A crise de identidade, mote do psicanalista e colunista da Folha Contardo Calligaris, 60, em sua estreia como dramaturgo, estava na raiz do texto que primeiro o atraiu ao teatro.
Aos 18 anos, em Milão, ele acompanhou os ensaios de uma montagem de "O Jardim das Cerejeiras", de Anton Tchecov (1860-1904), flagrante da derrocada financeira e de valores da aristocracia rural russa no começo do século 20.
Leonardo Wen/Folha Imagem |
O ator Ricardo Bittencourt em ensaio da peça "O Homem da Tarja Preta", de Calligaris |
Calligaris substitui a aflição de uma classe pela angústia de um sujeito comum em "O Homem da Tarja Preta", que estreia hoje (para convidados), em São Paulo.
Se os russos batalhavam contra a perda de prestígio, o Ricardo (interpretado por Ricardo Bittencourt) de agora se digladia com seus desejos.
Casado e pai de duas crianças, ele vira noites no escritório de sua casa, conectado a chats em que assume máscaras femininas para dar vazão a desejos represados.
Ao longo da madrugada insone em que transcorre a ação, o personagem retraça seu histórico sexual e tenta montar o quebra-cabeça da própria libido. Lembranças das "explicações" dadas por analistas para suas taras pontuam o testemunho, no que parece uma longa sessão de autopsicanálise.
Homem trágico
"O que ocorre hoje é que os grandes estereótipos em torno dos quais a masculinidade se estruturou, como o papel de provedor, entraram em crise. Por que características o homem contemporâneo se reconhece?", indaga Calligaris, para logo completar:
"A feminilidade se reconhece por dar à luz. Já a posição do homem é mais trágica e perigosa. Talvez matar seja sua particularidade, aquilo de que se vale para ser levado a sério", sugere, citando os atiradores, sempre do sexo masculino, que fazem chacinas em escolas/universidades, como ocorreu há uma semana, na Alemanha.
Para Calligaris, a orientação sexual de Ricardo importa menos do que a sua dúvida quanto ao que seja a real masculinidade, o papel que se espera que um homem desempenhe:
"No fundo, a sua vontade é viver normalmente com a mulher e os filhos. Ele se força a ser a puta da internet [seu apelido no chat é CrossDresserPutaSubSP] para ser alguém, ter uma segunda identidade. Precisa dessa coisa louca", observa.
Na direção, Bete Coelho diz que tentou "namorá-los [autor e ator]". "Busquei me aproximar deles, ver por seus olhos, mais do que emprestar um olhar feminino.
Saber que existem essas possibilidades de fantasia para o homem e questões tão ou mais complexas do que as femininas amplia a percepção --e a paciência com eles", brinca.
O HOMEM DA TARJA PRETA
Quando: estreia hoje (para convidados); qui. e sex., às 21h; até 19/6
Onde: teatro Eva Herz (na Livraria Cultura do Conjunto Nacional - av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/11/3170-4059)
Quanto: R$ 20
Classificação: não indicada a menores de 16 anos