Como mensagens em uma garrafa lançada ao mar, Bettina Bopp, 51, já escreveu uma centena de posts para o irmão Itamar, 53, que há mais de uma década é náufrago nas águas profundas de um coma.
Desde 2014, a professora paulistana assina o blog Pra Quando Você Acordar, um diário virtual que tenta ocupar a ausência imposta por um infarto, seguido de parada cardíaca, que fez o vendedor aos 41 anos cair em um "sono persistente" em setembro de 2005.
Escrever sobre a rotina e os sentimentos que gostaria de compartilhar com Ita, como ele é chamado pelos parentes, é uma forma de Bettina "organizar o caos".
Itamar mora com a mãe e o irmão caçula na casa da família em São Paulo desde 2006, graças a uma estrutura hospitalar montada na residência.
"Para os médicos, ele pode acordar amanhã ou nunca mais", escreve Bettina, na apresentação da página na internet. "O cérebro é desconhecido."
O coma do irmão despertou em Bettina um mix de sentimentos, como fé, esperança e raiva. "O tempo me mostrou que abrir a ferida também pode curá-la."
Uma cura que passa pela palavra, em posts tocantes, nos quais a dor da saudade se mistura à esperança de que acabe o "sequestro da vida" do irmão querido.
Bettina tenta acordar do pesadelo e segue acreditando, verbo que sempre abre os posts. "Você não vai acreditar", começa ela a cada diálogo epistolar com o irmão ausente.
É a deixa para contar a Itamar que agora ela tinha um gato, motivação do primeiro texto postado em 16 de fevereiro de 2014, oito anos depois do infarto. Aquele primeiro diálogo de mão única termina com um "Take your time, Ita. E fique em paz".
Nesta atualização da vida cotidiana para o irmão preso a um leito e sem consciência do que acontece ao seu redor, o diário virtual vai descortinando perdas e ganhos ao longo do caminho.
Um inventário que mexe com emoções profundas, como no post "Almas com Perfume de Jasmim", de 26 fevereiro de 2014.
UM DIA COMUM
"Você não vai acreditar, mas você morreria numa sexta-feira de setembro, oito anos atrás, no final da tarde. Era um dia comum. Comum demais pra morrer. Eu pendurava fotos antigas na parede da minha casa um pouco antes do telefone tocar.
E então foi assim. Você não morreu, está por aqui, mas ainda não é você. Suas mãos mudaram, sabe, o formato dos dedos mudou. Me dei conta de que a gente é do jeito que é pelas coisas que a gente toca e pelo jeito que a gente toca em cada uma delas. Ficaram mais longos e finos como dedos de outro alguém que não é você...
Não ter respostas tem sido difícil, em uns dias mais do que noutros. A Marta, filha da Laura, escreveu para uma peça uma frase muito, muito bonita: 'O tempo se encarrega de botar as nossas dores em prateleiras cada vez mais altas, mas elas sempre estarão conosco'.
Lindo isso, né? Tem tempos que a caixa fica fechada, mas às vezes ela despenca na minha cabeça.
Você fugiu do quê? Por quê? O que estava tão pesado pra você e por que eu não pude te ajudar?
Tive raiva. Como alguém continuava comendo feijoada num sábado à tarde na Vila Madalena e você não?
Não falei pra irmãos que estavam brigados, separados, que não valia a pena. Que a vida é esquisita e, quando você menos espera, leva alguém embora.
Fico lembrando da nossa última conversa no telefone, quatro dias antes. A gente falou sobre um iPod de presente de aniversário pra Bruna e não sobre a possibilidade de eu nunca mais ouvir sua voz.
E, agora, onde você está?"
MORTOS E FERIDOS
Nessa montanha russa do viver, o coma deixou o "tio Ita" ausente do nascimento de dois dos seis sobrinhos. O primogênito dos Bopp também não sepultou o pai ou pranteou a ex-namorada que morreu de câncer.
"Você ficou pra tio, Ita, e de seis sobrinhos. Todos tão diferentes e todos tão iguais."
"Nesse tempo, o Rodrigo, o Ita-avô, o Mario Sergio, a vó Silvinha, o pai e a vó Gilda, nessa ordem, foram embora. E a Isabella, o Fabinho e o Derek, nessa ordem, chegaram."
"Nesse tempo, eu me separei, o Fabio casou e a nossa casa foi assaltada."
"Você não vai acreditar, não vai gostar e não vai saber o porquê, mas a Kaú foi embora esta semana, depois de uma luta dura contra uma doença. E nem você nem ninguém vai entender esse mistério. Vocês namoraram, mas eram tão amigos que o namoro não coube naquela relação. Ainda adolescentes, fizeram um pacto: se estivessem solteiros até os 40, então casariam. Ela casou um pouco antes."
FUTEBOL E INTERNET
O blog é o espaço também para atualizar o irmão das manchetes dos jornais, de fatos da história que o coma não lhe permitiu vivenciar, como o time do coração, o Palmeiras, ter sido campeão da Copa Libertadores e depois ter caído para a segunda divisão.
Fica registrado no blog também o fiasco da Seleção Brasileira no 7 a 1 para a Alemanha para o brasileiro que não vestiu a camiseta de torcedor nas três últimas Copas do Mundo.
Há espaço para falar de cinema "você não vai acreditar mas Leonardo di Caprio é um bom ator", ao contar de mais uma indicação do astro de "Titanic" ao Oscar. E também descrever novidades, como a reforma ortográfica e a revolução tecnológica.
