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    Método permite ler mente de pessoas 'presas' nos próprios corpos

    GABRIEL ALVES
    DE SÃO PAULO

    02/02/2017 02h02

    Wiss Institute
    Paciente W, que teve uma forma acelerada de degeneração
    Paciente W, 24, que teve uma acelerada degeneração por causa da esclerose lateral amiotrófica

    Cinco cientistas da Alemanha, EUA, China e Suíça se uniram para tentar reverter um estado neurológico de incapacidade de se comunicar com o mundo exterior e obtiveram um avanço que pode ajudar milhões de pessoas em todo o mundo.

    A condição é a síndrome do encarceramento. Há tempos se tenta retardar seu aparecimento ou contornar a aparentemente irreversível perda de capacidade de interação com o mundo exterior. Como saber se a pessoa está feliz ou com dor? Às vezes a intuição dos cuidadores e familiares não basta.

    Esse é um desfecho provável da doença neurológica conhecida Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), que atinge, por exemplo, o físico Stephen Hawking, os movimentos são progressivamente perdidos e os músculos atrofiam.

    A pessoa precisa ser entubada e a única maneira de se comunicar com o mundo exterior é mexer o olho. Em algum momento, até isso é perdido. O mesmo pode acontecer em alguns AVCs, traumas e envenenamentos.

    Para contornar a síndrome do encarceramento é preciso entender o que o cérebro diz, mesmo que a informação não venha na forma de sons e gestos. A ideia é que o método funcione como uma espécie de leitura de pensamento a partir de uma touca e de um computador. As respostas possíveis são "sim" e "não".

    Assim, o paciente pode dizer se está confortável, se quer se sentar, se gostaria de ver alguém em especial.

    Importante considerar que, apesar do dano neurológico, essas pessoas têm toda a capacidade sensorial. Entre os problemas dos acamados estão escaras, provocadas pela pressão dos ossos na pele, pneumonia, trombose e embolia pulmonar.

    "Essas pessoas morrem geralmente de negligência ou de infecção. Com o cuidado adequado, porém, podem morrer das causas que matam qualquer outra pessoa", diz à Folha Niels Birbaumer, coordenador do estudo.

    Foram recrutados quatro pacientes na Alemanha, todos com ELA e vivendo em casa. Três tinham idades mais avançadas (61, 68 e 76 anos) e uma apenas 24 –ela não conseguiu fazer todos os testes. A família e os pesquisadores especulam que isso tenha ocorrido devido ao trauma psicológico e à rápida evolução da doença (do diagnóstico à paralisação foram apenas seis meses).

    Após a coleta de dados, eles continuam usando os dispositivos, que custam cerca de US$ 50 mil, elaborados pelos cientistas. Tanto para os pacientes quanto para os familiares, foi um grande alívio, relatam os autores.

    "Os resultados desmentiram minha teoria de que pessoas que atingem o estado completo de encarceramento [em que nem os olhos se mexem] não eram mais capazes de se comunicar", disse Birbaumer em um comunicado.

    Para o neurocirurgião Paulo Porto de Melo, chefe do serviço de neurocirurgia do Exército Brasileiro, os achados são capazes de mudar o paradigma da área. "Em países onde é permitida a eutanásia, alguns pacientes que fizeram essa escolha, ao saber dessa possibilidade, talvez mudassem de ideia."

    Ao serem questionados se estariam felizes, os pacientes responderam sim ao longo das diversas sessões. Birbaumer se disse surpreso: "Quando não era mais possível respirar, todos os quatro aceitaram a ventilação artificial para continuar sobrevivendo. De alguma maneira, eles já haviam feito a escolha pela vida."

    "Uma coisa é uma decisão racional, tomada em uma discussão à mesa, com serenidade. Na hora H, as pessoas se apegam vida, por menor que seja a chance", diz Melo.

    Editoria de Arte/Folhapress

    METODOLOGIA

    As primeiras e até então mais bem-sucedidas tentativas de estabelecer um canal de comunicação com pessoas completamente encarceradas nos próprios corpos envolviam o uso de eletrodos e do eletroencefalograma (EEG), técnica que mede a atividade elétrica cerebral.

    O problema é que é muito difícil decifrar em meio ao emaranhado de sinais elétricos algum tipo de sinal que queira dizer alguma coisa. A ideia de alguns cientistas foi inserir eletrodos dentro do crânio para melhorar a leitura do cérebro. Houve grande progresso: foi possível "digitar" duas letras por minuto. O estudo em questão foi publicado em novembro na revista "New England of Medical Journal".

    A vantagem da nova proposta, que está relatada na revista especializada "Plos Biology", é que ela não é invasiva e não requer um ambiente hospitalar para funcionar –os testes foram feitos em casa.

    A touca que é colocada na cabeça do paciente contém, além de eletrodos para realização de EEG, emissores e captadores de luz em uma faixa próxima do infravermelho. O objetivo desse tipo de medida é investigar o metabolismo em algumas áreas do cérebro a partir da quantidade de hemoglobina que está carregando oxigênio. A hemoglobina é a proteína responsável por levar e trazer moléculas de oxigênio (O2) e gás carbônico (CO2), permitindo que as trocas gasosas aconteçam.

    O resultado é semelhante àquele obtido em ressonância magnética funcional, com a vantagem de não requerer uma sala hospitalar refrigerada, com tomadas blindadas e operadores para que a "leitura de pensamento" seja realizada.

    O QUE DIGO?

    Para calibrar as medições, perguntas cujas respostas são conhecidas são feitas oralmente: "Berlim é capital da França?" e "Berlim é capital da Alemanha?", cujas respostas esperadas são "não" e "sim" por exemplo.

    O paciente deve pensar na resposta –não na palavra escrita nem no som, mas sim no que realmente quer dizer– para que o sinal possa ser adequadamente captado pelo computador. De alguma forma, a combinação entre sinal metabólico e elétrico de "sim" acaba sendo diferente do sinal de "não".

    Se a margem de acertos nas perguntas para as quais se sabe resposta é boa (maior que 70%), podem ser feitas perguntas abertas.

    A família de um dos participantes aproveitou a chance para perguntar se sua filha poderia se casar com o namorado Mario, a resposta foi "não" em nove das dez vezes em que foi perguntado.

    Ainda há uma variabilidade não desprezível nas respostas, mas os cientistas esperam que, com o tempo e a sofisticação da técnica, isso seja melhorado. O próximo passo é permitir o pensamento em letras.

    "O que observamos é que se essas pessoas recebem o tratamento adequado em casa, elas julgam adequada sua qualidade de vida. E é por essa razão que se pudermos disponibilizar essa técnica comercialmente, pode haver um grande impacto no dia a dia de pessoas completamente enclausuradas", disse Birbaumer.

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