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    Médico soropositivo e ex-fisiculturista lidera testes de droga contra a Aids

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    31/12/2014 17h05

    Recém-formado em medicina, o americano Tony Mills recebeu a notícia de que carregava o vírus HIV em meados dos anos 1980.

    Pouco mais de uma década depois, ele se tornou um dos principais especialistas do país no tratamento da doença –e, de quebra, um símbolo sexual da comunidade gay.

    Ocorre que, diante dos problemas de saúde, Mills abraçou o fisioculturismo e venceu a edição de 1998 do concurso International Mister Leather, no qual os candidatos se exibem com roupas de couro.

    "Queria passar uma mensagem de esperança para quem é soropositivo", diz ele.

    Aos 53 anos e ainda em forma, Mills liderou, nos EUA, os testes clínicos do dolutegravir sódico, da GSK, novo medicamento para o tratamento antirretroviral que acaba de ser aprovado para comercialização no Brasil.

    A substância faz parte de uma nova classe de drogas que impedem que o HIV insira seu DNA nas células humanas e, assim, prejudica a replicação do vírus dentro do corpo humano, reduzindo a carga viral. Outros medicamentos contra o HIV usam mecanismos diferentes, como tornar sua a cadeia de DNA defeituosa, por exemplo.

    Uma vantagem dos novos medicamentos, aponta, é a redução dos efeitos colaterais no organismo do doente.

    Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Mills à Folha, feita por telefone.

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    Divulgação
    O médico e pesquisador Tony Mills, especializado no vírus HIV
    O médico e pesquisador americano Tony Mills, especializado no vírus HIV

    Folha - O senhor recebeu a notícia de que tinha sido infectado pelo HIV nos anos 1980. Como era ser soropositivo naqueles anos?
    Tony Mills - Foi extremamente assustador, claro. Eu me mudei para San Francisco em 1984, como bolsista de pesquisa em cardiologia, e em 1986 fiz o teste. O pior é que eu tinha certeza de que o resultado seria negativo.
    Minha contagem de células T [células de defesa do organismo] estava baixa demais para que eu pudesse começar o tratamento com AZT [principal medicamento contra o HIV da época], então os médicos disseram que não havia muita coisa a fazer. Chegaram a sugerir que eu voltasse para a casa dos meus pais para poder passar meus últimos meses de vida com eles.

    Por que o senhor achava que o resultado seria negativo?
    Por causa da minha própria história de vida. Cresci numa família conservadora e sempre pensei em ter apenas um namorado –nunca fui promíscuo, não frequentava saunas nem nada desse tipo. Eu não achava que fizesse parte da categoria de pessoas que corriam risco.
    Mas, como sabemos, basta uma única exposição para que haja o risco do contágio, e foi o que acabei descobrindo.

    Algum tempo depois do diagnóstico, o senhor tentou começar a tratar outros soropositivos, mas acabou desistindo e só voltou a essa área vários anos depois. O que houve?
    Acho que essa dificuldade teve muito a ver com o meu próprio diagnóstico.
    Em meados dos anos 1980, eu era um médico muito jovem, na casa dos 20 anos, que queria ajudar as pessoas, e o problema é que nessa época não havia muito o que oferecer aos pacientes. E, ao vê-los morrer, acabei vendo a mim mesmo nos olhos deles.
    Descobri que não era emocionalmente forte o suficiente para continuar fazendo isso. Então passei a trabalhar como anestesiologista, trabalhei com cardiologia pediátrica, que era uma coisa que eu adorava, era muito legal trabalhar com crianças.
    Mas a Aids, como você deve imaginar, sempre ficava na minha cabeça. Então, em 1996, com um cenário um pouco mais favorável para enfrentar a doença. Foi então que me mudei para Los Angeles e voltei a atuar no ramo.