"Você não vai acreditar, mas se acordar hoje você já não sabe mais soletrar autorretrato, que agora se escreve assim, junto. Isso porque, desde 2009, existe uma nova ortografia."
"Quando você acordar, vai ter de dar conta de um novo vocabulário extenso: iPhone, iPad, pendrive, touchscreen, Blu-ray, Wi-Fi."
"E também se acostumar ao fato de que celular agora é esperto. Com ele você tira foto, filma, manda mensagem, lê jornais, joga, ouve música, vê vídeos e até fala com alguém no telefone."
"NOPE, acho que você não usaria mesmo o Tinder. Pra você, o interesse seria em apenas um botão: só LOVE."
FÉ E CIÊNCIA
Pra Quando Você Acordar é também um diário da luta pelo restabelecimento de Itamar. Bettina lembra em "A Fé Não Costuma falhar" de todas as pajelanças, médicos, especialistas, gurus e guias espirituais que tentaram em vão tirar seu irmão do mundo à parte em que está mergulhado.
"Ita faz fisioterapia, conta com enfermeiro e fonoaudiólogo e se alimenta por sonda. Respira autonomamente, mas vive preso no próprio corpo", explica Bettina. "Ele nunca teve uma melhora significativa. Em alguns momentos, parece mais presente. Abre e fecha os olhos, mas não sabemos se ele tem consciência."
Ela prefere achar que ele não tem entendimento nenhum. "Nós passamos por todas as fases do luto. De ter fé, de raiva. Cada um reagiu de uma maneira."
Em um post, Bettina divaga sobre a frieza do diagnóstico na boca de semideuses, os neurologistas.
"Um ano depois que você dormiu, um neurologista indicado por uma amiga sua foi te fazer uma visita. Ele era bem cuidadoso com as palavras e tinha humildade. Porque, diferente de outros que cuidaram de você, a soberba e a frieza pareciam sinônimos de neurologista.
O pedaço deles é o cérebro. E o cérebro é o desconhecido. E o desconhecido é Deus. Logo, eles querem dar conta de Deus. Perdeu, playboy.
Mas voltando ao neurologista cuidadoso e humilde... Foi delicado e dizia que não sabia tudo, mas tudo o que falou não era o que eu queria ouvir.
Queria ouvir ele dizendo que você acordaria de uma hora pra outra, numa tarde de outono, absolutamente igual... Queria ouvir ele dizendo que a memória estava preservada e que você seria de novo você.
Quando ele pediu que a família formasse um círculo e desse as mãos, estranhei. Então, ele disse que formávamos uma corrente muito forte. E que dali pra frente, você seria um elo diferente e a corrente precisava continuar firme e unida pra cuidar de você."
ASTROS E CABALA
O blog também serve de desabafos, como em "Consta nos Astros, nos Signos, nos Búzios", no qual Bettina questiona a astróloga Barbara Abramo, ao revisitar o horóscopo do libriano Itamar no dia fatídico.
Para os librianos, segundo os astros, "você cresce em prestígio, consegue arregimentar grupos e apoio para empreendimentos grandes". Que leitura é essa, Bárbara? Nesse dia o Itamar entrou em coma!
Após um curso de Cabala, que ela fez uma nova interpretação do que os astros queriam dizer.
"Você cresce em prestígio, consegue arregimentar grupos...". Você encheu aquele hospital durante os quatro meses em que esteve ali. Veio gente de todas as épocas. Toda noite. Virou ponto de encontro e começo de relacionamentos amorosos. Cupido até dormindo.
No seu aniversário só de bolo tinham sete. Ex-namoradas se revezavam na UTI, disputando a importância de suas especialidades: médica, fisio, enfermeiras, fono... E amigos, os verdadeiros, choravam como crianças e colocavam a gente no colo. Cada um de uma maneira."
Passados onze anos, os amigos rarearam. "No começo, foi uma comoção, depois as visitas foram rareando. Sei que é difícil ver o Itamar como está, mas fico chateada. Eu mesma precisei me afastar em alguns momentos", afirma Bettina.
A presença incompleta de Itamar é especialmente sentida em datas como Natal e Dias das Mães, como Bettina resume em um texto de 2014:
"Já são nove dias das mães incompletos. Mas com a certeza de que, em algum caderninho sem capa, onde fé, folhas soltas e ingredientes se misturam, a mãe guarda o segredo das suas receitas preferidas, Ita. Pra quando você acordar."
Uma amiga disse à Bettina que o blog acordou o que nela dormia. Ela usa uma frase de Oscar Wilde para resumir a angústia pelo despertar de Itamar. "Se você não se atrasar demais, posso te esperar por toda a minha vida".
Ela discorda de quem acha mórbido o exercício de atualização virtual da memória do irmão. Na terra de ninguém do internet, um leitor comentou que o blog "era perda de tempo com um semimorto".
Um raro ataque em uma maré de comentários positivos em uma página que já teve mais de 150 mil visualizações, em 120 países, ao longo de quase três anos de existência.
"O retorno é mais incrível que tem. Fico feliz de ver que a história do Ita continua mexendo com as pessoas e espero que um dia ele possa acordar e ler tudo que está ali."
Uma esperança que transmitiu aos filhos. Lucca, 25, fez um dos posts mais bonitos do blog, em que declara ao tio: "Uma parte minha dorme com você. Guardo comigo as memórias que a gente nunca viveu. E aguardo as que a gente ainda vai viver".
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por Eliane Trindade
É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.