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    Redução de 'novos surdos' e evasão explicam tema da redação do Enem

    ANGELA PINHO
    DANIEL MARIANI
    DE SÃO PAULO

    10/11/2017 02h00

    Tema da redação do Enem, o "desafio da formação educacional de surdos" foi ilustrado na prova com um gráfico indicando uma queda de matrículas entre esse público –algo que nem o Ministério da Educação soube explicar.

    Agora, tabulações feitas pela Folha nos microdados do censo escolar jogam luz sobre o que de fato ocorreu. Ao mostrar uma redução de 23% no universo de estudantes surdos de 2011 a 2016, o gráfico dá a entender que esse público estaria deixando a escola. Mas esse é apenas um entre dois outros fatores: a queda no número de alunos que adquirem a surdez ao longo da vida e a própria transição demográfica por que passa o Brasil.

    O QUE DIZ O ENEM - Gráfico aponta queda nas matrículas de surdos (em milhares)*<br><br>

    A mudança do perfil populacional atinge todo o país: com menos crianças em idade escolar, houve uma queda geral de 5% nas matrículas da educação básica de 2011 a 2016. Essa redução ocorreu entre crianças com e sem deficiência e ajuda a explicar uma parte do que está acontecendo com os surdos.

    QUEDA GERAL NAS MATRÍCULAS - Total de alunos na educação básica pública e privada, em milhões*

    Um outro fator, porém, é específico dessa deficiência. Todos os anos, pessoas que não eram surdas perdem a audição. Desde 2012, isso ocorre cada vez menos nas escolas, segundo os registros do censo da educação básica. O levantamento é coordenado pelo Inep, instituto de pesquisas ligado ao Ministério da Educação. Nele, cada escola do país preenche um cadastro que inclui a eventual deficiência de cada aluno.

    Esses dados mostram que a quantidade de estudantes que antes tinham audição e, depois, passaram a ser classificados como surdos caiu 44% daquele ano para 2016 –de 4.927 para 2.743, ou de 14% para 10% do total de estudantes surdos.

    Leonardo Wen/Folhapress
    Ricardo Boaretto, 34, e Isabelle Barboza, 27, que são surdos e fizeram o Enem no Rio; tema foi elogiado
    Ricardo Boaretto, 34, e Isabelle Barboza, 27, que são surdos e fizeram o Enem no Rio; tema foi elogiado

    Um fator que pode ajudar a entender essa queda é o maior acesso a tratamentos, afirma José Ricardo Gurgel Testa, presidente da Sociedade Brasileira de Otologia.

    Ele explica que grande parte dos casos de surdez adquirida é causada por infecções bacterianas, como a meningite. "Esses casos têm diminuído com o uso de medicamentos cada vez melhores e com um maior acesso da população a eles", afirma.

    queda nos novos surdos - Alunos que eram ouvintes e passaram a ser classificados como surdos, em milhares

    Além disso, também tem se disseminado o uso de tecnologias que amplificam a audição, algo que pode interferir na forma como os alunos com deficiência são retratados no censo pelas escolas. É o caso do implante coclear, feito na parte interna da orelha.

    Ele não dispensa a necessidade de atendimento especial ao aluno, já que, principalmente no início, o recém implantado enfrenta dificuldades para entender os sons.

    EVASÃO

    O atendimento especializado aos surdos, porém, tem falhado no Brasil, de acordo com educadores e estudantes com a deficiência.

    As dificuldades vão desde o professor virar as costas para o aluno que precisa de leitura labial até a falta de tradutores de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e de material didático diversificado para esse público.

    A falta de preparo das escolas para receber os surdos é apontada como um dos fatores que aumentam a evasão escolar desse grupo.

    Para dimensionar o tamanho do problema, a Folha verificou a trajetória escolar de todos os alunos que tinham até 11 anos de idade em 2011. Isso é possível porque cada estudante tem um código único no censo.

    Cinco anos depois, 15% dos alunos surdos não estavam mais na escola. Entre os que não tinham a deficiência, o índice era de 9%.

    Abandono escolar - Alunos que tinham até 11 anos em 2011 e não estavam mais na escola em 2016

    Para Martinha Clarete Dutra dos Santos, ex-diretora de políticas de educação especial do Ministério da Educação, é preciso investir em formação de professores e intérpretes e mudar a cultura das escolas, acostumadas ao atendimento "padronizado".

    Em sua opinião, porém, a evasão não pode servir de pretexto para que alunos surdos voltem a ser segregados em classes exclusivas, como antes ocorria no país.

    "Historicamente, esse tipo de política sempre resultou em marginalização, e o Brasil assumiu diversos compromissos internacionais de reverter isso", diz ela, atualmente pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "Apartar [os alunos surdos dos demais] é uma afronta aos direitos humanos. A inclusão é fundamental para as pessoas com e sem deficiência."

    DEFICIÊNCIAS

    Também a partir dos dados do censo escolar, estudo feito pelo movimento Todos pela Educação mostra que a redução do número de matrículas entre 2011 e 2016 ocorreu não só entre surdos, mas também entre pessoas com deficiência auditiva (queda de 3%), surdocegos (32%), cegos (10%) e pessoas com baixa visão (8%).

    O movimento vai na contramão do que aconteceu com outros grupos de crianças com necessidades especiais. Entre autistas, por exemplo, houve alta de 169% nas matrículas, atribuída não só à inclusão, mas também a uma possível ampliação do diagnóstico.

    PANORAMA GERAL DAS DEFICIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO - Número de pessoas com deficiências matriculadas em escolas públicas e privadas

    Entre pessoas com deficiência física, também houve aumento, de 22%. Uma possibilidade levantada é que a adaptação para pessoas com deficiência física exija da escola um esforço que pode ser concentrado: feita a intervenção de infraestrutura necessária (elevador, por exemplo), resolve-se boa parte do problema da acessibilidade –ainda que seja preciso avançar mais nesse setor.

    Já com outros grupos, como o dos surdos, há necessidade contínua de formação de profissionais e de atenção individual ao aluno.

    Chama a atenção também no estudo do Todos pela Educação a idade avançada de ingresso no ensino fundamental entre alunos com necessidades especiais: 9,6 anos, quase três a mais do que os demais estudantes.

    Para Priscila Cruz, presidente-executiva da entidade, o país deveria aproveitar que a discussão virou o centro das atenções para fazer um diagnóstico preciso da educação especial e adotar medidas de formação e infraestrutura.

    "Esse tem sido um tema jogado para baixo do tapete em um momento em que o país tem dificuldade de avançar em grandes médias", diz Cruz, ressaltando a importância de a escola fazer um esforço para lidar com as diferenças entre os estudantes.

    Colaborou FÁBIO TAKAHASHI, de São Paulo

    *

    DIVERSIDADE NA SURDEZ
    Os tipos de deficiência e suas nomenclaturas

    Surdez leve ou moderada
    - Deficiente auditivo: pode usar aparelhos auditivos comuns

    Surdez severa ou profunda
    - Surdo sinalizado: se comunica por meio da Libras (Língua Brasileira de Sinais)
    - Surdo oralizado: usa a língua portuguesa (ainda que com 'sotaque') e faz leitura labial
    - Implantado: usa implante coclear, aparelho que pode recuperar boa parte da audição
    - Bilíngue ou bimodal: fala português oral e Libras

    "Surdo-mudo"
    Esta expressão está incorreta, porque todo surdo se comunica de alguma forma

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