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    Artista cria em meio ao inferno da favela: 'Consigo ver a beleza da Maré'

    (...) Depoimento a
    ELIANE TRINDADE
    EDITORA DO PRÊMIO EMPREENDEDOR SOCIAL
    PATRICIA PAMPLONA
    DE SÃO PAULO

    26/01/2016 02h00

    Na Lata
    Jandir Leite Moreira, 44, com seus painéis de arte sacra ao fundo
    Jandir Leite Moreira, 44, participante do pré-vestibular da Redes da Maré, com seus painéis ao fundo

    Jandir Leite Moreira, 44, nasceu e cresceu no Complexo da Maré. Foi para o seminário em a Brasília, onde se formou em filosofia, mas não seguiu a vida religiosa.

    Seu destino era retornar ao maior conjunto de favelas do Rio. "Eu amo a Maré, amo cada pedacinho, a minha história está aqui."

    Foi durante seu período no Planalto Central que desenvolveu uma técnica pioneira em arte sacra. Borda em tecido telas sobre temas religiosos, ofício que aprendeu com uma artista espanhola.

    "Estou na tentativa de conseguir chegar à faculdade Belas Artes e fazer o curso de licenciatura em artes plásticas."

    Passou a frequentar o cursinho pré-vestibular oferecido pela ONG Redes da Maré, finalista do Prêmio Empreendedor Social 2015.

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    Apesar da infância pobre, os estudos sempre foram prioridade. Algo que tenta passar para as filhas hoje.

    "Uma já fala em ser engenheira", conta o pai, orgulhoso de dar educação e perspectivas para a prole mesmo morando em uma favela, onde floresce sua arte e também esperança. "O amor dos meus pais fez de mim um artista."

    Leia a seguir o depoimento de Jandir à Folha.

    *

    A minha história aqui na Maré começou dentro do ventre da minha mãe. Eu fui gerado e nasci onde ela mora até hoje, a antiga rua C, hoje rua dos Lírios. Cresci aqui dentro, conheci as palafitas, toda a realidade de antigamente.

    Eu amo a Maré, amo cada pedacinho, a minha história está aqui.

    Minha mãe é analfabeta. Meu pai estudou até o 4º ano. Ele ensinou a mim e aos meus irmãos a ler, sempre nos colocou na escola e disse sobre a importância de estudar.

    Frequentei a Escola Nova Holanda, que fica em frente ao armarinho, onde morava a Eliana [Sousa Silva, fundadora da Redes da Maré] com os pais. Ali eu comprava minhas balas, meus lápis, minhas borrachas.

    Fui seminarista, morei em Brasília. Me formei em filosofia. Dentro do seminário, tive contato com algumas obras de arte e foi lá que conheci o trabalho desenvolvido por uma artista plástica chamada Rosa Cubero [reconhecida pela tapeçarias e já expôs em várias partes do mundo].

    Fiquei muito curioso de ver como era feito aquele trabalho. Tinha aptidão, pois fiz desenho de moda, figurino. Resolvi tentar.

    Depois [do seminário] retornei ao Rio, onde conheci a minha mulher. Casamos e eu comecei minha vida de artista plástico.

    Em 1998, consegui ir a Madri para mostrar o meu trabalho para a Rosa. Ela ficou encantada, me recebeu muito bem.

    Voltei para o Brasil e continuei a usar a técnica. Faço um trabalho pioneiro com bordados. É um processo um pouco longo. Primeiro, desenho num papel. Depois, pego o tecido e uma entretela e colo. Então, eu redesenho no tecido e começo a fazer o bordado.

    Em média, um trabalho pequeno leva 30 dias. Dependendo do tamanho do painel, é quase um ano.

    MARÉ DE MUDANÇAS

    Vendo muitos jovens e até senhoras daqui da Maré entrar na faculdade, cresceu em mim o desejo também de ter uma formação acadêmica.

    Por isso me matriculei no cursinho pré-vestibular. É uma tentativa de conseguir chegar à faculdade de Belas Artes e fazer o curso de licenciatura em artes plásticas.

    Acho que a arte é a forma de se expressar, de você mostrar o que sente e também de transformar as pessoas.

    Eu não consigo me livrar da arte, ela está dentro de mim e desde moleque sempre fiz muitas coisas, sempre fui muito criativo.

    Hoje, eu vejo que com a minha arte eu posso transformar as pessoas e contribuir de alguma forma [para a comunidade]. Por isso essa insistência de estar aqui.

    Me comove muito conhecer muitos moradores da Maré, que são pessoas trabalhadoras, honestas e querem também dar o melhor para os seus filhos.

    É curioso trabalhar com arte e viver em uma comunidade cheia de problemas. Temos famílias destruídas, que não conseguem passar valores para as crianças. Tem o poder paralelo [do tráfico].

    Por isso, muitos amigos de fora sempre me perguntam: como eu consigo traduzir na minha arte essa beleza morando num lugar que para eles seria quase um inferno?

    Não consigo ver assim. Não tenho esse olhar para a Nova Holanda, a Maré e todo o complexo. Vejo aqui pessoas com sentimentos, que amam, que precisam de ajuda, que querem ser transformadas.

    Então, simplesmente eu consigo ver essa beleza. De olhar para dentro das pessoas e acreditar nelas. Tenho a esperança que um dia toda a Maré será de fato um lugar maravilhoso. Já é, mas será melhor ainda.

    Eu já dei aula de desenho aqui, fiz várias oficinas aqui. Já passaram muitas crianças pelas minhas mãos. Com potenciais incríveis. Bastava uma ajuda, um investimento melhor para que elas pudessem se desenvolver.

    Tenho projetos. Sonho de poder trabalhar com essas crianças, de ensiná-las a desenhar, desenvolver atividades manuais.

    Por isso, penso em pegar essa técnica que desenvolvi dentro da arte sacra e dar um ar mais contemporâneo.

    Quero retratar, por exemplo, momentos da infância que eu tive, quando brincávamos nas ruas. Fazer painéis sobre brincadeiras e brinquedos que foram se perdendo com a modernidade.

    É uma forma de mostrar às crianças de hoje que é possível brincar mesmo sem dinheiro, sem tantos brinquedos bons. Com um pouco de criatividade é possível ser feliz.

    EXEMPLO

    Sempre fui uma criança muito pobre. Lembro de todas as necessidades que passei, algumas vezes sem comida, sem brinquedo. Todo Natal, eu não tinha roupa, não ganhava nada [de presente].

    Sempre estudei muito, mas tinha vizinhos que os filhos repetiam de ano e mesmo assim ganhavam bicicleta, videogame.

    A infância das minhas filhas com certeza está sendo muito diferente da minha. Apesar da precariedade, eu digo que elas são muito ricas. É claro que eu não posso dar nada de luxo para elas, mas em comparação àquilo que eu tive como criança, elas são milionárias.

    Elas têm roupas, brinquedos, todos os livros para poder estudar. Muitas vezes, meu pai não conseguia comprar livro para cinco crianças. Eu tinha que escolher entre o de português ou matemática.

    Elas estudam em colégio particular. São bolsistas. Investimos muito nesse sentido. Parei meu trabalho para alfabetizá-las e assim elas puderam fazer uma prova para entrar em uma boa escola.

    Hoje elas estão em colégios excelentes. Uma já fala em ser engenheira. Dizia que ia fazer medicina, mas se apaixonou pelos números. Ganhou a Olimpíada de Matemática.

    O importante é que elas sejam felizes. Para mim, basta. Acredito que o amor dos meus pais fez de mim um artista.

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