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    Ciclovia muda de rota e beneficia família de secretário de Haddad

    FELIPE SOUZA
    DE SÃO PAULO

    18/09/2015 02h00

    A gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) abandonou o projeto de uma ciclovia em linha reta na zona sul de São Paulo e implantou, duas quadras abaixo, uma faixa exclusiva para bicicletas repleta de desvios e remendos.

    A troca, no ano passado, beneficiou a família do secretário de Transportes, Jilmar Tatto, que acumula o cargo de presidente da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), órgão responsável pela implantação das ciclovias.

    O traçado adotado desviou a ciclovia de cinco imóveis de sobrinhos e irmãos de Tatto que seriam afetados pelo projeto original –ou pelo novo, caso fosse feito em linha reta.

    Um dos setores mais críticos ao avanço das faixas para bicicletas são os comerciantes, que alegam prejuízo ao acesso dos estabelecimentos.

    O projeto original, elaborado pela empresa TC Urbes, previa uma ciclovia de 2 km. Já a nova rota ganhou 400 metros a mais, além de quatro curvas e quatro travessias, que obrigam o ciclista a um zigue-zague entre carros.

    Para implantar a ciclovia que desviou dos imóveis da família Tatto, a prefeitura precisou asfaltar um trecho de uma rua. A medida impermeabilizou a via, e a água da chuva passou a alagar garagens.

    Moradores dizem que a ciclovia foi construída em três dias, sem consulta. "Amanhecemos com a rua asfaltada sem saber o motivo", diz a empresária Renata D'Angelo, 42.

    A Folha visitou os cinco imóveis da família Tatto. Em todos eles havia carros estacionados na porta, por onde passariam as faixas de bikes.

    Sobrinho do secretário, Leonardo Jesus Tatto, 39, é sócio de um prédio na rua Américo Brasiliense e diz que a ciclovia original teria prejudicado o comércio dele.

    "Ela [ciclovia] deve continuar onde está. Se ela vier para cá, vamos perder muitas vagas de estacionamento."

    Ele afirma que o tio não influenciou na mudança. E defende as ciclovias. "Fiz até vestiário para meus funcionários se trocarem após chegarem de bicicleta", conta.

    Já para Juliana Leandres, 30, nora de Anselmo Tatto (irmão de Jilmar) e locatária de um imóvel dele na mesma via, a ciclovia não seria um problema. "Seria até melhor, porque não uso carro, e as pessoas não poderiam parar aqui na frente. Assim, meu comércio teria mais visibilidade."

    A nova ciclovia começa na rua Alexandre Dumas, faz um brusco "desvio" pela rua Fernandes Moreira e retorna à primeira via na reta final.

    Na manhã de quinta (17), a Folha viu só cinco ciclistas nesse "desvio" em uma hora.

    O balconista Gabriel Muniz, 26, diz que usa a ciclovia, mas só os trechos da Alexandre Dumas. "Por que eu entraria naquela rua estreita ["desvio"]? Não faz nenhum sentido aquilo ali", diz.

    O diretor da Associação Comercial de SP, Luiz Augusto Barbosa, diz que a prefeitura não procurou comerciantes e moradores para implantar o novo trajeto. "A gente tinha um estudo técnico. A prefeitura não apresenta o estudo que baseou a nova decisão. Estão criando uma guerra entre quem quer andar de bicicleta e usar comércios e quem é prejudicado pelas
    ciclovias."

    Editoria de Arte/Folhapress
    Prefeitura faz ciclovia que desvia de imóveis da família do secretário de Transportes

    PROJETO ENGAVETADO

    Responsável pelo projeto original da ciclovia, o fundador da empresa TC Urbes, Ricardo Corrêa, afirma ter demorado anos para projetar 123 km de ciclovias em Santo Amaro. Parte disso, diz, foi descartado pela prefeitura.

    "O projeto começou em 2006. Discutimos muitas vezes com o subprefeito, moradores e comerciantes. A ideia era que o bairro servisse de teste para a malha a ser implantada na cidade, porque é uma região complexa."

    Ele diz ter reunido um grupo de pessoas e pedalado pelas ruas do bairro para definir os melhores trajetos. Priorizaram, segundo ele, os de menores aclives e que interligavam o maior número de meios de transporte e pontos de circulação de pessoas.

    Estudioso de ciclovias há 20 anos, Corrêa é autor de dois livros sobre o tema e mestrando em Planejamento Urbano e Regional na USP.

    Para ele, a ciclovia da rua Alexandre Dumas é um erro. "Tem desperdício de dinheiro, para asfaltar a rua, e de energia do ciclista, que pedala mais." Para ele, o ciclista é consumidor e tem de passar por ruas de comércio, não residenciais. "De repente, o cara que fez [o novo projeto] pensou algo bom para ele. É um erro."

    OUTRO LADO

    O prefeito Fernando Haddad negou, na manhã desta sexta (18), que a mudança tenha ocorrido para favorecer a família do secretário.

    "A CET [Companhia de Engenharia de Tráfego] é que toma esse tipo de decisão. Jamais uma decisão como essa seria de natureza política", disse o prefeito em Santana, zona norte.

    Na quinta (17), a prefeitura disse em nota repudiar "qualquer insinuação" de que a rota da ciclovia implantada na zona sul de São Paulo "atenda interesses privados ou familiares de qualquer autoridade".

    Segundo a administração, os critérios adotados foram técnicos e Jilmar Tatto, secretário municipal de Transportes, não acompanhou a implantação dessa ciclovia e desconhece o estudo com traçado diferente feito em 2012.

    O trajeto demarcado pela CET em 2014, diz a gestão, levou em consideração principalmente "a conexão com outros meios de transporte".

    De acordo com a prefeitura, a rota implantada desvia de interferências locais, como linhas de ônibus, e permite conexão direta com a estação Granja Julieta da CPTM.

    A gestão diz que a proposta anterior não previa essa ligação com a parada de trem, embora fosse em linha reta.

    Nos imóveis da família Tatto que acabaram poupados na nova ciclovia funcionam um bar, uma empresa de serviços administrativos, dois escritórios de contabilidade e um de certificação digital.

    O novo traçado, ainda segundo a prefeitura, valoriza a conexão com os bairros Alto da Boa Vista e Chácara Santo Antônio e cruza avenidas importantes como Santo Amaro, Adolfo Pinheiro e Vereador José Diniz, além do parque Severo Gomes.

    O desvio para a rua Fernandes Moreira, de acordo com a gestão Haddad, foi necessário para evitar interferências da rua Alexandre Dumas –como linhas de ônibus e equipamentos de saúde.

    A prefeitura diz ainda que a rede cicloviária foi apresentada publicamente em reuniões do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito e do Conselho do Fundo Especial do Meio Ambiente e que todas "tiveram a participação de membros do governo municipal e sociedade civil".

    Segundo a gestão, outras ruas que receberam ciclovias passaram reformas no asfalto, poda de árvores e operação tapa buraco.

    A CET afirmou que pode fazer, se for necessário, mudanças no trajeto de qualquer ciclovia, incluindo a da Alexandre Dumas, que custou cerca de R$ 430 mil.

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