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    Caetano anunciou que ele e Gil estavam "mortos" em 1969; leia trecho de livro

    da Folha Online

    22/09/2008 12h10

    Em 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos. Ficaram dois meses na cadeia, outros quatro confinados em Salvador e, por fim, foram colocados num avião com destino a Londres. No exílio, Caetano desabou. E anunciou que ele e Gil "estavam mortos" em artigo para o semanário carioca "O Pasquim" publicado em 1969.

    Divulgação
    Livro investiga vida e obra do cantor e compositor Caetano Veloso
    Capa do livro "Caetano Veloso", que investiga a vida e a obra do artista

    O amargo momento, em que Caetano parece "entregar o jogo", é analisado pelo ensaísta e colaborador da Folha de S.Paulo Guilherme Wisnik no livro "Caetano Veloso", da série Folha Explica, disponível no site da Publifolha.

    Em "Caetano Veloso", Wisnik aborda as questões essenciais que atravessam toda a vida e a obra do artista e analisa os pontos de ruptura de sua carreira, quando Caetano buscou reinventar-se --como no caso do exílio.

    Leia abaixo trecho de "Caetano Veloso" que fala exatamente sobre esse momento.

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    Trecho do capítulo 2 do livro "Caetano Veloso"

    "Soltos da prisão na quarta-feira de cinzas de 1969, Caetano e Gil seguiram para Salvador, onde ficaram confinados até partir para o exílio, em julho. Aos 26 anos de idade, já como uma emergente estrela da música pop, Caetano voltava em silêncio, pela porta dos fundos, à cidade que tinha lhe descortinado o mundo da vida artística e cosmopolita quando lá viveu, entre os anos de 1960 e 65.

    Em Londres, por um período de pouco mais de um ano (setembro de 1969 a dezembro de 70), Caetano enviava artigos para o semanário carioca Pasquim. Escritos em uma prosa marcadamente pessoal, esses textos refletem tanto a inquietude do seu pensamento acerca dos sinais esparsos e estrangeiros que lhe chegavam fragmentariamente do Brasil quanto o estado de espírito depressivo em que se encontrava.

    Particularmente em um deles, escrito em novembro de 1969, elabora uma dolorosa análise de sua situação artística a partir de uma observação muito particular: "Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que já vi na minha vida. Essa coisa era a minha própria cara". 18

    Redigido sob o forte impacto de estranhamento/auto-revelação causado pela súbita visão de uma foto sua e de Gil (já no exílio), na capa da revista Fatos & Fotos, esse artigo expõe de modo cru um procedimento ao mesmo tempo paródico e sincero de fundir a auto-observação e o diagnóstico distanciado da realidade, criando um curto-circuito entre o masoquismo pessoal e a clarividência de uma verdade mais geral, latente mas encoberta.

    Assim escreve: "Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós". 19

    Aqui, para além do reconhecimento amargurado de aniquilamento individual ("nós estamos mortos"), surge a referência tanto a forças novas, vindas do futuro ("virão outros"), quanto a um "Ele", no presente, que parece situar-se num estado também intermediário entre a vida e a morte, estando, no entanto, mais próximo da vida do que o sujeito que escreve a frase. "Ele" é Carlos Marighella, líder da guerrilha urbana, e dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), que havia sido assassinado pela polícia fazia poucos dias. Sua imagem, morto, aparecia contracenando naquela capa de revista com a foto de Caetano e Gil, exilados.

    É conhecida a afinidade que os dois compositores sentiam com os jovens guerrilheiros da luta armada ainda antes da prisão, e que já estava sugerida nas canções "Soy Loco Por Ti, América" (de Gil e Capinan, gravada por Caetano em seu primeiro disco individual, em 1968 20), e "Enquanto Seu Lobo Não Vem" (de Caetano, que fala de um desfile carnavalesco-militar subterrâneo, citando a melodia da Internacional Comunista).

    Identificação "à distância, de caráter romântico" - que, no entanto, o peso trágico da prisão e do exílio parecia reforçar -, e que diferia da incompatibilidade mútua sentida em relação à "esquerda tradicional e o Partido Comunista" 21. Em canções como "É Proibido Proibir", "Questão de Ordem" (de Caetano e Gil, respectivamente), e "Divino, Maravilhoso" (parceria dos dois, todas de 1968), havia explicitamente uma aproximação do tropicalismo ao mundo hippie e ao ideário dos estudantes parisienses de maio de 68, com seu "imbricamento de esquerda com hippismo, de militância clássica com militância contracultural" 22.

