Em todos os momentos em que teve desenvolvimento econômico, o Brasil soube acompanhá-lo de explosão criativa em sua produção cultural, menos agora.
No interior de tais explosões, a música costumava desempenhar um papel de alta relevância. A ideologia cultural nacional sempre foi, em larga medida, uma ideologia musical. Ela aplicava assim, em pleno século 20, essa estratégia política da formação dos Estados-nação no século 19, que consistia em utilizar a música para a construção das "nacionalidades".
Como tivemos de esperar até 1930 para começar a deixar de sermos um mero clube associativo de donos de fazendas para sermos algo mais próximo de um país, foi a partir daí que a música brasileira passou à linha de frente do debate cultural. A construção nacional de Villa-Lobos e das pesquisas musicais de Mário de Andrade são exemplos paradigmáticos nesse sentido.
Na Europa do século 19, a junção entre Estado, nação e povo se fez, entre outros meios, pela elevação da música à linguagem de construção do espaço social e de reconciliação das populações como unidade.
Criou-se o folclore, instrumentos típicos, particularidades que, muitas vezes, eram apenas variações estruturais de constantes globais. Assim, a narrativa do povo que encontra seu solo e os afetos que o singularizam vinha sob a forma do canto, deste mesmo canto que, já dizia Rousseau, era a forma da primeira linguagem que nos deixaria mais próximos da origem e da autenticidade.
Que tenhamos apreendido cirurgicamente a nos orgulhar da música brasileira como expressão maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e modos de pensar, como modelo de convivência possível entre camadas sociais distintas e distantes (afinal, quando o samba fala alto tudo se mistura), é algo que não deveríamos estranhar. Como vários outros, este país foi construído a ferro, fogo e música.
No entanto, toda operação de ideologia cultural sempre produz mais do que consegue controlar. Essa alta importância da música acabou por produzir um sobreinvestimento. Mesmo que a música brasileira tenha se reduzido, em larga medida, aos limites da canção (a forma musical por excelência de consolidação de laços sociais devido a sua estereotipia formal e de fácil recognição), é inegável que o Brasil, como alguns poucos outros países, soube extrair genialidade de tais limites.
Que, nos anos 1970 e 1980, músicos populares tenham se transformado em expoentes maiores da consciência crítica nacional, trazendo para a esfera da alta circulação cultural aquilo que tinha a capacidade de complexificar nossa imagem de país, de sociedade e de afetos, apenas demonstra como toda construção de um solo e de um território acaba por ter de lidar com o que procura nos levar para além de tal território. O desenvolvimento econômico parecia levar a uma explosão cultural que tendia a complexificar as imagens produzidas por nossa ideologia cultural.
Mas algo de peculiar ocorre a partir dos anos 1990, chegando a seu ápice neste último decênio. A partir de certo momento, impera o movimento que vai do É o Tchan, da era FHC, ao funk e sertanejo universitário do lulismo.
A despeito de experiências musicais inovadoras nestas últimas décadas, é certo que elas conseguiram ser deslocadas para as margens, deixando o centro da circulação completamente tomado por uma produção que louva a simplicidade formal, a estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso quando não é a pura louvação da inserção social conformada e conformista. A música brasileira foi paulatinamente perdendo sua relevância, para se transformar apenas na trilha de fundo da literalização de nossos horizontes.
Ultimamente, todas as vezes que se levanta a regressão da qual a música brasileira é objeto se é acusado de elitista. Afinal, tais músicas teriam vindo dos estratos mais pobres da população brasileira. O que se chora seria, na verdade, o fim da dominância cultural da classe média urbana e o advento das classes populares e das classes do "Brasil profundo".
Como se fosse o caso de aplicar um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura. Para esses que escondem sua covardia crítica por meio de tal exercício, lembraria da necessidade de desconstruir a farsa de um "popular" que não traz problema algum para o dominante. Lembraria de como não há arte proletária, cultura proletária, religião proletária, moral proletária, Estado proletário, pois, como dizia Marx, os proletários são aqueles que não têm religião, Estado, moral (e acrescentaria música, cultura). Por isso, eles são a indicação do que ainda não tem forma nem imagem. Sendo assim, em vez de aplicar esquemas sociológicos primários, melhor seria ouvirmos de fato o que se produz e nos perguntarmos por que chegamos a esse ponto.
É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.