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    Reação a arrastão é ascensão conservadora, diz sociólogo

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    04/10/2015 02h00 Erramos: o texto foi alterado

    Rafael Andrade-1.jul.10/Folhapress
    Michel Misse, 64, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ
    Michel Misse, 64, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ

    Os desdobramentos de arrastões nas praias do Rio de Janeiro, com ataques de grupos contra ônibus de jovens da periferia, refletem a ascensão de uma extrema direita raivosa que saiu do armário. O ambiente social está envenenado e há um processo de "acumulação social da violência".

    A reflexão é do sociólogo Michel Misse, 64, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (Universidade Federal do RJ). Para ele, existe uma reação ao longo período de hegemonia da esquerda na esfera federal. "Nunca vi tanto ódio", diz.

    Na sua análise, os arrastões são fatos isolados que estão sendo superdimensionados. A ação exagerada da polícia acaba produzindo sentimentos de humilhação e revolta nos jovens da periferia, que, como nos rolezinhos, "querem sair do anonimato e da invisibilidade social em que eles estão lançados", afirma.

    Segundo ele, há também uma reação da juventude das favelas ocupadas pelas UPPs, pois a polícia "tenta moralizar os costumes, proíbe bailes funk, faz revistas em jovens que ela considera suspeitos e cria um conjunto de constrangimentos".

    Autor de "Crime e Violência no Brasil Contemporâneo" (2006), Misse defende que a polícia faça trabalho preventivo, sem impedir o fluxo de jovens.

    "A cidade tem profunda cisão social, embora isso tenha diminuído bastante nos últimos dez anos. Há desemprego elevado entre 18 e 29 anos. São jovens revoltados que agem dessa maneira", declara.

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    Folha - Qual sua visão sobre os arrastões nas praias do Rio?

    Michel Misse - Pouco se sabe. A polícia responde à pauta da mídia mais do que sobre o que está acontecendo. Houve casos isolados num final de semana em uma parte de uma única praia –num trecho de 100 metros numa praia de 4 quilômetros. Grupo de jovens teriam realizado o chamado arrastão, que é complicado de definir. Envolve correria, alguns furtariam objetos. Há muitos jovens que não estão envolvidos em furtos; estão curtindo um comportamento desviante. Os eventos não são comuns, mas ganham uma dimensão muito grande, são supervalorizados, como se ocorressem em grande escala. Há uma reação descabida, exagerada das forças de segurança. Isso acaba produzindo sentimentos de humilhação e revolta em alguns desses jovens. Tende a gerar o que chamo de acumulação social da violência, na qual a mídia é um dos atores. A polícia que é muito pouco habilitada a lidar com jovens com esse tipo de comportamento. As verificações nos ônibus –onde todos descem e são revistados de forma dura– são desproporcionais em relação aos riscos que os jovens podem representar. Assisti a uma cena assim quando estava almoçando ao ar livre em Copacabana. Fiquei impressionado com o comportamento extremamente radical da polícia, como se tivesse lidando com uma criminalidade gravíssima. Não tinha acontecido nada; eles estavam fazendo arruaça dentro do ônibus, alguns tinham pulado a borboleta. Depois houve o episódio de jovens de academias de musculação se colocando na condição de justiceiros: ameaçaram ônibus cheio de jovens da periferia.

    A polícia está errada?

    É um pouco a situação que vivemos antes com os chamados rolezinhos. Esses jovens querem sair do anonimato em que se encontram, da invisibilidade social em que eles estão lançados. Procuram chamar atenção através de comportamentos em grupo. Para quem não está acostumado é assustador ver jovens negros juntos caminhando. Levanta estereótipos, mesmo que não façam nada. Se eles começam a brincar, a fazer balbúrdia, decifra-se isso como início de um arrastão. No meio da confusão, também podem ocorrer furtos, algum grupo de jovens pode fazer o chamado arrastão. A polícia tem que estar na praia preventivamente, criando um constrangimento para que esse tipo de ação, que tem sido muito pontual, não ocorra. A polícia deve acompanhar as redes sociais, colocar policiais nos locais onde pode acontecer balbúrdia, mas não impedir o fluxo de pessoas. Se for necessário intervir em algum ônibus, tem que ser pontual, baseado em um flagrante. Se não houve delito, como se vai prender as pessoas de um ônibus?

