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    Futebol ignora a escravidão no Qatar, diz líder de sindicato Sharan Burrow

    ALEX SABINO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BRUXELAS

    29/06/2015 02h00

    Da sua mesa em Bruxelas, na Bélgica, Sharan Burrow, 60, dá de ombros quando perguntada sobre o ressentimento que seu nome desperta no Qatar. Ela é secretária-geral da Confederação Internacional da União dos Trabalhadores (ITUC, sigla em inglês), que representa 168 milhões de pessoas em 155 países.

    Crítica implacável das condições de trabalho dos operários envolvidos no projeto da Copa do Mundo de 2022, ela é considerada a inimiga número um do comitê organizador do Mundial no país.

    Mark Phillips/ACTU
    Sharan em conferência na reunião dos países do G20 em Brisbane, na Austrália
    Sharan em conferência na reunião dos países do G20 em Brisbane, na Austrália

    "Estamos dispostos a trabalhar, ouvir e trocar ideias com todos, mas perdemos o interesse nela [Sharan] e na ITUC porque desde o começo sentimos que as intenções não são sinceras", afirma Nasser al-Khater, secretário-geral assistente e operador do torneio no Comitê Supremo para Entrega e Legado, o complicado nome do comitê organizador da competição.

    "A sinceridade que o Qatar quer é não ter qualquer respeito pelos direitos fundamentais dos trabalhadores no país", rebateu Sharan à Folha na última semana.

    Ela é uma das idealizadores do site "Re-Run the Vote" (Vote de novo, em inglês, http://rerunthevote.org/), que pede nova eleição para sede da Copa de 2022.

    "O futebol está virando as costas para o regime de escravidão que existe no Catar. É um dever moral de todos mudar isso", completa.

    *

    FOLHA - Há várias denúncias sobre condições de trabalho precárias dos trabalhadores envolvidos nas obras para a Copa do Mundo no Catar. O país prometeu mudar essas situação. Isso aconteceu?

    SHARAN BURROW - A única coisa que melhorou desde as primeiras denúncias foi o trabalho de relações públicas no Catar. Eles têm se empenhado nisso de forma extraordinária. O governo tem sido totalmente indiferente à vida humana. São contratados operários do Sri Lanka, Sudão, Índia, Coreia do Norte, Nepal... Recebem promessas, são obrigados a pagar taxas para intermediários e depois não recebem salários. Os contratos que assinaram são simplesmente rasgados. Eles moram em locais precários, indignos.

    A organização do Mundial no Catar considera que a senhora e a ITUC não são capazes de fazer críticas construtivas e têm objetivos que não são sinceros. Como responde a isso?

    Talvez porque nós não nos deixamos levar pelo que eles dizem estarem fazendo e nos preocupemos com o que estão fazendo de fato. A verdade é que mais de uma vez nós oferecemos ajuda e o governo do Catar recusou. Nós queremos que a legislação internacional seja aceita no Catar. Nós queremos que os direitos fundamentais de trabalhadores sejam aceitos no Catar. Eles não querem. Essa é a diferença.

    A senhora já esteve no Catar quantas vezes?

    Sim, várias vezes nos últimos quatros anos. Eu vi o desespero das pessoas, as condições em que trabalham e vivem, com jornadas de 12 horas por seis ou até sete dias por semana, debaixo de um calor que muitas vezes é insuportável.

    A ITUC criou um site para que aconteça uma nova eleição para a sede da Copa do Mundo de 2022. Acha que isso é viável?

    O Catar se recusa a legislar dentro das condições de trabalho aceitas internacionalmente. Eles já disseram que com leis trabalhistas não há Copa do Mundo. Se continuam com esse pensamento, tem de acontecer nova eleição. O maior evento esportivo no planeta não pode acontecer sob a sombra de um regime de escravidão moderno.

    Defina o uso da palavra escravidão, por favor.

    Quando você não tem liberdade para ir e vir, não pode trocar de trabalho livremente e tudo o que lhe pertence é controlado por outra pessoa... A única palavra que eu conheço para definir isso é escravidão.

    O maior problema é a kafala [pelas leis do Catar, o trabalhador imigrante só pode trocar de emprego com a autorização da empresa com a qual tem contrato]?

