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    ILUSTRADA 50 ANOS: 1986 - Titãs lançam "Cabeça Dinossauro"

    "Dinossauro na cabeça", assinado por Marcos Augusto Gonçalves, foi publicado originalmente quarta-feira, 25 de junho de 1986.

    03/12/2008 11h25

    A tribo tem oito guerreiros e está em pé de festa e de guerra. Batucam e gritam. Os dinossauros descem dos viadutos e se escondem nos edifícios. Os ex-Titãs do Iê Iê -que circulavam pelos porões e palcos do underground paulistano- os atuais Titãs, que ficaram conhecidos nacionalmente por músicas como "Sonífera Ilha" e "Televisão", lançam esta semana "Cabeça Dinossauro", o terceiro LP do grupo.

    Inspirada num canto do Xingu, a pulsação primitiva e tribal da faixa-título abre o disco e mostra o pau. Depois de "Cabeça Dinossauro" não haverá trégua. Ao contrário dos dois primeiros LPs, não se ouvirá refrescos do tipo "Insensível" -que tentou puxar o último disco- ou mesmo "Sonífera Ilha", o primeiro sucesso. Prevaleceu a linha de "Massacre" e de "Pavimentação", músicas de pulso forte que não chegaram às rádios, mas encheram de energia titânica o LP "Televisão".

    Divulgação
    A banda de rock Titãs, enlameada na Chapada dos Guimarães, nos anos 80
    A banda de rock Titãs, enlameada na Chapada dos Guimarães, nos anos 80

    Grande desafio

    "Nós não passamos ainda o clima e a força das apresentações ao vivo", diz Arnaldo Antunes, 25, compositor e um dos vocalistas do grupo. "Mas desta vez conseguimos um resultado que nos satisfez", emenda Sérgio Britto, 26, igualmente cantor e compositor. Conseguir unir os oito em torno de um produto final que não ficasse distante do espírito e da força das apresentações em show foi o grande desafio, desde que a insatisfação com o resultado de "Televisão" -que consideram mal mixado e aquém do projeto inicial- colocou em risco a própria permanência dos Titãs.

    Não é um acidente, portanto, que "Cabeça Dinossauro" manifeste uma atitude guerreira, tribal, original. Para usar um lugar-comum, os Titãs tiveram uma forte preocupação com uma selvagem volta às origens. As músicas são cantadas em volume alto, são gritadas mesmo, um pouco à maneira punk, um pouco à maneira funk. E o próprio repertório reencontrou canções muito antigas, compostas quando os oito amigos ainda não pensavam em gravar um LP.

    É o caso, por exemplo, de "Bichos Escrotos", de Paulo Miklos, Arnaldo e Nando. "Ela foi composta no intervalo de uma gravação de uma fita", lembra Paulo. Foi um sucesso curtido como um "cult" pelas primeiras miniplatéias dos Titãs, há cinco anos. "Nós nos reidentificamos com ela", diz Nando. "Bichos Escrotos" ficou fora de outros discos porque, segundo Nando, "havia um trauma quanto à melhor forma de arranjá-la pra ser apresentada". O trauma foi ultrapassado por um arranjo que os oito consideram "perfeito".

    Censura

    Mas a Censura não achou muita graça na escatologia da letra e proibiu a divulgação em rádio e TV.

    Outra letra que ficou ameaçada, mas acabou sendo liberada, foi a de "Igreja", do próprio Nando. Afinada com o clima forte do disco, a letra fala de uma profunda recusa às mitologias do catolicismo: "Eu não gosto de padre / Eu não gosto de madre / Eu não gosto de frei / Eu não gosto de bispo / Eu não gosto de Cristo / Eu não digo amém".

    Mas os Titãs não ficaram por aí. Além da vetusta Igreja, outras instituições da Ordem são bombardeadas pela cabeça do dinossauro: a família e a polícia, título de duas faixas. Em "Família", de Arnaldo Antunes e Toni Bellotto, a paranóia da vida caseira é ironizada: "A mãe morre de medo de barata / O pai vive com medo de ladrão / Jogaram inseticida pela casa / Botaram um cadeado no portão". Em "Polícia", de Bellotto, a mesma intenção demolidora.

    As letras, como se vê, são fortes. E muito valorizadas pelo grupo como parte orgânica de uma composição: "O português continua tendo uma grande importância para o nosso som, a letra é fundamental", diz Branco Mello.

    As músicas e os arranjos não ficam muito atrás. Auxiliados por Liminha, o produtor de nove entre dez LPs bem sucedidos na área de rock, os Titãs conseguiram produzir uma convincente massa sonora, que passeia pelo rock, pelo funk e pelo reggae sem, no entanto, perder o vigor. "Ao contrário de muitos grupos, não fazemos caricatura de reggae ou caricatura de funk. Há uma originalidade, uma veracidade", diz Arnaldo.

    Mais ainda, os Titãs acreditam que estão levando para o público um trabalho original, ao contrário da média das bandas brasileiras, que não conseguem dissimular suas relações com matrizes européias e norte-americanas. O próprio fato de apresentarem um canto gritado é valorizado: "Isto é uma coisa que não é forte na tradição das bandas de rock e da própria música popular brasileira", diz Britto.

    Aparentemente fazem um canto anti-João Gilberto. Para usar uma expressão do crítico e professor de literatura José Miguel Wisnik, rasgam a retícula da voz. Mas Arnaldo e Britto, embora reconheçam a radical diferença com o clima cool de João, descobrem uma afinidade: o cantar gritado dos Titãs -que não tem nada a ver com o canto "expressionista"- estabelece com as canções e as letras uma intimidade semelhante com a que João obtém em seu banquinho e violão. "João Gilberto usa a fala, nós usamos o grito, mas nos dois casos há uma relação forte com o coloquial", diz Britto.

    Selvageria

    Mas indiscutivelmente, a marca do disco é a tentativa de trabalhar com a barbárie contemporânea, sugerindo relações com a selvageria ancestral. Além de "Cabeça Dinossauro", "Aa Uu' -que já toca na rádio- é a faixa que o grupo considera mais altamente afinada com a idéia do disco. "As duas são dois comentários sobre a animalização do homem civilizado, mas aliadas a uma certa sofisticação", diz Britto. A própria capa do disco -duas gravuras de Leonardo da Vinci- expressa os pólos em jogo: barbárie e civilização, cabeça e dinossauro. "É uma dualidade que degrada e redime", resume Britto.

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