    Como dimensionar esses fatos do ponto de vista social mais amplo?

    A cidade do Rio de Janeiro só começou a integrar o subúrbio com a zona sul no primeiro governo Leonel Brizola (1983-1987). Foi ele quem autorizou a primeira linha de ônibus no túnel Rebouças. Até então não havia linha de ônibus ligando a zona norte à zona sul. Quando ele fez isso, a crítica na imprensa foi muito forte. [Na verdade, antes dos anos 1980, linhas de ônibus já ligavam a zona norte à zona sul do Rio de Janeiro]. Ainda hoje ouvem-se vozes no sentido de que é preciso garantir a tranquilidade dos moradores da zona sul. A cidade está partida, mas não geograficamente. Geograficamente está toda integrada. Está partida socialmente. Embora isso tenha diminuído bastante nos últimos dez anos, a cidade tem profunda cisão social. Há uma taxa de desemprego muito elevada na faixa etária entre 18 e 29 anos. Além de um número alto de jovens que não estudam nem trabalham. São jovens revoltados que agem dessa maneira.

    As UPPs não ajudam?

    Há uma reação da juventude das favelas ocupadas pelas UPPs. A polícia nas UPPs não faz apenas a proteção dos moradores, impedindo a ação dos traficantes armados. Ela tenta moralizar os costumes, proíbe bailes funk, faz revistas em jovens que ela considera suspeitos –com uma tatuagem, uma roupa que desperte atenção–, cria um conjunto de constrangimentos. A polícia pretendia se tornar aceita pela população, mas isso não vem ocorrendo, principalmente entre os mais jovens.

    O sr. trabalhou o conceito de "acumulação social da violência". Estamos vivendo mais um capítulo desse processo?

    Sim. A violência é um mecanismo da vingança. É infinito e cumulativo, vai se espalhando. A polícia não consegue detectar, espalha-se um sentimento de impunidade, surgem grupos de extermínio baseados em contribuição de comerciantes de áreas periféricas. Os ladrões começam a se armar cada vez mais e não se entregam. Há uma corrida armamentista entre os traficantes, a polícia precisa melhorar seu armamento, vai numa escala. A corrupção policial é uma alimentadora desse processo. Outra é a sujeição criminal –se confundir o criminoso com o crime, achar que o sujeito carrega o crime para o resto da vida. Assim, dizem, não é o caso de prendê-lo, mas de eliminá-lo. Tudo isso contribui para essa acumulação social.

    As UPPs não conseguiram romper esse processo?

    No começo, conseguiram estagnar esse processo. Houve um declínio bastante considerável da taxa de homicídios e também da taxa de vítimas letais da própria polícia. As operações feitas antes, de subir a favela atirando com o caveirão, foram substituídas pela permanência de um grupo de policiais na própria favela. O resultado do ponto de vista estritamente policial, foi positivo, pois impediu que os traficantes armados controlassem as áreas ostensivamente como controlavam. Deu também algumas garantias aos moradores de que a polícia permaneceria lá. Isso durou algum tempo e foi bem avaliado pelos moradores, mas não pelos jovens. Recentemente, o tráfico voltou a ameaçar a continuidade dessa política, seja pela propina, que voltou em grande escala nas regiões de UPPs, seja por ataques pontuais que foram realizados contra as sedes de algumas UPPs. O caso Amarildo é um ponto de inflexão importante. O que assistimos hoje são moradores entre o fogo cruzado, que existia antes das UPPs, e o campo minado, que é a relação dos moradores com traficantes e policiais. Os moradores têm que andar sobre ovos. Não podem ser vistos como delatores pelos traficantes e precisam manter uma boa relação com a polícia.

    E as milícias?

    As milícias são os sucedâneos dos grupos de extermínio, os esquadrões da morte.

    O sr. já lembrou que essa violência dos esquadrões da morte teve início no Rio de Janeiro, em pleno período da Bossa Nova, a partir de meados dos anos 1950. Como explicar isso?