    Divulgação
    O médico Tony Mills nos anos 1990, quando participava de competições de fisiculturismo
    O médico Tony Mills nos anos 1990, quando participava de competições de fisiculturismo

    E onde o fisioculturismo entra nessa história?
    Bem, quando eu era jovem, sempre gostei de me exercitar, jogava tênis, tinha um interesse por nutrição e bem-estar que eu levei comigo durante meu treinamento médico.
    Então, em 1996, peguei uma pneumonia grave e pensei: esse negócio de Aids está começando a me vencer. Tenho de fazer tudo o que for possível para me tornar forte o suficiente para combatê-la.
    Foi aí que comecei a me dedicar ao treinamento de resistência e ao fisioculturismo. Contratei um personal trainer –é o tipo da coisa que a gente acha que nunca terá dinheiro para pagar, mas, quando você talvez tenha apenas alguns meses de vida, por que se preocupar com isso?
    Meus músculos, por sorte, responderam bem, eu também passei a reagir bem à medicação e, em pouco tempo, voltei a ficar saudável.
    Outra coisa importante é que eu sempre fiz questão de ser totalmente aberto em relação ao meu status de soropositivo. Eu queria mostrar que carregar o vírus da Aids não era motivo para ter uma aparência doentia.

    Esse treinamento acabou fazendo com que o senhor se tornasse campeão de um concurso de beleza e boa forma gay, o Mister Leather. Como acabou competindo?
    Começou meio por acaso. Fiquei sabendo de um grupo da comunidade gay numa cidade onde haveria uma conferência sobre Aids, e uma das coisas que eles estavam organizando era um concurso de beleza e fisiculturismo.
    Cheguei lá alguns dias antes do evento científico do qual participaria. Fiquei meio perdido, sem ter o que fazer na cidade e sem conhecer ninguém, e aí me convidaram para participar do concurso, disseram que seria um jeito bacana de conhecer o pessoal. Topei e acabei eleito Mid Atlantic Mr. Leather.
    Depois veio a competição internacional, para a qual eu tinha me classificado, e fiquei pensando se deveria ir adiante competindo nisso.
    O que eu pensei foi que era uma oportunidade de compartilhar uma mensagem de esperança, de que esse negócio não vai matar a gente. Acabei sendo eleito Mr. Leather International. Foi uma experiência muito bacana, pude viajar e conhecer pessoas extraordinárias.

    O senhor liderou os testes clínicos de um novo medicamento contra o HIV, que impede que o vírus insira seu DNA nas células humanas. Por que esses remédios têm tido sucesso?
    Essencialmente, a mágica dos inibidores de integrase, como são chamados, é que, além de eles combaterem uma fase crucial do ciclo de vida do HIV, que é justamente essa integração de seu DNA ao genoma humano, o uso deles também não tem risco de causar danos ao organismo do doente.
    Essa vantagem existe porque esse tipo de droga combate processos bioquímicos que são específicos do vírus.
    Mas é uma enzima complicada de usar como alvo, e foi só graças ao trabalho extremamente dedicado de uma virologista chamada Daria Hazuda que os primeiros inibidores de integrase chegaram ao mercado [a partir dos trabalhos de Hazuda, a Merck lançou o Isentress, ou raltegravir, um inibidor de integrase, nos EUA em 2007].
    Depois dos trabalhos dela, continuamos a refinar esses inibidores, e os que estão disponíveis hoje, como o Tivicay (nome comercial do dolutegravir sódico), são capazes de ter efeito positivo muito rapidamente, fazendo com que as partículas de HIV caiam a níveis indetectáveis e, o que é muito importante, com apenas uma dose ao dia.

    O HIV continua infectando um número significativo de jovens gays no Brasil. Muita gente aponta que faltam campanhas educativas mais voltadas diretamente para esse público. Como o senhor vê a questão?
    Acho que é importante ter em mente que o HIV não é uma entidade que tem algum conceito sobre valores –é só um vírus! Ele simplesmente se aproveita de alguns comportamentos, como o sexo entre homens ou o compartilhamento de seringas entre usuários de drogas, para se espalhar com mais eficiência. É preciso perceber que tratar disso nada a ver, claro, com o caráter moral das pessoas.

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