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    Minha História

    Família 'foi toda destruída', relata irmã de vítima de cratera do metrô

    (...) Depoimento a
    ROGÉRIO PAGNAN
    FLÁVIO FERREIRA
    DE SÃO PAULO

    18/10/2016 02h00

    Eduardo Anizelli/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 14-09-2016, 18h00: Retrato da Marli, irma de motorista da Van engolida pela cratera, uma das 7 vitimas fatais do acidente que completa dez anos em janeiro. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, COTIDIANO)
    Retrato da Marli, irmã de motorista da Van engolida pela cratera

    RESUMO A desempregada Marli Aparecida Leite, 49, perdeu o irmão no acidente nas obras da linha 4 do metrô em Pinheiros, em janeiro de 2007.

    Reinaldo Aparecido Leite, então com 40 anos, era motorista da van engolida pela cratera em uma rua do entorno do canteiro de obras. Segundo a irmã, como num efeito dominó, a família acabou destruída depois da tragédia –com parentes em depressão ou afastados uns dos outros

    Leia seu depoimento à Folha.

    *

    Minha mãe me ligou desesperada dizendo que meu irmão havia caído em um buraco. Disse para ela: "Calma, mãe, eu vou lá rebocá-lo. Me diga onde é que vou lá agora".

    Não tinha, naquele momento, a mínima noção do tamanho daquela tragédia. Só entendi parte dela quando vi o tamanho da cratera. Fui uma das primeiras a chegar no local e até gritei com os operários para dizer que meu irmão estava lá dentro –que era o motorista de uma van que passava pela rua.

    Havia um monte de caminhões, carregados de terra, estacionados lá perto e meu temor era que soterrassem aquele buraco e nunca mais fôssemos encontrá-lo.

    Nós dizíamos que havia uma van ali dentro, mas eles não acreditavam. Só aceitaram isso quando, quase dez horas da noite [o acidente ocorreu perto das 15h], o rastreador do veículo indicou que ele estava lá dentro mesmo.

    Dez anos atrás
    Acidente em obras da linha 4-amarela do metrô de SP ocorreu no dia 12.jan.2007

    Dormi muitos dias ao lado da cratera esperando por ele. Tinha muita esperança de que meu irmão fosse escapar dali com vida. Seria mais uma de tantas enrascadas das quais já tinha escapado.

    Em 2003, por exemplo, foi espancado após se envolver com uma mulher casada. Fui eu quem o buscou, quase morto, no final da Parada de Taipas [zona norte]. Sobreviveu.

    Depois disso, um ano mais tarde, Reinaldo foi baleado por desconhecidos. Levou um tiro no peito, mas, graças a Deus, o projétil saiu pelo braço sem deixar sequelas. Eu o levei até ao hospital. Só não consegui salvá-lo daquele buraco. Suas sete vidas tinham acabado.

    Reinaldo era um dos meus seis irmãos, na escadinha, o terceiro mais velho. Era uma pessoa maravilhosa, de bem com a vida e cheia de sonhos. Ele era casado, tinha a mulher e três filhos. Uma menina de cerca de oito anos, um menino de 17 e a moça mais velha, com seus 25 anos.

    Depois que receberam a indenização, todos se afastaram, cada um foi para seu lado e não tivemos mais contato. A tragédia foi muito maior. Atingiu todas as pessoas da minha família. Inclusive, não demorou a chegar à minha própria casa.

    Com a morte de meu irmão, minha mãe ficou tão abalada que achei que não fosse sobreviver. Por isso, fui para casa dela, onde fiquei por 30 dias dando apoio. Quando voltei, porém, meu marido tinha arrumado outra mulher e se instalado com ela na minha casa.

    Um baque enorme. Não tão grande, porém, ao saber que minha filha de 15 anos estava com um ex-presidiário, que tinha acabado de sair da prisão, com quem iria morar. Entrei em depressão, assim como quase todos os meus irmãos. O mais velho se refugiou nas bebidas e nas drogas e se matou com elas.

    Minha irmã se refugiou na comida –passou a comer compulsivamente– e morreu em decorrência de uma obesidade mórbida. Até meus pais passaram a beber muito porque não têm mais razão de viver.

    Enfim, a família que éramos –muita unidade, pelo amor fraterno– não existe mais. Foi toda destruída. Acabou. Acabou. Acabou.

    Aquela tragédia foi como um tsunami em nossas vidas. Como num efeito dominó, Reinaldo caiu e fomos caindo um após o outro. Não sobrou mais nada.

    Sabemos que a Justiça no Brasil é assim: o dinheiro fala mais alto, sempre. Ainda assim, esperávamos que alguém fosse pagar por isso. Como é possível alguém provocar uma tragédia dessas e sair impune assim?

    Houve pagamento de indenização, sim, mas nenhum dinheiro no mundo paga o que fizeram com nossa família. Acredito, sinceramente, que essas pessoas vão pagar um dia. Pela Justiça divina, lógico, porque essa, dinheiro nenhum consegue comprar.

    Tenho fé. Acredito muito em Deus e é nele que me agarro todos os dias para continuar vivendo.

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