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    Marcelo Leite

    Vivemos na era do poder de tornar o mundo inabitável

    22/05/2017 08h29

    Jennifer Lavers/Universidade da Tasmânia
    A ilha fica a cerca de 5,5 mil km da costa do Chile
    A ilha de Henderson, a cerca de 5,5 mil km da costa do Chile

    A gente aqui achando que o grampo do Joesley com Temer é a coisa mais importante do mundo, e enquanto isso o planeta vai se acabando. Eis aqui três notícias que eu preferiria não ter lido, porque são preocupantes, e não nojentas:

    1. Cofre inundado - O governo da Noruega possui uma espécie de Fortaleza da Solidão (aquela do Super-Homem) no Ártico para preservar quase 1 milhão de sementes de plantas importantes para a humanidade.

    A megacaverna foi escavada no terreno congelado da ilha de Spitsbergen para garantir por séculos o armazenamento seguro desse tesouro agrícola. Após meros nove anos de existência, contudo, o cofre-forte sofreu uma inundação, segundo reportagem do jornal britânico "The Guardian".

    O aquecimento global exerce seu efeito mais intenso na região ártica, onde as temperaturas estão muito acima da média, mesmo durante o inverno. Andou chovendo em Spitsbergen quando deveria estar nevando, e a água inesperada invadiu o túnel de entrada do cofre.

    Por sorte o líquido congelou antes de chegar ao cofre propriamente dito, e as amostras de sementes não foram afetadas. Mas o que vai acontecer com elas se a mudança do clima prosseguir na marcha atual? A ideia era justamente proteger de eventos climáticos extremos cultivos cruciais para a segurança alimentar.

    2. Cocaína e desmatamento - Outro dia escrevi que o aumento do tráfico de cocaína e a consequente queda nos preços parece ter contribuído para a redução da criminalidade em Nova York. Agora fico sabendo de outro efeito, com o sinal trocado: avanço do desmatamento na América Central.

    Não é chute, mas pesquisa publicada no periódico científico "Environmental Research Letters" : pelo menos em Honduras, há correlação forte entre aumento de apreensões da droga e corte raso de floresta completamente fora do padrão usual de derrubada. Na Nicarágua e na Guatemala a correspondência se mostra menos evidente.

    O desmatamento não se faz ali para plantar coca, mas como resultado da compra de terras para lavar dinheiro. Os pesquisadores estimam que a atividade seja responsável por 15% a 30% da área devastada a cada ano, contribuição que sobe para 30-60% no caso da destruição de terras protegidas por seu alto valor biológico.

    No Brasil, o vetor principal de devastação na Amazônia decorre da associação entre grileiros, madeireiros ilegais e pecuaristas. Mas o PCC já se estabelece por lá, como se viu nas guerras entre facções nos presídios do Norte e do Nordeste.

    Só falta agora esses caras começarem a comprar terras por lá e fomentar o desmatamento, cujas taxas já estão em alta por ação de outros bandidos, que aliás não faltam por lá.

    3. Ilha de plástico - Imagine uma praia com 671 pedaços de plástico por metro quadrado, e isso considerando só os fragmentos maiores que 2 mm presentes na areia até 10 cm de profundidade.

    Agora considere o inacreditável: a ilha não está perto de Cubatão (SP) ou na baía da Guanabara, nem na China ou na Índia, mas no sul do Pacífico –a 5.000 km do local povoado mais próximo. O lugar infeliz se chama Henderson e fica nas Ilhas Pitcairn, um território britânico.

    Desabitada e patrimônio natural da Unesco, Henderson poderia ser considerada paradisíaca –não fosse tanto plástico. E parte da culpa cabe aos sul-americanos, indica artigo da Universidade da Tasmânia (Austrália) e da Sociedade Real para Proteção de Pássaros (Reino Unido) na revista científica "PNAS".

    Henderson deu azar de se achar no foco do giro do Pacífico Sul, um gigantesco sistema de correntes marítimas entre a linha do Equador, a Austrália, a Antártida e a América do Sul.

    A região é considerada o maior deserto oceânico do mundo, porque tem pouca vida marinha. O que não falta ali é plástico, lançado no mar por países da América do Sul e por navios de passagem. Muito desse lixo termina em Henderson.

    A mensagem dessas três notícia inquietantes: nada do que fazemos e consumimos –o combustível fóssil em nossos carros, a cocaína que americanos e brasileiros usam ou o plástico lançado na rua ou no rio– tem efeito apenas local. Há tanta gente no mundo, hoje, que a presença humana na Terra se tornou uma força cataclísmica.

    Sim, é verdade, cada um de nós vive no Brasil, e não no planeta inteiro. Ou melhor, mora em São Paulo, em Brasília, no Rio –no meio de uma crise política, econômica e moral sem precedentes.

    Mas não é menos verdade que habitamos o Antropoceno, a era geológica caracterizada pela consciência de que temos o poder de tornar o mundo inabitável. Como Henderson.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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