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    Sylvia Colombo

    Mortos do bem, mortos do mal

    11/10/2011 07h02

    Em seu afã por reinterpretar a história a seu favor, o kirchnerismo já alterou o relato dos acontecimentos nos anos 70 (leia mais aqui, para assinantes) e se prepara agora para promover seu líder máximo a um status de prócer da pátria.

    No próximo dia 27, quando se comemora um ano da morte de Néstor Kirchner, uma série de homenagens está sendo preparada, culminando com a inauguração de um mausoléu de proporções faraônicas em Santa Cruz, sua província-natal.

    A data quase coincidirá com a mais do que provável reeleição da peronista Cristina Kirchner (no dia 23), o que significará uma semana de festejos e tributos.

    A estratégia kirchnerista com relação à narrativa da história passa por apagar figuras e passagens que não apontem para uma Argentina "progressista", desde seu ponto de vista. Nesse processo, um dos que vêm sendo demonizados é o ex-presidente Julio Argentino Roca, que governou o país entre 1880-1886 e 1898-1904.

    Nesse caso, porém, é preciso dizer que o julgamento é oportuno. Roca foi um dos principais responsáveis pela infame "conquista do deserto", que nada mais foi do que uma matança generalizada de povoações indígenas do sul do país, considerada por muitos historiadores como um verdadeiro genocídio.

    Figura nefasta, sem dúvida, que tem estátuas espalhadas em todo o país e estampa, até hoje, a nota de maior valor na moeda argentina, a de 100 pesos.

    O kirchnerismo resolveu repudiar seu legado político. Curiosamente, para isso, quer resgatar um ícone do partido que mais se opõe aos peronistas, a União Cívica Radical.

    Um grupo de deputados ligados ao governo de Cristina acaba de propor um projeto de lei para trocar o semblante de Roca da nota de 100 pesos pelo do líder radical Hipólito Yrigoyen (1852-1933).

    De fato, trata-se de um personagem que merece vir à luz. Yrigoyen foi um dos fundadores da União Cívica Radical, em 1891, junto ao tio, Leandro Alem. O partido nasceu de um movimento de classe média, que se opunha ao concentrado poder das oligarquias. Em seus princípios, o grupo adotou formas violentas de ação. Após o suicídio de Leandro Alem, em 1896, Yrigoyen passou a ser o principal nome da UCR.

    Yrigoyen foi o primeiro político a se beneficiar da Lei Sáens Peña, de 1912, que estabeleceu o sufrágio obrigatório, secreto e universal (mas excluindo ainda as mulheres, que só passariam a votar no governo de Juan Domingo Perón). Saiu-se vitorioso nas eleições que vieram na sequência.

    Governou a Argentina em dois períodos, entre 1916 e 1922 e 1928 e 1930. A primeira gestão foi beneficiada pelas consequências da Primeira Guerra Mundial na Europa, que fez com que seus mercados se abrissem para os produtos argentinos. Foi nessa época que o país passou a ser conhecido como "celeiro do mundo".

    A vida dos trabalhadores e da classe média melhorou em muitos aspectos, e Yrigoyen foi o responsável por reformas sociais e leis que regulavam horas de trabalho e aposentadoria, entre outras coisas. Tornou-se muito popular na época.

    Em seu segundo período, era um homem idoso e a situação econômica do país, que sentia os efeitos da depressão americana, já não era tão boa. Sua popularidade foi despencando e passou a ser hostilizado por setores mais conservadores da sociedade.

    No dia 6 de setembro de 1930, veio o golpe militar. Foi o primeiro da Argentina em sua era constitucional, levado adiante pelo general José Felix Uriburu.

    Sua casa foi saqueada e Yrigoyen caiu então em desgraça. Ficou um tempo preso na ilha de Martin Garcia. Três anos depois, morreria em Buenos Aires.

    A morte o redimiu, e seu enterro foi acompanhado por uma verdadeira multidão.

    A gestão de Yrigoyen foi considerada como o primeiro governo de origem popular da Argentina. O ambiente literário e intelectual começava a viver anos de efervescência, com o despontar de nomes como Leopoldo Lugones e Macedonio Fernández. Um bom retrato desse momento é o livro "Yrigoyen entre Borges e Arlt", de David Viñas.

    Trazer o personagem de Yrigoyen para o dia a dia dos argentinos neste momento não parece uma ideia ruim. E é democrático o gesto de resgatar um líder do partido opositor.

    Uma pena que este governo o faça apenas porque o personagem cabe num conceito de país progressista que aos kirchneristas agrada.

    sylvia colombo

    Escreveu até outubro de 2012

    Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres e Buenos Aires. É formada em jornalismo e história. Mantém um blog no site da Folha

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