    Porém, uma vez consumado o exílio dos dois, o caráter violento da cena poeticamente construída na canção "Divino, Maravilhoso" - "É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte" - pareceu dominar o sentido discursivo da canção como um todo, obliterando a ambigüidade daquele campo indeterminado entre o engajamento e a alienação, com o qual brincava a canção, pouco antes da prisão de seus autores.

    Na sua letra, colada a uma melodia simples e de fácil empatia, quase toda acompanhada de acordes maiores, as imagens ameaçadoras de "janelas no alto" e de "sangue sobre o chão" (associada ao "asfalto mangue"), sempre precedidas por um exclamativo aviso de "Atenção", anunciam que algo ("tudo") é "perigoso", mas também, ao mesmo tempo, "divino maravilhoso" - dualidade que, para ser percebida, requer "olhos firmes" tanto para o "sol" quanto para a "escuridão".

    Assim, se a súbita aproximação da imagem de Caetano e Gil ao cadáver baleado de Marighella reforçava uma identidade entre eles, lançava luz, por outro lado, sobre a enorme diferença da situação em que ambos se encontravam naquele momento. A contundência da imagem do corpo morto do guerrilheiro, resistente como a de um Lampião urbano pego em emboscada, reforçava, por contraste, o abatimento e a inércia figurados na imagem-espelho de Caetano e Gil, em seu ostracismo melancólico.

    Ao mesmo tempo, aludia também, ironicamente, ao estandarte Seja Marginal, Seja Herói, do artista plástico Hélio Oiticica - estampado com a imagem em alto-contraste do "bandido" Cara de Cavalo estendido no chão -, imagem esta que, com sua transgressão inocente - mais anárquica do que política -, estivera na origem das razões que levaram Caetano e Gil à prisão 23.

    No mês seguinte, mas já no ano de 1970, Caetano envia um novo artigo ao Pasquim, em que complementa e remata aquelas afirmações anteriores: "Quero dizer que se eu falei que morri foi porque eu constatei a falência irremediável da imagem pública que eu mesmo escolhi aí no Brasil. Quando eu me congratulei com aqueles que me fizeram sofrer, eu estava querendo dizer que, dando motivo para crescer uma compaixão unânime por mim, que vira prêmios e homenagens e capas de revistas muito significativas, eles conseguiram realmente aniquilar o que poderia restar de vida no nosso trabalho" 24.

    18. "Hoje Quando Eu Acordei" (1969), em O Mundo Não É Chato, op. cit., p. 115
    19. Idem, p. 319. Grifo nosso.
    20. Gravado e finalizado em 1967, o disco foi lançado apenas em 1968
    21. Verdade Tropical, op. cit., p. 427
    22. Gilberto Gil, Gilberto Gil - Todas as Letras, ed. revista e ampliada (São Paulo: Companhia das Letras, 2003), Carlos Rennó (org.), p. 110.
    23. Em 1968, após a desclassificação das canções "Questão de Ordem" e "É Proibido Proibir" do Festival Internacional da Canção, Gil e Caetano, acompanhados pelos Mutantes, realizaram uma seqüência de apresentações na Boate Sucata, no Rio de Janeiro. Esse show, qualificado por Caetano como "a mais bem-sucedida peça do tropicalismo", incluía o referido estandarte de Hélio Oiticica como um elemento entre outros do cenário. Na ocasião, um juiz de direito indignou-se com o estandarte, conseguindo suspender o show e fechar a boate. Alguns meses depois, já há algum tempo na prisão, é que Caetano veio a saber, através do major Hilton, que aquele episódio se desdobrara em uma denúncia feita pelo jornalista Randal Juliano, pedindo a prisão dos dois (ver nota 6). Cf. Verdade Tropical, op. cit., p. 304-7 e 396-7.
    24. Pasquim, 8-14/1/1970, em Alegria, Alegria, op. cit., p. 53. Nesse mesmo artigo, Caetano rebate as cartas de apoio que vinha recebendo, explicando enfaticamente: "eu quis dizer que estava morto e não triste". Idem, p. 51.

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    "Folha Explica Caetano Veloso"
    Autor: Guilherme Wisnik
    Editora: Publifolha
    Páginas: 200
    Quanto: R$ 22,00
    Onde comprar: nas principais livrarias, pelo televendas 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

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