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    Ministro do STF defende fim da restrição à doação de sangue por gays

    NATÁLIA CANCIAN
    LETÍCIA CASADO
    DE BRASÍLIA

    19/10/2017 19h06

    Fabio Braga - 10.ago.2012/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 10-08-2012: O operador de trafego, Claudio de Lima, 46, doa sangue no hemocentro. Agentes da Compania de Engenharia de Trafego (CET) fazem paralizacao parcial em ato de doacao de sangue na fundacao Pro-Sangue, no Hospital das Clinicas. Os agentes reivindicam melhores salarios e condicoes de trabalho. (Foto: Fabio Braga/Folhapress, COTIDIANO).
    O ministro Edson Fachin defendeu a doação de sangue por homens gays

    O ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), defendeu nesta quinta-feira (19) que homens gays não sejam impedidos de doar sangue por conta de sua orientação sexual.

    Fachin votou em uma ação que questiona duas portarias do Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), as quais impedem que homens gays possam doar sangue por até 12 meses após terem relações sexuais. Ele entendeu que a proibição estimula o preconceito.

    "O estabelecimento de grupos - e não de condutas - de risco incorre em discriminação, pois lança mão de uma interpretação consequencialista desmedida que concebe especialmente que homens homossexuais ou bissexuais são, apenas em razão da orientação sexual que vivenciam, possíveis vetores de transmissão de variadas enfermidades, como a Aids", afirmou o ministro.

    "O resultado de tal raciocínio seria, então, o seguinte: se tais pessoas vierem a ser doadores de sangue devem sofrer uma restrição quase proibitiva do exercício de sua sexualidade para garantir a segurança dos bancos de sangue e de eventuais receptores", afirmou.

    Hoje, as regras gerais de doação de sangue são definidas pelas portarias 158/2016, do Ministério da Saúde, e pela resolução 34/2014, da Anvisa.

    O texto do ministério considera "inapto" a doar sangue por um período de 12 meses "homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou parceiras sexuais destes". Trecho semelhante consta na norma da Anvisa.

    Em geral, o governo atribui essa restrição "temporária" a dados epidemiológicos que apontam aumento no risco de infecção por doenças sexualmente transmissíveis entre esses grupos -caso do HIV, por exemplo.

    Ao votar, Fachin rebateu esse argumento. "Entendo que orientação sexual não contamina ninguém. O preconceito sim", afirmou ele, para quem a regra é inconstitucional. "Tais normas limitam sobremaneira a doação de sangue de algumas pessoas pelo fato de serem como são", disse.

    Segundo o ministro, as normas para seleção de doadores de sangue "podem e devem estabelecer exigências e condicionantes". Estes, porém, não devem ser baseados "na forma de ser e existir das pessoas", nem em grupos de risco, mas em comportamentos de risco, disse. Após o voto do relator, a sessão foi suspensa. A previsão é que o julgamento seja retomado na próxima quarta-feira (25).

    'DISCRIMINATÓRIA'

    A ação que questiona a restrição à doação de sangue por gays partiu do PSB (Partido Socialista Brasileiro), para quem a norma é discriminatória. "Muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam. E é isso que a ação pretende evitar", afirmou o advogado Rafael Carneiro, que representa o partido, durante o julgamento. Para Carneiro, a atual medida vai contra outras normas do ministério, que apontam que a orientação sexual não deve ser impeditiva para doação de sangue.

    "Um dos argumentos é a incidência maior de DSTs [doenças sexualmente transmissíveis] nos homossexuais. Mas também é maior entre aqueles sem curso superior. E na população parda em relação à população branca", compara.

    "Será que teremos que considerar essas pessoas como pessoas de segunda classe? É o que está acontecendo hoje. [Homossexuais] vão aos bancos de sangue e saem de lá com um não, pelo simples fato de serem quem são", defendeu a advogada Patrícia Gorisch, do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família).

    Para advogados que representam os direitos dos homossexuais, a atual norma retoma o conceito de grupo de risco, enquanto novas políticas em saúde já consideram a análise de "comportamentos de risco".

    "Ninguém se opõe a rigoroso processo de triagem em razão da janela imunológica", disse o advogado Rafael Kirchhoff, do Grupo Dignidade, para quem o ideal seria analisar critérios específicos para inaptidão, como maior rotatividade de parceiros e ausência da prática de sexo seguro.

    Segundo ele, a regra atual acaba indiretamente por proibir relações sexuais entre homossexuais. "Para alcançar um direito, o de doar sangue, é negado outro: o direito de viver e expressar sua sexualidade", afirma.Outro argumento citado por advogados para mudança na norma é a escassez nos bancos de sangue, situação que poderia ser contornada caso não houvesse a restrição atual à doação por gays.

    "Deixa-se de doar anualmente, com base nessa restrição imposta, 19 milhões de litros de sangue. Há um número assombroso de vidas que poderiam ser salvas e acabam desassistidas", afirmou Gustavo da Silva, da Defensoria Pública da União.

    Sérgio Lima/Folhapress
    O diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI Toni Reis
    O diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI Toni Reis, que diz que restrição estigmatiza gays

    OUTRO LADO

    Representantes do Ministério da Saúde e da Anvisa não se manifestaram no julgamento.

    Em nota enviada na quarta (18), no entanto, o Ministério da Saúde negou discriminação e disse que os critérios para seleção de doadores de sangue "estão baseados na proteção dos receptores, visando evitar o risco aumentado para a transmissão de doenças" por meio da transfusão.

    "De acordo com a portaria, homens que fazem sexo com homens são considerados inaptos para a doação de sangue por 12 meses e não de forma definitiva", informa a pasta. A restrição, diz, atende a recomendações da Organização Mundial da Saúde "e está fundamentada em dados epidemiológicos presentes na literatura médica e científica nacional e internacional, não tendo relação com preconceito do poder público ou que leve em consideração a orientação sexual do candidato".

    Entre esses dados, o ministério cita indicadores que apontam que homens que fazem sexo com homens apresentam maior prevalência de infecção por HIV quando comparados com a população em geral –10,5%, enquanto a taxa geral é de 0,4%.

    Para a pasta, o prazo de 12 meses segue o princípio da precaução. "É de acordo com o princípio da precaução que se estabelece o período de 12 meses de inaptidão para situações específicas, ainda que a janela imunológica esteja atualmente reduzida, tais como a realização de tatuagens e procedimentos cirúrgicos variados."

    Já a Anvisa, por meio de nota técnica, afirma que "as normativas brasileiras consideram vários critérios de inaptidão de doadores de sangue associados a diferentes práticas e situações de risco acrescido e não se restringe apenas aos homens que fizeram sexo com outros homens". Entre os outros casos em que a doação é impedida por 12 meses está ter feito sexo em troca de dinheiro ou drogas, ter sido vítima de violência sexual, ter feito piercing ou tatuagem sem condições de avaliação quanto à segurança do procedimento, histórico recente de infecções, etc.

    A agência diz ainda que medidas semelhantes são adotadas em outros países, como os Estados Unidos –que passou em 2015 de uma inaptidão definitiva para que gays doassem sangue para restrição de 12 meses após a relação sexual, como ocorre na norma brasileira.

    No documento, a Anvisa defende ainda que as regras atuais não excluem homens que fazem sexo com outros homens de doarem sangue, "desde que atendam aos requisitos de triagem clínica estabelecidos".

    "Cabe ao serviço de hemoterapia atender e orientar com respeito ao candidato a doação de sangue explicitando da melhor forma possível sobre os critérios técnicos e condições de aptidão para coleta de sangue com segurança", informa.

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