• Ilustrada

    Friday, 19-Apr-2024 11:25:52 -03

    ILUSTRADA 50 ANOS: 1982 - García Márquez ganha Nobel

    "O Nobel de Literatura para a coragem de García Márquez" foi publicado originalmente sexta-feira, 22 de outubro de 1982.

    24/11/2008 02h08

    O escritor colombiano Gabriel García Márquez foi contemplado ontem com o prêmio Nobel de Literatura de 1982, depois de figurar por vários anos na lista de candidatos. A Academia Sueca de Letras, responsável pela outorga, enfatizou a "corajosa posição" do romancista ao lado dos pobres, "vítimas da opressão interna e da exploração estrangeira".

    Autor de vários romances e livros de contos --quase todos já traduzidos para o português-, seu lançamento mais famoso é "Cem Anos de Solidão", que recentemente ultrapassou a marca dos cinco milhões de exemplares.

    Na Cidade do México, Gabriel García Márquez foi informado da premiação através de um telefonema, às 6 horas da manhã de ontem. Pouco depois, recebeu as felicitações, também por telefone, do presidente colombiano Belisario Betancour, que insistiu para que ele deixe o exílio voluntário e regresse à pátria.

    set.1978/U.Dettmar/Folha Imagem
    Escritor colombiano Gabriel García Márquez em entrevista à *Folha*, no Rio de Janeiro, em 1978, antes de receber Nobel de Literatura
    Escritor colombiano Gabriel García Márquez em entrevista à Folha, no Rio de Janeiro, em 1978, antes de receber Nobel de Literatura

    Nobel de 82 para García Márquez

    Estocolmo - O escritor colombiano Gabriel García Márquez, foi contemplado ontem com o prêmio Nobel de Literatura Pela Academia de Letras da Suécia, depois de figurar em diversos anos na lista de premiação e na condição de quarto latino-americano a conquistar o galardão.

    "Seu compromisso político ao lado dos fracos e dos pobres, contra a opressão nacional e a exploração estrangeira" é uma das alusões da justificativa de outorga por parte da Academia, cujo informe acrescenta: "Durante muito tempo a literatura latino-americana mostrou um vigor como em poucas esferas literárias e granjeou a aclamação da vida cultural de hoje. O violento conflito de natureza política eleva a temperatura do clima intelectual (no continental latino-americano)."

    Integrada por 18 membros, a Academia sueca comparou os romances de García Márquez com os do norte-americano William Faulkner e também com Balzac, cujos personagens -tanto os principais como os menores --aparecem em obras diferentes, investidos de importância variada, dependendo do contexto em que se movimentam. De fato, sobretudo os personagens de "Cem Anos de Solidão"-- que recentemente ultrapassou os cinco milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, já que está traduzido para inúmeras línguas- surgem em outras histórias, inclusive nos contos e até mesmo em obras editadas antes do grande romance.

    Reconhecimento

    Profundamente emocionado, o romancista Gabriel García Márquez fez a seguinte declaração no México, onde reside há vários anos e concedeu entrevista à cadeia radiofônica RCN: "Este prêmio não é uma distinção para mim, mas para toda a América Latina e um reconhecimento do auge futuro de toda a literatura latino-americana." Durante outras entrevistas que deu no dia de ontem, ele acrescentou que "Cem Anos de Solidão" não é seu romance preferido, apesar de ser o que lhe proporcionou a consagração a nível mundial. A respeito de "Crônica de Uma Morte Anunciada", seu último romance, também já lançado no Brasil, comentou que "tem o mérito de ser bem curto". Com este romance, Gabriel quebrou a promessa de não voltar a escrever ficção enquanto não caísse a ditadura chilena, que havia feito após seu livro anterior, "O Outono do Patriarca", escrito sete anos antes. Residente no México há vários anos, ele pretende voltar à Colômbia em março de 1983, onde tenciona fundar um jornal. Acrescentou que investirá todo o dinheiro do prêmio nesse projeto: "Jogarei meu jornal no mercado com muito mais interesse." Sobre o futuro, informou que "meu maior desejo é continuar escrevendo, no jornalismo e na literatura". Quanto ao Nobel, considerou que "foi atribuído a toda a obra e não por um só livro".

    Presidente

    O presidente colombiano Belisario Betancur declarou que o Nobel concedido a García Márquez "é uma imensa honra que todos os colombianos devemos receber com respeito, admiração e gratidão". Tendo sido o primeiro colombiano a telefonar para o escritor --que recebeu o comunicado da Academia sueca igualmente por telefone, às seis horas da manhã--, o presidente também foi felicitado por ele, "porque já temos prêmio Nobel na Colômbia".

