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    Escritora discute as "sombras" da China sobre a mulher na Flip

    TERESA CHAVES
    Colaboração para a Folha Online

    24/06/2009 16h37

    Meu nome é Xinran, sou uma mulher chinesa, é a primeira coisa que devo dizer. Sou uma mãe chinesa de um garoto chinês que tem 21 anos, e escrevi seis livros e publiquei cinco. "As Boas Mulheres da China", "The Sky Burrial", "Miss Chopsticks" and "What the Chinese Don't Eat", e meu último livro publicado chama-se "Testemunhas da China" [a ser lançado pela Cia. das Letras neste ano].

    Xinran Xue, 50, escritora e jornalista que chegou à Inglaterra com mil libras esterlinas (R$ 3.200, aproximadamente) na carteira e com um inglês incompreensível, radicou-se em Londres, casou-se com um inglês [que também é seu editor] e se tornou uma das maiores referências da literatura chinesa, sobretudo na questão feminina.

    Reprodução
    A jornalista e escritora chinesa Xinran Xue, que participa da Flip 2009, de 1º a 5 de julho
    A jornalista e escritora chinesa Xinran Xue, que participa da Flip 2009, de 1º a 5 de julho

    Marcada por fatos difíceis vividos na China, Xinran traz em sua literatura consequências nascidas na infância, que se transformaram em sombra permanente em suas noites de sono, como disse em entrevista exclusiva à Folha Online, por telefone, de Londres. Mas ela trabalha essa dificuldade reproduzindo-as em palavras escritas, como se escrevendo pudesse expurgar aos poucos cada sinal de tormento que carrega na memória. Se funciona para ela como terapia, não é possível afirmar. Mas é certo que suas palavras se transformaram na própria voz de milhares de mulheres que devoram sua literatura.

    Ela e o chinês Ma Jian são dois dos principais nomes que participam da Flip 2009 (Festa Literária Internacional de Paraty), e pioneiros no evento como representantes da China no evento, que ocorre entre 1º e 5 de julho.

    Leia íntegra da entrevista concedida à Folha Online.

    Folha Online - Como a senhora recebeu o convite para vir para a Flip?

    Xinran Xue - Eu estou tão animada, nunca estive nessa parte do mundo. Tenho lido muito sobre a natureza do seu país, sua história, sua cultura... Sobre as pessoas fabulosas, estou adorando. E o Brasil para os chineses, se comparado ao restante dos países ocidentais, acredito que temos um melhor entendimento. Todos viemos de culturas muito misturadas, com crenças e filosofias muitos diferentes. Estou realmente muito animada. Também quero muito agradecer aos brasileiros por me darem esse tempo, essa chance de estar aí. Que agradecer a cada uma das pessoas que leram meus livros aí. Para os milhares de chineses que nunca puderam ler, escrever, ou mesmo viajar até o vilarejo vizinho, eles nunca sonharam em ser ouvidos ou ter suas histórias conhecidas. Eu realmente quero agradecer ao Brasil por isso. Algumas vezes volto para a China e as pessoas me perguntam: 'Eles conhecem a minha história?' E eu posso responder 'Sim', pois os meus livros foram publicados em mais de 30 idiomas. Acredito que isso se deve ao interesse das pessoas, à sua vontade de saber e de conhecer. E isso se deve à globalização. Mesmo que tenhamos séculos de história, nunca tentamos entender as outras pessoas antes, sempre quisemos que os outros nos entendessem.

    Folha - Quando a senhora era criança tinha o hábito de ler muito?

    Xinran - Sim, eu lia muito, pelas razões que dei em meu primeiro livro, no capítulo sobre a minha infância. Eu tinha acabado de entrar em idade escolar quando começou a Revolução Cultural. Meus pais foram presos e permaneceram na cadeia por quase dez anos basicamente pela mesma razão, porque ambos vinham de famílias capitalistas e falavam línguas estrangeiras, o que os colocava na categoria negra [dos comunistas] aos olhos das pessoas. Naquela época eu estava em uma prisão infantil com outras treze crianças, de idades que variavam entre dois anos e meio (a idade de meu irmão), depois a minha idade, e depois alguns que eram muito mais velhos, com 17 anos. Passamos juntos seis anos e meio, e durante esses seis anos e meio não tínhamos direito de brincar com mais ninguém. Eu tinha um professor de línguas que era muito gentil comigo. Quando ele via que eu apanhava de outras crianças --repetidamente, pois fisicamente eu era muito pequena-- ele tentava me esconder numa despensa, na qual ele escondia muitos dos seus livros para que os guardas vermelhos não os encontrassem. Então naquela época eu lia muito. Mas, para ser honesta, ainda que eu lesse muito não entendia muita coisa. Entendia apenas alguns poucos livros, ou algumas poucas páginas do livro. É por isso que depois eu reli muitos dos livros, depois dos 15, 16 anos.

