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    Ansiosos, pacientes carregam angústias da crise para o divã

    EMILIO SANT'ANNA
    DE SÃO PAULO

    20/03/2016 02h00

    Começa em Brasília, vai para Curitiba, segue para a avenida Paulista, Copacabana, Praça da Liberdade e o resto do país. Depois de um tempo repetindo esse itinerário, para mesmo é no divã.

    À esquerda ou à direita, o efeito é igual: angústia e ansiedade com os desdobramentos das crises econômica e política que se retroalimentam e atingem em cheio o brasileiro e sua saúde emocional.

    A duas quadras da mesma avenida Paulista, 80% das cerca de duas centenas de pacientes que passam mensalmente pelo consultório do psicoterapeuta Eduardo Ferreira-Santos, ex-supervisor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, têm exatamente essa reclamação.

    São pessoas para as quais a ansiedade gerada pela conjuntura nacional se soma aos problemas e queixas que já existiam, mas que passaram a ocupar um segundo plano.

    "Para esses 80% a queixa sobre a situação econômica e política é espontânea. Para os outros 20%, se eu tocar no assunto, eles também manifestam", diz Ferreira-Santos.

    Rodrigo (nome fictício), 40, engenheiro, não é um de seus pacientes, mas, se fosse, estaria entre esses 80%.

    Com medo de perder o emprego, passa "o tempo todo avaliando a situação política que afeta o crescimento das empresas" como aquela em que trabalha.

    Se a ansiedade como a dele fosse medida numa escala de zero a dez, o normal seria viver com um ou dois, diz o psicoterapeuta. "Mas eles já chegam com cinco", completa. "A ansiedade é um caminho para a depressão."

    Karime Xavier/Folhapress
    O psicoterapeuta Eduardo Ferreira-Santos, 63, cujos pacientes se queixam da crise
    O psicoterapeuta Eduardo Ferreira-Santos, 63, cujos pacientes se queixam da crise

    CATARSE

    Todo dia, uma surpresa: o "vai-não-vai" de Lula na Casa Civil em Brasília (que garantiria ao ex-presidente investigado na Operação Lava Jato foro privilegiado), a divulgação de suas conversas telefônicas (autorizada pelo juiz Sérgio Moro, em Curitiba), as manifestações país afora e as previsões nada otimistas para a economia.

    Esse não é exatamente o melhor dos mundos para quem tem problemas para conter a ansiedade.

    O medo do desemprego, de não conseguir se recolocar no mercado, a certeza, para uns, de estar assistindo impotente a um golpe contra a presidente Dilma Rousseff (PT) ou, para outros, à corrupção desenfreada, se tornaram temas recorrentes nos consultórios.

    "Começam a surgir questionamentos como: 'Será que serei o próximo a ser mandado embora?' ou 'Como vou suportar minha família durante essa fase?'", afirma o psiquiatra e psicoterapeuta Ricardo Biz, da Sociedade Brasileira de Psicanálise.

    No consultório do psicanalista Márcio Giovannetti, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, seus pacientes têm chegado às sessões falando primeiro de política e, só depois de uma "angustiante catarse", conseguem abordar seus problemas pessoais.

    "Em mais de 40 anos de psicanálise nunca tinha vivido algo similar ao que vem se passando de um ano para cá: a questão pública chega antes da privada", diz.

    Não raro, esses casos de ansiedade elevada se transformam em síndrome do pânico. "Essas pessoas estão se sentindo muito mal porque estão assustadas. Existe muito medo do que pode acontecer", diz Ferreira-Santos.

    Ele, Biz e Giovannetti têm a mesma missão, tentar separar o que é realidade do que é fantasia na percepção de seus pacientes, "por mais que a realidade não seja das melhores", afirma.

    Se serve de consolo, mesmo nas situações complicadas pode-se tirar algum aprendizado. "É claro que, se considerarmos a crise como um momento incerto que precede uma mudança, podemos atribuir a ela também um papel de catalisadora de transformações", diz Biz. "Ou seja, força a pessoa a olhar para si, o que pode impulsionar seu desenvolvimento."

    Moacyr Lopes Junior/Folhapress
    O empresário André Reiszfeld. 35, que diz sofrer com as consequências de uma falência causada pela crise econômica
    O empresário André Reiszfeld. 35, que diz sofrer com uma falência causada pela crise econômica

    'TIRA O TESÃO'

    Há três anos, "quando o Brasil ainda era o país do futuro", André Reiszfeld, 35, estava investindo na abertura de sua segunda empresa de embalagens plásticas. Hoje, contabiliza os prejuízos com o empreendimento. "Estou fechando. Na outra, estamos tentando sobreviver", diz.

    Esse passivo, resultado da crise econômica, dificilmente irá recuperar no médio prazo. Outro, porém, ele trabalha semanalmente com seu terapeuta: o prejuízo emocional de ter que demitir funcionários, ver uma aposta dar errado e arcar com as dívidas. "Isso causa ansiedade, preocupação, noites mal dormidas", afirma.

    Já a crise política não deixa por menos. "Causa uma desesperança total sair do 'país do futuro' e entrar numa crise dessas, muito trazida pela política", completa Reiszfeld, que se considera de centro-esquerda e em 2014 votou em Marina Silva (Rede, ex-PSB), no primeiro turno, e em Aécio Neves (PSDB), no segundo.

    Casado com uma psicanalista e pai de uma menina de um ano e meio, o empresário leva esses questionamentos para a terapia, assim como discute no consultório se gostaria de deixar o Brasil e tentar a vida nos Estados Unidos.

    "Estou vendo a possibilidade de sair do país, como muitos amigos, o que é uma pena. Quanto capital humano vai embora?", diz. "Minha vida profissional é aqui, recomeçar tudo não é fácil."

    Dúvidas como as de Reiszfeld se tornaram comuns. As incertezas e o contexto turbulento fomentam a insegurança, explica o psicoterapeuta Ricardo Biz, da Sociedade Brasileira de Psicanálise. "Algumas vezes, o paciente fica mais desconfiado em suas relações e surgem questões relacionadas ao desamparo."

    Segundo o psicanalista Márcio Giovannetti, também da Sociedade Brasileira de Psicanálise, quando se perde a confiança em um governo, um sentimento próximo ao pânico começa a se desenvolver dentro de cada um.

    "Nesses momentos, as relações pessoais tornam-se extremamente difíceis, e conflitos que estavam razoavelmente administrados assumem proporções enormes", afirma.

    Reiszfeld acha que o modelo político brasileiro é todo baseado no fisiologismo e chegou a um limite. Ele se lembra da crise econômica global de 2008/2009 e de como tirou lições daquele período. Depois, um período de crescimento e, finalmente, uma nova crise agravada pela política. "Não dá para ser tão volátil, isso tira o tesão", desabafa.

    Ele ainda não decidiu se, de fato, trocará o Brasil pelos EUA, mas já acompanha outra variável que nada tem a ver com a política nacional, a possível eleição do republicano Donald Trump e sua plataforma anti-imigrantes. "Isso ainda não entrou na conta, mas acho meio impossível ele ganhar", diz.

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