    Em entrevista difundida pela cadeia de rádio Caracol, Betancur informou: "Eu lhe disse que a pátria o espera e ele me respondeu que voltará muito breve." Ressaltou também que García Márquez lhe tinha telefonado há dois dias, para informar que o governo do México lhe entregaria hoje a condecoração da Aguia Asteca, pedindo a presença do chanceler Rodrigo Lloreda Caicedo, "pois esta é também uma homenagem à Colômbia".

    "Gabo", como o escritor é conhecido entre os amigos e familiares, também receberá 24 horas antes a distinção da ordem "Felix Varela de primeiro grau", condecoração do governo cubano criada em homenagem a um professor do século passado e destinada a personalidades do mundo da cultura. Ele é amigo pessoal do presidente Fidel Castro e visita Havana com freqüência. Era também amigo de Salvador Allende. No verão do ano passado, esteve por um mês em Havana, dedicando-se a seu esporte favorito: a pesca do peixe-espada.

    Aracataca

    Gabriel García Márquez nasceu no pequeno povoado de Aracataca, na Província de Magdalena, a 6 de março de 1928. Bacharelou-se em 1942 no colégio São José, em Barranquila, e em 1947 ingressou na Faculdade de Direito de Bogotá. Seus primeiros contos foram publicados no suplemento de sábado do jornal "El Espectador". Estes contos foram publicados mais tarde no livro "Ojos de Perro Azul".

    Iniciou a carreira de jornalista em 1948, em Cartagena, para onde se mudou em virtude de incidentes estudantis. No "El Espectador" publicava críticas de cinema e suas crônicas de viagens aos países socialistas, no início da década de 50. Em 1955 ganhou o concurso nacional de contos e em seguida publicou seu primeiro romance "La Hojarasca", e a crônica "Relato de um Náufrago", o depoimento romanceado de um náufrago que ficou 11 dias à deriva no Caribe e cuja cobertura ele fizera para seu jornal. Nesse mesmo ano foi à Europa, trabalhar como correspondente do "Espectador". Regressou em 1958, quando se casou com Mercedes Barcha.

    No final do mesmo ano, publicou o romance "Ninguém Escreve ao Coronel", em que já começou a alinhavar os personagens e os temas que estariam presentes na grande epopéia de "Cem Anos de Solidão", a crônica de sua família vista sob um ângulo mítico. Em 1959 tornou-se correspondente da agência noticiosa cubana "Prensa Latina", em Bogotá. No ano seguinte foi para Havana e, logo depois, para a Europa. Entre 1961 e 1967 morou no México onde publicou "La Mala Hora" (traduzido em português para "Veneno da Madrugada") e logo em seguida, "Os Funerais e Mamãe Grande", uma coletânea de contos.

    Consagração

    A consagração viria em 1967, quando publicou o romance "Cem Anos de Solidão", a história de uma família ao longo de cinco gerações, onde todos os personagens masculinos se chamavam Aureliano e José Arcadio ou alguma combinação desses três nomes, numa ilustração literária ao mito do eterno retorno nietzschiano. "A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada" foi editado em 1972, como tema original resvalado em "Cem Anos". No próximo ano, este romance terá versão cinematográfica, em produção mexicana. Nessa época Gabriel já vivia na Espanha.

    O livro "O Outono do Patriarca" é de 1975, contendo um vigoroso exercício de estilo. Depois só voltaria a escrever um romance no ano passado, com a "Crônica de uma Morte Anunciada". Nesse mesmo ano, pediu asilo no México, por se sentir ameaçado pelas forças paramilitares da Colômbia, em virtude de supostas ligações com os guerrilheiros do grupo M-19.

    Repercussão

    Inúmeros escritores latino-americanos manifestaram satisfação pela premiação de Gabriel García Márquez. O argentino Jorge Luis Borges, há anos na lista dos premiáveis, manifestou-se com a habitual ironia diante de mais uma preterição. Mas referiu-se elogiosamente à obra de Márquez. Confessou apenas ter lido dele "Cem Anos de Solidão", porém declarou: "De todas as maneiras, apenas com essa obra, García Márquez se faz merecedor do prêmio."

