento global pelo menos dobrou, e pode ter até quadruplicado, o risco desse tipo de desastre. Outro trabalho considerou que a estiagem e as temperaturas recordes registradas na Austrália em 2013 seriam virtualmente impossíveis sem a mudança climática.

    Já uma investigação sobre a seca no Sudeste brasileiro em 2014-15, que esvaziou o sistema Cantareira e forçou o racionamento de água na Grande São Paulo, chegou à conclusão de que o elo com as loucuras do clima é tênue. Tudo indica que se trata mesmo de negligência na ampliação do abastecimento para fazer frente ao crescimento populacional e à alteração dos padrões de consumo.

    No geral, a ciência da atribuição tem mais facilidade para vincular ondas de calor em grandes áreas com o aquecimento global do que consegue fazer com as tempestades (como as que ora se abatem sobre o Sudeste). Não será surpresa se a incrível sucessão de cinco anos de seca no Nordeste, que reduziu a represa de Sobradinho ao volume morto, acabar atribuída à mudança do clima, e não só ao fenômeno El Niño.

    De todo modo, é crucial explicar, para que as pessoas comecem a pensar mais seriamente sobre esse novo normal, o nexo entre o que estamos fazendo como o clima e os temporais. O mecanismo, afinal, é quase intuitivo.

    Uma atmosfera mais quente retém mais vapor d'água. Mais evaporação significa nuvens mais poderosas, que por sua vez originam tempestades muito mais caudalosas, mesmo que breves. Daí as enchentes. Ciclones também têm muito a ver com a temperatura do mar, e o Atlântico Sul está em aquecimento acentuado.

    É como se as chamadas chuvas de verão se tornassem mais frequentes e passassem a cair também fora de época. Nada que os paulistas, os fluminenses e os catarinas já não estejam sentindo na pele, há anos, mas que por pura superstição preferem atribuir a São Pedro.

    Na próxima segunda (7) começa em Marrakech a 22ª Conferência Mundial do Clima (COP22), que vai debater meios de pôr em prática a meta do Acordo de Paris de impedir que o aquecimento global ultrapasse 2°C (e de preferência fique em 1,5°C). Poucos brasileiros estarão prestando atenção, embora conheçam de perto os eventos climáticos extremos cuja proliferação o tratado pretende evitar.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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