    É um grande problema. Mas não é o único. Mas se o governo do Catar abolisse a kafala, estaria respeitando um direito básico de qualquer trabalhador. Não é só isso, claro. As condições de trabalho são precárias. Nós precisamos entender que a Copa no Catar não se trata de construir estádios. É só a ponta do iceberg. O país está construindo uma nova cidade [Lusail] onde será jogada a final, então você pode imaginar a quantidade de obras da infraestrutura e o tamanho da urgência para garantir que os direitos humanos sejam respeitados.

    Há um número confiável de mortes em obras de construção relacionados à Copa do Mundo?

    Sim. Mas é incompleto. De todos os países que têm cidadãos envolvidos nas obras de infraestrutura, apenas Índia e Nepal divulgaram estatísticas. Somente nesses dois países são quatro mil trabalhadores mortos. Isso a sete anos do início do torneio.

    Por causa das denúncias, o governo do Catar contratou uma auditoria independente, feita pela DLA Piper, que recomendou uma série de mudanças que não foram implementadas. Entre elas, o fim da kafala. Se essas medidas tivessem sido colocadas em prática, não existiram mais reclamações?

    Não sei. Esta auditoria nunca se tornou pública. Ninguém sabe tudo o que está nela. O que sabemos foi o que o governo do Catar permitiu que soubéssemos. Temos de nos ater aos fatos. A kafala continua em vigor.

    As denúncias de corrupção contra Sepp Blatter e a Fifa faz a senhora acreditar mais ou menos na possibilidade de a Copa de 2022 sair do Catar?

    A Fifa é uma organização infectada pela corrupção e que sabia desde o início que o Catar não era um lugar seguro para receber uma Copa do Mundo. Todos os que tentaram intervir, inclusive nós, foram afastados do processo. Não fizeram nada e não nos deram qualquer atenção. O futebol é um jogo amado por bilhões e está sendo jogado no lixo. Não são apenas trabalhadores da construção civil. Jogadores de futebol passam pelo mesmo problema. Não recebem salários e não podem trocar de clube ou ir atuar em outro país. É inacreditável que o mundo assista este sistema em vigor e não pare de fazer negócios com o Catar.

    Dentro de uma visão pragmática, a senhora crê que a Copa será no Catar?

    Não sei. Muita coisa pode acontecer. O que eu sei é que alguém tem de exigir do Catar respeito aos direitos dos trabalhadores, respeito à vida. Você vai querer começar a Copa do Mundo, o maior evento esportivo do planeta, dentro de um sistema que aceita a kafala?

    *

    PARA PAÍS ÁRABE, AS NOTÍCIAS SÃO EXAGERADAS

    O governo do Qatar discorda que as condições de trabalho para os operários envolvidos nas obras para a Copa de 2022 são ruins.

    Nasser al-Khater, diretor de comunicação e marketing do comitê organizador, reconhece que o país está em uma batalha para mudar essa percepção. "Nós trabalhamos com a Anistia Internacional e com organizações de direitos humanos para melhorar as condições de trabalho. São entidades que merecem crédito porque são sinceras", disse o dirigente à revista britânica "The Blizzard".

    Para ele, as notícias sobre problemas envolvendo operários são exageradas.

    A questão da kafala continua sendo a mais crítica. Parte do comitê organizador tinha esperança de anunciar que o sistema seria abolido até o final do ano. Receberam má notícia no último dia 23.

    A Shura, o principal conselho consultivo do país, expressou restrições a mudanças na legislação. "Não há pressa para mudar", disse Mohammed bin Mubarak al-Khulaifi, chefe do conselho.

    "É hora de o Qatar mostrar liderança no respeito aos direitos dos trabalhadores. Essa notícia [da ausência de reformas] vai na direção contrária do que esperamos", declarou a Anistia Internacional.

    *

    Raio-X: Sharan Burrow

    Local e data de nascimento: 12 de dezembro de 1954 (60 anos); nascida em Warren, no País de Gales

    Ocupação: É secretária-geral da ITUC (Confederação Internacional da União dos Trabalhadores) desde junho de 2010. Antes foi presidente da ITUC e comandou a Confederação Internacional de Sindicatos de Trabalhadores Livres (International Confederation of Free Trade Unions)

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