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    Por quê? Economês em bom português

    Sucesso e fracasso são hereditários?

    07/03/2017 05h00

    Paulo Giandália/Folhapress - Bruno Poletti/Folhapress
    Roberto Marinho, Roberto Setubal, Joao Doria, Eduardo Suplicy, Gregorio Duvivier (esq. p/ dir.)
    Roberto Marinho, Roberto Setubal, Joao Doria, Eduardo Suplicy, Gregorio Duvivier (esq. p/ dir.)

    Ninguém sabe ao certo os detalhes do ataque à fortaleza portuguesa da Aguada, localizada no estado de Goa, na atual Índia, em meados da década de 1630.

    Usando a imaginação, podemos pensar em atacantes árabes com turbantes coloridos, sedentos por sangue português, portando punhais com inscrições do Corão em suas lâminas afiadíssimas. Como vale tudo quando fechamos os olhos, alguns até usavam camisetas pretas do Exército Islâmico, tal qual as que podemos encontrar nos camelôs do centro de São Paulo. Dentro da fortaleza, resistindo heroicamente ao ataque, algumas dezenas de lusos, saudosos da terrinha, com barbas compridas e piolhentas, desidratados sob o sol inclemente do sul da Índia. Depois de uma semana sitiados, sem mais chumbo para seus mosquetes, atiravam caroços de azeitona e lascas dos ossos dos últimos leitões da guarnição, em um estratagema desesperado. A cada inimigo abatido, dançavam o vira e gritavam: "Casaca! Casaca! A turma é boa, é mesmo da fuzarca!".

    A bravura não foi em vão. A fortaleza da Aguada não caiu. Os portugueses mantiveram controle de seus territórios na Índia até a segunda metade do século 20. A fortaleza da Aguada existe até hoje, agora como ponto turístico e parte de um hotel 5 estrelas em Goa. Um dos oficiais que defenderam a fortaleza do ataque, Antônio Raposo da Silveira, subiu às boas graças da Coroa portuguesa, que o premiou com o título de Cavaleiro de São Tiago em 1641 e a posição de juiz de órfãos na vila de São Paulo "por duas vidas".

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    Quem nunca ouviu que a tradição dos cartórios é uma herança portuguesa? Precisamos entender por que o Estado português concedia privilégios como cartórios e monopólios. A Coroa portuguesa não tinha fôlego para premiar financeiramente seus súditos mais leais, e os privilégios, cartórios e monopólios, muitas vezes vitalícios ou hereditários, eram os meios disponíveis para premiar quem a servia.

    A posição de juiz de órfãos conferia poder a seu mandatário. Cabia ao juiz de órfãos dispor sobre as propriedades e direitos dos muitos órfãos, que eram emancipados apenas aos 25 anos. Um juiz de órfãos que seguisse altos ditames morais era um cidadão respeitado, influente e sua participação seria bem-vinda nos mais diversos empreendimentos. Já um juiz de órfãos corrupto poderia vender facilidades, quem sabe até expropriar aqueles a quem deveria proteger, por exemplo, endossando contratos desiguais entre órfãos indefesos e seus comparsas.

    A lealdade de Antônio Raposo à Coroa lhe rendeu uma sinecura por duas vidas. Quando morreu, deixou à filha mais velha, Ana Maria, o cargo de juiz de órfãos como um dote para seu futuro marido. Com um dote tão valioso, não é surpresa que Ana Maria tenha se casado bem, com Salvador, irmão de Matias Cardoso de Almeida, um dos mais bem-sucedidos bandeirantes de seu tempo, braço direito de Fernão Dias, o Caçador de Esmeraldas.

    A partir dessa vantagem inicial, conseguida por mérito, a boa fortuna iluminou o caminho dos descendentes de Antônio Raposo. Sua neta, Isabel, casou-se com um dos Camargos, uma família tão influente na política colonial paulista que seus correligionários eram chamados o Partido dos Camargos. Sua bisneta casou-se com o primeiro capitão-mor de Atibaia, e teve entre seus filhos e netos o segundo e terceiro capitão-mor daquela vila, que foi dominada politicamente pela mesma família por quase cem anos.

    Quando o café se espalhou pelo oeste paulista, vários dos maiores plantadores, empresários e senhores de escravos vinham de Atibaia, e eram descendentes das três gerações de capitães-mores que eram netos de Antônio Raposo.

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    O que têm em comum o historiador marxista Caio Prado Júnior, os jornalistas Roberto Marinho e Júlio Mesquita, o banqueiro Roberto Setúbal, o prefeito de São Paulo, João Doria, o vereador Eduardo Matarazzo Suplicy e o comediante Gregorio Duvivier?

    Todos chegaram a posições de destaque em suas profissões devido ao trabalho duro, talento e contribuições louváveis, que devem ser reconhecidas mesmo que não concordemos inteiramente com suas posições políticas. Cada um deles descende daquele português que um dia arriscou a vida para defender uma fortaleza na Índia, e cuja bravura lhe rendeu uma sinecura em uma vila no além-mar, onde garoava sem parar.

    Os cartórios e privilégios de cargo cumpriram um papel importante ao premiar súditos leais da Coroa portuguesa. Como consequência, algumas famílias como a de Antônio Raposo da Silveira tiveram uma vantagem inicial quando chegaram ao Brasil.

    Fazendo uma conta de guardanapo, estimamos cerca de 50 mil descendentes vivos de Antônio Raposo mundo afora. Alguns de seus descendentes se tornaram remediados ou até pobres com o passar das gerações. Mas uma parcela significativa conseguiu se manter na camada superior da sociedade brasileira por quase quatro séculos!

    Há várias explicações para esse fenômeno e todas são relevantes: a vantagem inicial conferida pelo privilégio conferido a Antônio Raposo da Silveira; a alta estratificação social no Brasil colonial e escravista; o padrão de casamento entre iguais, isto é, entre noivos e noivas da mesma classe social; as barreiras à entrada na elite e aos privilégios de classe; e a transmissão de características favoráveis de uma geração para outra, como a cultura, educação, atitudes com relação ao trabalho e atributos físicos e intelectuais.

    Para o pesquisador de história e economia, é desafiador quantificar a importância de cada fator, e conversas sobre os fatores determinantes do sucesso de famílias frequentemente se tornam embates ideológicos.

    Entretanto, estudos mostram que pessoas de sucesso em diferentes sociedades têm em comum a crença de que podem melhorar de vida por seus méritos e esforço. A crença de que o sucesso depende principalmente da sorte ou do berço desencoraja o esforço e alimenta o fracasso. Ainda que reconheçamos que a sorte tem alguma importância, é verdade que nem todos que tentam conseguem, mas todos que não tentam não conseguem. Às vezes nossos vizinhos nascem com uma vantagem inicial. Para alcançá-los, precisamos fazer mais esforço que eles. No fim das contas, somos os autores de nossa própria história.

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