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    Marcelo Leite

    Zika, febre amarela e desprezo pela verdade ameaçam o Brasil

    22/01/2017 02h00

    Alexandre Rezende/Folhapress
    Moradores de Piedade de Caratinga (MG) aguardam vacinação contra a febre amarela
    Moradores de Piedade de Caratinga (MG) aguardam vacinação contra a febre amarela

    O Brasil não é para amadores, já disseram. Cabe como uma luva para o país a expressão usada pelo escritor Martin Walser para qualificar a Alemanha pós-nazismo, ainda partida em duas: uma pátria difícil.

    A morte do ministro Teori Zavascki, relator do Supremo Tribunal Federal da Lava Jato, disseminou um abatimento compreensível pelo território nacional. Mais que o juiz Sergio Moro, ele de certo modo simbolizava a busca laboriosa e serena para estabelecer a verdade, numa terra que tem tradição de voltar as costas para ela –a começar pela pesquisa científica.

    Não se trata de dizer que os autos dos processos ou as publicações científicas sejam capazes de produzir verdades definitivas, indiscutíveis.

    Tanto o Judiciário como a ciência se limitam a produzir, quando funcionam direito, a melhor conclusão ou explicação possível sobre os fatos. Algo similar ao que move o trabalho jornalístico, de resto.

    No Brasil, como nos Estados Unidos do recém-empossado Donald Trump, chegaram os tempos da pós-verdade. Perde valor o que se baseia em fatos e evidências e ganha audiência –cliques nas redes sociais– qualquer coisa que confirme as convicções prévias do interlocutor, falsa ou verdadeira.

    Aqui como lá, a esfera pública se rende ao prisma ideológico que degrada qualquer tipo de luz em duas cores primárias, o vermelho-petralha e o azul-tucano. Fatos e dados que se danem.

    O governador Geraldo Alckmin (PSDB), por exemplo, deve estar convencido de que seja coisa de petistas a defesa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). É uma das instituições brasileiras que mais se aproxima do ideal de transparência e mérito que norteia a atividade científica.

    Pois a Assembleia Legislativa paulista garfou R$ 120 milhões do orçamento da Fapesp para 2017. E é difícil crer que a jogada não tenha sido combinada com Alckmin.

    Viola-se abertamente o preceito da Constituição estadual que manda destinar 1% da arrecadação paulista à fundação. Mas o governador manda dizer que não teve nada a ver com isso e que, contra todas as evidências, o valor definido pela Assembleia respeita aquele percentual.

    A Fapesp figura entre os setores da administração pública que mais rapidamente reagiram à emergência da zika. Destinou fundos emergenciais para estudos sobre vírus, mosquitos, vacinas e exames laboratoriais.

    Lançou-se sem pestanejar na produção de dados e conhecimento para enfrentar a doença, da mesma maneira que já fez com o genoma humano, os biocombustíveis, a biodiversidade e a mudança climática.

    Enquanto isso, o governo federal se lambuzava nas promessas descumpridas. Iria obter uma vacina contra a zika dentro de um ano, em parceria com os EUA. Distribuiria repelentes para mulheres grávidas pobres. Providenciaria transporte para o tratamento de bebês microcéfalos no interior do Nordeste.

    Nada. Espera-se agora uma nova saraivada de planos e compromissos vazios com o surto de febre amarela em Minas Gerais e no Espírito Santo.

    Teori, com seu jeitão tranquilo, parecia o oposto desse pessoal: trabalhava quieto por alguma verdade e, nessa medida, pelo bem do país. Há outros como ele no aparelho de Estado, mas poucos. Sua morte torna o Brasil um pouco mais difícil.

    Tudo sobre: o mosquito

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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