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    Reinaldo José Lopes

    Uma proposta modesta

    17/01/2016 02h00

    Nos últimos meses, muita gente boa tem se descabelado por conta de um tema que não costuma despertar paixões avassaladoras: o ensino de história no Brasil.

    Tudo começou quando o Ministério da Educação divulgou a versão preliminar de seu projeto para uma base curricular que valeria para o Brasil inteiro. Muitos intelectuais ficaram chocados ao ver que o plano dava ênfase à herança indígena e africana na história do país, praticamente ignorando a Antiguidade, a Idade Média e o Renascimento. Sem prejuízo da discussão sobre essas lacunas, porém, gostaria de fazer uma proposta modesta a ambos os lados: que tal ler Jared Diamond?

    Estou falando do biogeógrafo e professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles que escreveu o best-seller "Armas, Germes e Aço" -não porque eu ache que seus livros deveriam ser usados de forma dogmática, mas porque o trabalho dele exemplifica uma tendência que ajuda a pensar a saga histórica (e pré-histórica) da humanidade de modo realmente global, integrando a história às demais ciências.

    Acho salutar que a molecada brasileira aprenda que complexidade social, artística e tecnológica não era privilégio das civilizações da Europa e da Ásia. A arqueologia tem revelado, por exemplo, que a Amazônia pré-Cabral tinha populações densas, construções monumentais e cerâmica de fazer inveja aos gregos da época de Platão; as estradas incas alcançam no mínimo um empate técnico com as romanas; e por aí vai. Comparar essa complexidade nativa com a do Velho Mundo é um ótimo meio de aprender como surgem os Estados -a resposta de Diamond, provavelmente correta, é que a capacidade de intensificar a produção de alimentos por meio da agricultura costuma desencadear processos de concentração de poder, os quais desembocam no surgimento de generais, reis e imperadores.

    Essas, claro, são as semelhanças entre Novo e Velho Mundo, mas também é preciso explicar as diferenças. Como diabos um bando de 168 aventureiros espanhóis conseguiu derrotar dezenas de milhares de guerreiros incas e capturar o imperador Atahualpa em 1532?

    Foi porque os índios eram covardes, burros ou, de maneira genérica, "inferiores"? A resposta de Diamond é um sonoro "não". A grande vantagem dos espanhóis sobre os incas era o uso bélico do cavalo - um animal que tinha sido extinto nas Américas, junto com quase todos os outros mamíferos "domesticáveis", por volta de 10 mil anos atrás, no fim da Era do Gelo.

    Os ancestrais dos incas tiveram de se contentar com as lhamas, que ninguém conseguiria montar em batalha. Foi a convivência constante dos europeus com seus animais domésticos de grande porte, aliás, que legou a eles doenças infecciosas (originalmente transmitidas pelos bichos) como a varíola, responsável por matar muito mais indígenas do que qualquer cavalo ou arcabuz ibéricos.

    Se você quer juntar os professores de biologia, geografia e história num único esforço para estimular os alunos a pensar nos padrões que regeram a saga da nossa espécie, a abordagem acima me parece muito mais empolgante do que o mero "Vamos valorizar nossa herança não europeia, pessoal". Como diz um velho samba, sonhar não custa nada.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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