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    Ação de Doria para moradores de rua tem de demissão a autoestima em alta

    JULIANA GRAGNANI
    DE SÃO PAULO

    10/04/2017 02h00

    Ze Carlos Barretta/Folhapress
    Moradores do albergue Boraceia, em São Paulo, durante o treinamento da Rede Cidadã
    Moradores do albergue Boraceia, em São Paulo, durante o treinamento da Rede Cidadã

    Na tarde em que lançou uma parceria entre prefeitura e o McDonald's para dar vagas de emprego a moradores de rua, o prefeito João Doria (PSDB) registrou nas redes sociais que havia conhecido gente como o Marcos.

    O rapaz começaria a trabalhar na lanchonete graças ao programa Trabalho Novo, bandeira da gestão tucana para os sem-teto de São Paulo.

    Mas Marcos, que havia posado para fotos com um Doria vestido de terno escuro e boné com o símbolo do McDonald's, não vai ao emprego há duas semanas. Trabalhou na lanchonete por oito dias, teve um surto e foi internado.

    O Trabalho Novo começou no fim de janeiro com a meta de empregar até o final deste ano 20 mil pessoas, ou seja, todos os sem-teto de SP. Para tanto, Doria pede a empresários que abram essas vagas.

    Até aqui, de um total de 230 contratados por meio do programa, 14 foram demitidos.

    Há também reclamações de discriminação, uso de drogas e relatos de quem, mesmo contratado por uma empresa, segue dormindo na calçada e fora da regra do programa de morar em um albergue.

    Por outro lado, também há aqueles que aproveitaram a oportunidade de trabalho para guardar dinheiro e alugar a casa própria e os que já fazem planos de usar o primeiro salário para ajudar a sustentar a família pela primeira vez.

    "Não tenho despertador. Durmo na rua. Como ia acordar para entrar às 6h? Acordava às 3h para não atrasar, aflito", diz Charles Queiroz, 29, que trabalhou na limpeza do Hospital das Clínicas enquanto dormia no Anhangabaú, no centro. Ele diz ter sido vítima de discriminação.

    "[No hospital] não sabiam que éramos da rua. Mas funcionários questionaram porque recebíamos marmita e eles não. Quando souberam, ficou a maior fofoca", diz.

    Sem receber vale-transporte nos primeiros dias, Cristiane Santos, 35, diz que andava 4 km do terminal Bandeira, onde dorme na rua, até o hospital e que também não entende por que foi demitida.

    Com o primeiro salário, um homem de 40 anos que não quis ser identificado consumiu crack. "Não resisti. Estou há nove dias sem trabalhar. Fico com dor no corpo, deprimido. Não consegui voltar."

    A prefeitura diz que os casos de Queiroz e Santos foram exceções, já que o programa não emprega sem-teto que ainda dorme na calçada. Eles estão entre os 14 demitidos da Centro, empresa que presta serviços de limpeza.

    No caso das demissões, a prefeitura admite um erro. "As empresas têm uma cultura consolidada há muitos anos. Demora até adaptar", afirma o secretário-adjunto de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará.

    A maioria foi demitida por faltas, segundo a prefeitura. Mas um funcionário foi dispensado porque esqueceu o crachá e pegou o de uma colega emprestado. Esse caso motivou a criação de um "RH compartilhado", diz Fernando Alves, fundador da Rede Cidadã, instituição de Belo Horizonte que treina pessoas para o mercado de trabalho.

    Essa ONG faz o meio de campo entre os moradores de rua e as empresas. Agora, diz ele, demissões só acontecerão após decisão conjunta.

    'ACREDITE'

    Antes do início do trabalho, os moradores de rua passam por um curso "comportamental" de uma semana, ministrado pela Rede Cidadã.

