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    Ricardo Araújo Pereira

    A boca dos ricos

    06/10/2017 02h10

    Num conto de F. Scott Fitzgerald chamado "O Rapaz Rico", o narrador diz: "Deixem-me dizer-vos uma coisa sobre os ricos. Eles são diferentes de nós." De acordo com uma lenda, Hemingway terá comentado: "É. Eles têm mais dinheiro."

    Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

    O sarcasmo de Hemingway justifica-se, mas a observação de Fitzgerald é verdadeira. O erro dele foi não fundamentar aquela suspeita, que assim passa por platitude.

    Os leitores habituais desta coluna já perceberam, os quatro, que eu sou parecido com Scott Fitzgerald, tirando ser capaz de raciocínios mais sofisticados e possuir recursos estilísticos superiores. Vou demonstrá-lo hoje mais uma vez.

    De fato, os ricos são diferentes de nós. A diferença manifesta-se sobretudo no que eles fazem com a boca. Ricos, tenho constatado, não abrem muito a boca –exceto metaforicamente. Talvez esse seja o seu traço mais característico: mantêm os lábios comprimidos, como se tivessem engolido o cofre com as joias da mãe. Riem com cuidado, ao passo que pobre ri com a boca toda.

    É irônico que gente com menos dentes os exiba com mais gosto do que pessoas que bons dentistas dotaram de uma dentição completa. O escritor português Almeida Garrett, uma vez, desabafou: "Há umas certas boquinhas gravezinhas e espremidinhas pela doutorice que são a mais aborrecidinha coisa". Não estava a pensar nos ricos, mas podia.

    Outra ironia: os ricos mantêm a boca fechada também perante a comida. Sempre que sou convidado para comer em casa de gente rica, eu janto antes de sair. Caso contrário, já sei que vou passar fome.

    Se almoço com gente pobre é o contrário: já sei que depois não janto. Porque ainda estarei a digerir a feijoada, a bebida, mais do que uma sobremesa. Se como num casebre, numa aldeia, sou forçado a comer; se janto num bom apartamento, na cidade, obrigam-me a jejuar.

    Na aldeia há pão, enchidos cortados com uma navalha, queijo e uma pipa de vinho. Na cidade há um prato nu com sete feijões e um risco de molho sobre meia fatia de carne. Quando eu descubro com que garfo se come aquilo, o mordomo já levou.

    Os restos do meu prato, quando a refeição termina na aldeia, são mais fartos do que o conteúdo do prato quando a refeição começa na cidade. Fico de boca aberta com isso.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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