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    Globo "adestra" sotaques de atores para soar realista

    AUDREY FURLANETO
    Enviada especial ao Rio

    26/10/2008 03h30

    "Ô, fia, tá boa? Vamo' entrando, vamo' entrando", diz a atriz Vera Holtz, ao abrir a porta de seu apartamento, no Rio de Janeiro. Já do lado de dentro da casa, o que se ouve é uma seqüência de "erres" arrastados --Vera Holtz, afinal, é de Tatuí. E, fora da novela "Três Irmãs", ela pode relaxar com o sotaque do interior de São Paulo.

    Ouça as dicas para mudar de sotaque.

    TEXTO

    Em cena, não. Para fazer o papel da vilã Violeta, rica e de família tradicional, numa cidade "imaginária" e praiana no Rio de Janeiro, ela precisou, digamos, suavizar os "erres" de Tatuí. "Violeta é uma vilã clássica, quer defender família e propriedade.

    Roberto Price/Folha Imagem
    A fonoaudióloga Maria Silvia Siqueira Campos trabalha com o ator Eduardo Belizzari
    A fonoaudióloga Maria Silvia Siqueira Campos trabalha com o ator Eduardo Belizzari

    Não queria ter o filtro do sotaque", diz a atriz, que já atuou em 16 novelas da Globo --até então, sem "suavizar" tanto o jeito de falar.

    "Estou numa novela de praia no Rio, perto de surfistas. E deixei Tatuí em 1971. Moro no Rio há 35 anos. Não ter mudado até hoje é muito amor [carregando no 'erre'] pelo sotaque, né?"

    Adestradora de sotaque

    O fato é que a vilã Violeta ainda não arrasta as consoantes como um carioca de origem, mas os sons de Tatuí já não fazem tanto parte de sua fonética. "Você precisa colocar a língua mais perto dos dentes, sem encostar no céu da boca", explica Vera, que faz treinamento com a fonoaudióloga Maria Silvia Siqueira Campos.

    Ela, aliás, cuida de sotaques e "curvas melódicas" dos atores da Globo há quatro anos --mas, há 12 anos, começou a atender atores de teatro, como Marcos Caruso e Irene Ravache em "Intimidade Indecente".

    Na TV, a especialista em voz e mestre em fonoaudiologia é tutora de Grazielli Massafera --original de Jacarezinho (PR), no ar em "Negócio da China", como uma jovem carioca--, treinou Cléo Pires e Bruno Gagliasso --atores do Rio que estavam em novela com núcleo paulista, "Ciranda de Pedra"-- e fez da carioca Camila Pitanga uma doméstica no paulistano Bexiga em "Belíssima" (2005).

    "O importante é manter a essência do ator", diz a fonoaudióloga. "O ator tem a capacidade de manter e, ao mesmo tempo, limpar o sotaque."

    Ao exemplo da atriz Grazielli Massafera: "A primeira coisa com a Grazi foi trabalhar a percepção auditiva dela, para ver onde o sotaque é mais forte. E era, justamente, no 'erre' do interior. E ela tem uma coisa carismática, que às vezes cai para o mineiro. São coisas que a gente vai suavizando".

    E, depois de muito repetir as falas, lá se foi o "erre" de Jacarezinho de Grazi Massafera. Mas, defende a fono, "em nenhum momento, nem por parte da direção, nem por parte do autor, houve a decisão de fazer dela uma carioca da gema".

    Em alguns casos, quando a novela tem núcleo em Minas Gerais, caso de "Desejo Proibido" (2007), a fono chega a pedir aos "alunos" que leiam Guimarães Rosa durante a aula, a fim de se "ambientarem" na região.

    Localizando a língua

    O trabalho com o elenco começa dois ou três meses antes da novela. Maria Silvia, depois, vai ao Projac e, antes do "gravando", apara arestas nas falas dos atores com que trabalha.

    A dificuldade varia de acordo com "a dedicação e a vontade" do aluno, mas outros fatores, como tempo de carreira, interferem. "Por exemplo, quando se trabalha uma Camila Pitanga, todo mundo acha muito estranho outro sotaque.

    Teve gente que achou que ela estava forçada, mas todo mundo a conhece como Camila Pitanga [imitando um carioca], morena, carioca, né? O fato de ela estar falando diferente causa estranhamento", conta.

    "É uma questão também de educação. A gente tem que mostrar como é que se assiste a uma novela, a um filme. Se não a Camila Pitanga ia ser Bebel [garota de programa de 'Paraíso Tropical'] em toda novela."

    Para não se "repetir" ou ter o sotaque esperado em cada novela, o primeiro passo do ator global, diz Maria Silvia, é "fazer treinamento auditivo" --ou seja, ouvir o próprio sotaque e o do personagem-- e perceber o posicionamento da língua.

    A saber: ator de Tatuí, Jacarezinho ou de outras cidades do interior tende a "enrolar" a língua na direção do céu da boca para emitir o "erre"; o paulistano esconde a sua atrás dos dentes; os cariocas, enfim, "deixam a língua no meio do caminho".

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