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    Obra 'Odiolândia' expõe reações de ódio contra usuários de crack em SP

    FERNANDA MENA
    DE SÃO PAULO

    05/09/2017 02h00

    "Sejamos sensatos, tem que matar, senão não resolve." A frase parece se referir a alguma bactéria ou outro agente infeccioso, mas foi registrada nas redes sociais no Brasil em referência a pessoas: os usuários de crack que circulam pela região central da cidade de São Paulo.

    A morte, a tortura e o extermínio foram abertamente evocados em comentários sobre as operações realizadas, em maio e junho deste ano, pela Polícia Militar do governo Geraldo Alckmin (PSDB) e pela gestão João Doria (PSDB) na cracolândia. Alvo de críticas, as ações foram celebradas em milhares de postagens, muitas delas com mensagens de ódio.

    Rodrigo Capote/Folhapress
    Frase que integra a exposição "Odiolândia", no Sesc 24 de Maio
    Frase que integra a exposição "Odiolândia", no Sesc 24 de Maio

    Garimpados pela artista Giselle Beiguelman, esses comentários se tornaram a matéria-prima de "Odiolândia", obra que integra a exposição "São Paulo Não É Uma Cidade - Invenções do Centro", em cartaz no Sesc 24 de Maio.

    "Tive notícia das operações pelas redes porque estava fora do país, e me impressionou muito o teor das postagens", conta Beiguelman, pesquisadora e também professora da Faculdade de Arquitetura da USP. "A obra nasceu de um corpo a corpo com os comentários, que fui documentando e salvando no computador."

    O resultado do trabalho é um vídeo em que 20 frases correm em letras brancas numa tela preta dentro de uma sala escura. Ao fundo, ouve-se o áudio de uma das operações realizadas, com o som de seus gritos e bombas.

    "Retirar as imagens das operações permitiu que a violência desse imaginário do ódio viesse à tona com toda a sua contundência", afirma. A primeira versão de "Odiolândia" tinha 50 minutos. Ao longo de dois meses, Beiguelman foi destilando o ódio dos comentários até chegar a uma versão de cinco minutos.

    "O que publicizei é ínfimo em termos de quantidade. Mas ninguém aguentaria mais do que isso. E eu tinha a preocupação de reter as pessoas e fazê-las encarar essa questão", conta a artista, que revela ter ficado noites sem dormir durante o processo. "Tudo era muito pesado." O impacto das frases nos visitantes da exposição é evidente na expressão de quem deixa a sala de "Odiolândia".

    Lívida, a publicitária Thais Alves, 30, mal conseguia falar: "É chocante. Vou sair para respirar um pouco". O estudante de moda Murilo Ashiguti, 21, não tolerou os cinco minutos do vídeo. "Não aguentei. É muito ódio. Como alguém pode pensar essas coisas?", espantou-se.

    "A obra revela um distanciamento do outro e uma falta de informação muito grande, além de mostrar o que as pessoas são capazes de manifestar a partir de um computador, por trás das máscaras das redes sociais", diz o estudante Eloy Mansani, 21, que assistiu ao vídeo até o fim.

    Entre os comentários que integram o trabalho estão: "Era melhor ter deixado todos juntos e testar nesses zumbis algumas armas químicas ou simplesmente tacar fogo em todos" e "A solução para esses viciados e traficantes é colocá-los no navio e soltá-los em alto-mar. A maioria desses viciados são nordestinos".

    "À cracolândia são somados bodes expiatórios como nordestinos, muçulmanos, comunistas e gays. Fala-se abertamente em limpeza étnica, purificação da sociedade pelo extermínio de terminados indivíduos, e 'soluções finais'. Tudo sem nenhum constrangimento", diz a artista.

    A poucos metros da sala de "Odiolândia", a obra de Igor Vidor alerta para os perigos desse tipo de desejo ao resgatar a história da Operação Camanducaia, ocorrida em 1974, na ditadura militar. Na ocasião, policiais levaram à força quase cem crianças e adolescentes em situação de rua do centro da capital paulista. Eles foram espancados e depois abandonados na cidade mineira de Camanducaia.

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    SÃO PAULO NÃO É UMA CIDADE —INVENÇÕES DO CENTRO
    ONDE Sesc 24 de maio, 5º andar
    QUANDO De ter. a dom, das 9h às 21h; até 28.jan de 2018
    ENTRADA Gratuita
    ENDEREÇO Rua 24 de maio, 109, República (centro)

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