    Houve uma urbanização acelerada e desregulada em todo esse período. Várias favelas da zona sul foram removidas. Seus moradores trabalhavam ali. Eram lavadores de carros, domésticas, porteiros que foram para longe, sem que houvesse transporte público, condições mínimas. Foi um baque que ocorreu e que certamente foi um dos fatores que provocaram essa mudança no padrão da criminalidade no Rio de Janeiro. Se transita de um tipo de malandragem, de criminalidade baseada no furto, pouco violenta, para uma criminalidade baseada no assalto à mão armada. Na década de 1960 há a transição do malandro para o marginal. Interessante notar que a palavra marginal não aparece em lugar nenhum antes dos anos 1960. O que aparecia na imprensa era malandro, malfeitor, ladrão. A palavra marginal junta a situação de periférico, de marginal no sentido socioeconômico, com o marginal no sentido da lei, à margem da lei. Faz a ligação de pobreza e criminalidade. Com a chegada da cocaína houve mudança de padrão e muitos assaltantes passaram para o tráfico. Não se pode comparar esse quadro com um arrastão na praia, que é um grão de areia nessa história toda.

    Os recentes eventos de violência no Rio estão ligados ao ambiente de polarização política no país e com a ascensão de ideias conservadoras?

    Os problemas do Brasil são muitos grandes e muito pouco conhecidos dos brasileiros, especialmente da classe média que vive nas grandes cidades. A imagem que se faz do Brasil é exclusivamente de seus problemas. Não ganham projeção e ficam desconhecidos os muitos esforços que são feitos no sentido de superar esses problemas. Esforços não só por parte do governo, mas também por ONGs, igrejas, cidadãos. A imagem negativa foi se acumulando, como se a política no Brasil fosse muito diferente da de outros lugares. Não sabem que há corrupção também nos EUA, na França. Fica como se o Brasil fosse uma grande exceção. É o complexo de vira-lata. A imprensa começou a fazer o papel de oposição política aos governos do PT; as pautas negativas ganharam mais relevância do que as positivas. As manifestações de 2013 foram resultado dessa visão. Os partidos de esquerda foram objeto de ira e reação violenta. Fiquei impressionado. Uma certa direita conservadora, que não aparecia, começou a aparecer. Efeito normal de um período longo de hegemonia de uma política de esquerda no governo federal, que produz uma reação contrária. Principalmente em setores das classes médias que discordam que parte de seus impostos esteja indo para os pobres. O mais grave é que uma enorme parcela da classe média de profissionais é sonegadora, não paga impostos: participa do mesmo tipo de corrupção que critica. A direita saiu do armário. Isso é bom para a democracia, mas há uma extrema direita furiosa e raivosa. O ambiente está envenenado. Nunca vi tanto ódio.

    Os lutadores de Copacabana que tentaram agredir os passageiros de ônibus jovens e pobres são ponta do iceberg desse processo?

    Sem dúvida. Não se pode dizer que a ditadura militar no Brasil tenha durando esse tempo todo sem uma base social. O volume de crimes aumentou muito em função da elevação da desigualdade social durante o período da ditadura. A polícia ficou incapaz, pois não foi modernizada.

    Com a matança, especialmente de pobres e negros, muitos afirmam que há pena de morte de fato no país. O sr. concorda?

    Se a pena de morte fosse instituída seria legal. Não é pena de morte: é assassinato, execução. Se eu fosse um ladrão e a polícia me prendesse, eu me entregaria. Os ladrões deixaram de se entregar e passaram a reagir armados à tentativa de detenção. Nos anos 1950, 60, 70, começaram a ver alguns de seus colegas serem executados quando se entregavam. A partir da entrada do tráfico há um outro padrão, competição entre as facções, uma corrida armamentista entre essas quadrilhas. Inicialmente, eram os policiais que vendiam as armas para os traficantes. A partir dos anos 1990, entra o tráfico de armas, o que leva o índice de homicídios às alturas. O apogeu é alcançado em meados de 2000, quando alguns policiais começam a oferecer proteção de forma organizada em alguns bairros mais distantes da zona oeste. A imprensa chamou de milícias; são grupos parapoliciais que ficam numa linha tênue entre a oferta de segurança privada e os grupos de extermínio do passado. Essa linha é atravessada várias vezes e a polícia tem reagido. Prendeu bastante gente, mas ainda há muitos grupos desse tipo atuando, principalmente na zona oeste, onde há a maior taxa de homicídios.

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