    Sérgio Machado, vice-presidente da editora Record, que detém os direitos de edição das obras de García Márquez no Brasil, enfatizou os novos critérios do Nobel, que agora contempla um autor conhecido no mundo inteiro, ao contrário do ano passado, "quando se premiou o desconhecido Canetti, que escrevera um romance há 40 anos". A Record edita o autor colombiano desde 1976, após o fechamento da Sabiá, que o lançou no Brasil. Adiantou que "só conosco, 'Cem Anos' vendeu 70 mil exemplares". Mas já vendera mais de 80 mil com a Sabiá. A "Crônica de uma Morte Anunciada" também já passou dos 50 mil exemplares no Brasil. Sérgio revelou que a editora prepara o lançamento de textos da juventude de Márquez no jornalismo, sob o título de "Textos Costeños", preparado para o final do ano mas que agora deve ser antecipado.

    O quarto latino-americano a ser contemplado

    O Prêmio Nobel de Literatura concedido ao escritor colombiano Gabriel García Márquez é o quarto concedido à América Latina e o sétimo a autor de língua espanhola. Entre os latino-americanos, ele foi precedido por Gabriela Mistral (1945), chilena, Miguel Angel Asturias (1967), guatemalteco, e Pablo Neruda (1971), chileno, o que totaliza dois prêmios para o Chile, ambos para poetas. Todos já são falecidos.

    O prêmio a García Márquez certamente não será contestado no que diz respeito a seus méritos literários, embora alguns o acusem injustamente de ser autor de uma obra só. Mas 'Cem Anos de Solidão', que tornou o nome da imaginária cidade de Macondo mais conhecido do que o de muitas cidades reais, já justificaria a outorga do prêmio.

    Para apimentar um pouco as coisas, não falta um incidente entre o premiado atual e Asturias. Este acusou García Márquez de ter plagiado "A busca do absoluto" de Balzac, nos "Cem Anos", numa entrevista concedida em 1971 à revista espanhola "Triunfo". Mas certamente, tratou-se de uma pequena vingança literária, porque García Márquez, em outra revista espanhola, "Índice", criticara em 1968 o prêmio a Asturias, afirmando que Borges, Paz e Alejo Carpentier mereciam mais, opinião com que muitos concordariam.

    No entanto, neste momento em que nosso continente é lembrado, cabe perguntar por que a riquíssima literatura latino-americana, uma das mais importantes deste século (fato só parcialmente reconhecido com o chamado "boom" latino-americano dos últimos quinze anos), está tão pouco representada no único prêmio literário de caráter mundial. E os eternos nomes esquecidos voltam ao primeiro plano: Borges (indicado mais de 15 vezes), Cortázar e Sábato, da Argentina; Octavio Paz, Juan Rulfo e Carlos Fuentes, do México; Juan Carlos Onetti, do Uruguai; ou Mário Vargas-Llosa, do Peru.

    A língua portuguesa, que é uma das mais faladas atualmente em todo o mundo e com uma literatura respeitável, também nunca foi lembrada pelos acadêmicos de Estocolmo, e nomes como os de Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado ou João Cabral de Melo Neto, para ficar só entre os brasileiros, são também constantemente mencionados. Mesmo entre os prêmios para língua espanhola, são bastante discutíveis os méritos de um José Echegaray (1904) ou Jacinto Benavente (1922), ambos espanhóis, num século que proporcionou autores do porte de um Unamuno e de um García Lorca.

    Indubitavelmente o Prêmio Nobel de Literatura, cujos critérios literários sempre foram contestados, pauta-se por uma visão no mínimo bastante eurocêntrica: dos 74 prêmios até hoje atribuídos desde 1901 (não foi concedido sete vezes), 39, ou seja mais de 60%, se destinaram a escritores europeus, a maioria da Europa Ocidental (os EUA foram contemplados com 8 e a URSS com 4, aí incluído o exilado Bunin.) A Ásia teve que se contentar só com dois: para o indiano Rabindranath Tagore em 1913 e o japonês Yasunari Kawabata em 1968. A Austrália não foi esquecida (Patrick White ganhou em 1973); mas a África nada obteve até hoje, apesar das várias indicações do senegalês Lépold Senghor. Também nunca foi dado o prêmio a escritores de língua árabe. Só seis mulheres foram premiadas, a maioria pouco representativa. Enquanto isso, os países escandinavos estão nitidamente super-representados, com 11 prêmios (quatro para a Suécia, três para a Noruega, três para a Dinamarca, um para a Finlândia e um para a Islândia).

    Muitos esperam, assim, que a premiação a García Márquez seja um indício de que os nossos amigos suecos começaram a descobrir que, ao sul do Equador, também se faz excelente literatura.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024