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    Vladimir Safatle

    'Esperando Godot' é o exemplo mais bem acabado de um teatro realista

    06/10/2017 02h10

    Marcelo Cipis/ Editoria de Arte/Folhapress

    Quando "Esperando Godot", de Samuel Beckett, foi encenada pela primeira vez em Paris, Jean Anouilh escreveu: "Uma adaptação para music hall dos 'Pensées' de Pascal, interpretados pelos clowns de Fratellini".

    A descrição parecia ao menos ter o mérito da confissão de desnorteio diante do choque. No entanto, ela acabava por iluminar algo que, de fato, fornecia um eixo de entrada nesta peça de Beckett que retorna agora às livrarias brasileiras (e que tempo melhor para retornar do que exatamente agora?) em uma edição e tradução cuidadosas de Fábio de Souza Andrade (Companhia das Letras, 185 págs.).

    O lugar impossível que "Esperando Godot" ocupava, entre um music hall e os mundos em desabamento dos "Pensées", de Pascal, trazia as marcas de uma decisão. Não haveria nada mais equivocado do que sublinhar o pretenso caráter "absurdo" do teatro de Beckett nesta história da espera de Vladimir e Estragon por alguém que nunca virá.

    Para ser "absurdo", ele deveria estar longe do real, o que não é o caso. "Esperando Godot" é o exemplo mais bem acabado de um teatro realista não apenas por expor o caráter atualmente arruinado da linguagem que socialmente se impõe a nós.

    Uma linguagem que só por meio da mais brutal violência pode nos fazer ainda confiar nas relações de causalidade, na certeza produzida pelo efeito que segue a causa, na recognição produzida pela memória, na continuidade narrativa com sua orientação de ação pelas noções de necessidade e desenvolvimento.

    Ou seja, ele não é realista apenas por denunciar a falsidade do acordo em torno de uma metafísica que pulsa na gramática de nossa linguagem ordinária. "Esperando Godot" é realista porque expõe o tipo de desabamento que ocorre quando o real se torna possível. É realista por descrever como se respira pela primeira vez.

    Em dado momento da peça, Vladimir e Estragon entabulam um diálogo. "Vamos tratar de conversar com calma, já que calados não conseguimos ficar", diz Estragon. Segue-se então a tentativa de uma conversa meio reflexiva, meio filosófica sobre folhas mortas. Ela termina sem muito sucesso, o que leva Vladimir a pedir angustiado que eles digam alguma coisa, o que está longe de ser fácil agora.

    No que se segue um diálogo sintomático entre os dois. Diz Vladimir: "Só temos que recomeçar"/ "É, não parece muito complicado", diz Estragon/ Vladimir: "O primeiro passo é o mais difícil"/ Estragon: "Podemos começar de qualquer parte"/ Vladimir: "Podemos, mas temos que decidir"/ Estragon: "É mesmo".

    De fato, o primeiro passo é sempre o mais difícil quando se descobre que podemos começar de qualquer parte. Mas que maneira melhor de mostrar que se pode começar de qualquer parte do que fazer como Beckett e colocar em circulação a brutalidade de um humor que zomba de toda espera e de toda hermenêutica, que faz troça de toda forma de garantia de orientação da conduta?

    Humor que mostra a desorientação do senso comum diante do desabamento de todo um mundo.

    Mas talvez fosse o caso de meditar sobre exatamente isso, a saber, o que pode significar ver a forma do mundo desabar com humor? Não com desespero, já que, na peça, até mesmo a tentativa de se enforcar termina em um número de clown no qual a corda arrebenta e as calçam caem.

    Na verdade, trata-se de ver o mundo desabar com humor, o que não poderia ser outra coisa que a expressão de uma estranha confiança que anima não exatamente os personagens de Beckett, mas sua escrita.

    A confiança de que, no meio do que aparece para nós como caos (mas um caos que não é apenas o fantasma que criamos para alimentar a nostalgia da ordem; ao contrário, caos que é a liberação da experiência em relação a suas formas prévias), aparece também sempre a primeira respiração.

    Por isso, depois de descobrir que podemos começar de qualquer parte, ainda é necessário decidir. Isso, os personagens de "Esperando Godot" não fazem. Pois eles estão presos em uma espera que é apenas certa forma de defesa. Mas porque Beckett nunca de fato se desesperou com uma decisão, porque a decisão já estava sempre lá, seu humor é a forma suprema de quem diz: "Só mais um esforço, pois ouçam como já se respira no caos".

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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