    Na manhã de quarta (5), um grupo de 30 pessoas participava do treinamento em um albergue, na zona norte. Descalços e deitados em tapetes de ioga, escutavam uma voz proferindo palavras de incentivo, como "acredite", "sem pressa", "leve". O fundador da ONG diz que é uma "técnica de renascimento", "metodologia que acelera a tomada de consciência sobre si" e que isso ajuda a gerar estabilidade no trabalho.

    "Foi bom porque falamos sobre nossos traumas", diz Ricardo Sabioni, 29, que trabalha como pedreiro, vive em um albergue, mas quer um novo emprego com maior remuneração para sustentar a filha.

    Como ele, outros moradores de rua estão empolgados com o programa. Por enquanto, a maior parte dos cargos é em trabalhos de faxina. A gestão Doria diz já ter assegurado um total de 9.090 vagas.

    META AMBICIOSA

    Para conseguir atingir a meta de empregar 20 mil pessoas até dezembro, Doria precisa dar trabalho a 2.196 pessoas por mês. Isso se todas as que moram na rua quiserem e estiverem aptas ao trabalho.

    A transição para o mundo formal é delicada, avaliam especialistas. "É necessária uma reorganização em relação ao autocuidado e adaptação aos horários. É um trabalho contínuo. Não pode ser em uma semana e por atacado", diz a psiquiatra Carmen Santana, professora do Departamento de Saúde da Unifesp e integrante do comitê PopRua, da prefeitura. "Uma estratégia independente de setores como a saúde é complicada."

    Segundo Alves, da Rede Cidadã, a ONG fará acompanhamentos: das empresas, periodicamente, e dos moradores de rua, sob demanda deles. E está fazendo reuniões antes de receberem o primeiro salário, com orientações para que não gastem tudo de uma vez ou com drogas.

    Ele diz não haver "métrica" para saber se os moradores de rua estão prontos para o trabalho. "Nada promove mais o desenvolvimento humano que o trabalho, e o trabalho é a própria métrica para dizer se estão bem."

    Ze Carlos Barretta/Folhapress
    Programa tem meta de empregar 20 mil pessoas até o fim de 2017
    Programa tem meta de empregar 20 mil pessoas até o fim de 2017

    O censo de 2015 mostra que 30% das pessoas que dormem nas calçadas dizem ter depressão; 27% dores crônicas; 84% fazem uso de álcool e/ou drogas; 70% dos que têm até 30 anos passaram por instituições como prisões, clínica de recuperação de drogas, Fundação Casa, orfanato. O tempo médio na rua é de seis anos.

    "Moradores de rua não são iguais", diz o psicólogo greco-canadense Sam Tsemberis, criador do conceito de "Housing First" (primeiro, casa), política disseminada nos EUA que visa dar teto aos que não têm. Ele defende, porém, dar aos moradores de rua o que eles disserem ser melhor para deixar as calçadas.

    A pesquisa de 2015 revela que 30% elegem ter moradia permanente como o fator que mais os ajudaria a sair da rua. Emprego foi a escolha de 27%; 14% indicaram a necessidade de superar a dependência de álcool e drogas.

    Para Tsemberis, "assim como há diferentes tipos de moradores de rua, é necessário ter diferentes programas para atender as necessidades específicas de cada um".

    À frente do projeto da prefeitura, Sabará admite que ter como meta zerar os moradores de rua em São Paulo por meio do trabalho "é ambicioso". "Mas vamos conseguir. Não vou deixar de dar oportunidades por receio. Hoje essas pessoas estão com nada. Do nada, com o Trabalho Novo, vão para alguma coisa."

    *

    TRABALHO NOVO

    Programa quer empregar todos os sem-teto até o fim do ano

    14 moradores de rua demitidos desde janeiro
    230 moradores de rua contratados desde janeiro
    20.000 meta de número de empregados até dez.2017
    9.090 vagas de emprego anunciadas pela prefeitura

    número de sem-teto - Segundo censo de 2015, em milhares

    PERFIL DOS MORADORES DE RUA - 41 anos é a idade média, e 6 anos, o tempo?médio nas ruas

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