    Folha Online - Mesmo que a senhora não entendesse muita coisa, houve algo mais marcante entre essas leituras, algo que tenha gostado em particular?

    Xinran - Sim. Acho que a primeira coisa que me chamou a atenção foi o livro de Victor Hugo (1802-1885) "Os Miseráveis" (Cosac Naify). A primeira página que nunca esqueci foi a pequena Cosette, que trabalhava naquele bar, sabe, como uma pequena escrava. Quando eu li aquela página, como dizer, isso mudou a minha vida, porque antes eu era tão só, tão assustada, eu era nova demais para entender tudo. E eu sonhava em ter uma chance de brincar com as crianças da minha idade, porque todos os dias eu não tinha direito de dizer nem uma palavra. E as pessoas não falavam conosco, apenas os guardas vermelhos, e menos de cinco palavras numa voz cruel e fria. Então eu era muito só e muito assustada sempre, e quando li aquela história eu imediatamente senti um grande alívio. Eu pensei "Ah, existem outras pessoas vivendo muito pior do que eu! E ela é mais nova do que eu, ela trabalhava sem ter comida o suficiente!". Pelo menos eu tinha comida o suficiente, ou podia dormir, mesmo que fosse muito mal. Então aquele livro sempre me influenciou muito. E também, eu acho que ele é provavelmente a razão pela qual sempre li muito da história baseada na guerra, e sempre li muita não ficção. Acho que consigo dividir o peso do meu passado com essas pessoas.

    Folha Online - A senhora cita muitos fatos de sua infância. Há algum que ainda seja marcante em sua vida?

    Xinra parte 1

    Xinran - Sim, há muitos deles. Durante o dia eu me controlo muito bem, a maior parte das pessoas me vê como uma mulher alegre. Mas à noite eu frequentemente acordo com os sonhos, os pesadelos, principalmente da minha infância. E não sei por que, psicologicamente, eles me dominam tão profundamente. Tentei fazer terapia, mas não funcionou. Há muitas coisas que frequentemente retornam aos meus sonhos. Vamos colocar assim: há pelo menos três coisas que eu nunca esqueci. Ou que sempre aparecem para mim à noite. Uma coisa foi o fogo, quando prenderam meu pai na minha frente, no primeiro dia da revolução cultural. Aquele fogo ficou em meus pensamentos porque os meus brinquedos estavam lá. Naquela época eu não tinha muitos sentimentos por meus pais, porque fui criada pelos meus avós. Então mesmo com meu pai sendo preso, isso não foi nada de mais para mim, eu era nova demais para entender. Mas todos os meus brinquedos e os meus livros queimaram, minha boneca, um bebê, queimou na minha frente. Isso volta para mim de novo e de novo, porque então as coisas na minha vida se tornaram todas negras por cerca de 10 anos. A segunda coisa foi que, depois daquele fogo, algumas semanas depois, porque ninguém queria brincar comigo, ou falar comigo... Então finalmente uma menina, que era minha colega de carteia escolar, nós dividíamos uma mesa juntas. Um dia ela usou o seu dedo para [fazer um gesto e] me pedir para me aproximar dela. Eu fiquei tão feliz, falei "Finalmente alguém percebeu que eu sou uma boa menina!", sabe? E achei que ela queria brincar comigo. Então eu corri em direção a ela! E [quando eu estava] a mais ou menos um metro de distância dela, a menos de um metro... A mão dela, imediatamente, eu não sei de onde, acho que antes ela deve ter escondido atrás das costas, ela tinha um tijolo enorme. Sabe, para construir prédios, um tijolo. Ela o acertou no meu nariz. E... imediatamente o meu rosto estava coberto de sangue, porque ainda consigo ver o sangue caindo através dos meus olhos. Então tudo se tornou vermelho. Isso volta para mim de novo e de novo. Até hoje, para ser honesta, eu dificilmente conto às pessoas sobre isso... Sempre que volto para a China eu espero encontrá-la. Eu só quero parar na frente dela e perguntar "Você se lembra disso?". Eu tenho até hoje esse nariz quebrado. Nenhuma dor, eu não consigo me lembrar de nenhuma dor naquele momento. Mas eu me lembro do vermelho, do pátio vermelho colorido pelo sangue. É muito forte. Essa é a segunda coisa que volta para mim com muita frequência. E a terceira coisa que eu acho que me afetou psicologicamente foi porque éramos 14 crianças juntas. E todas as noites os guardas vermelhos vinham até nós, nós dormíamos todos no chão perto da parede da gruta, na pedra. É por isso que até hoje tenho problemas de coluna. E os guardas vermelhos vinham até nós à noite para pegar crianças e bater nelas, ou talvez abusar delas no quarto ao lado. E a criança... os gritos, o choro, os berros... Todas as noites eu achava que era a minha vez, mas acho que sobrevivi porque era nova demais. E hoje eu ainda, é o que meu marido diz, eu ainda me encolho, e às vezes um som, ou a mão dele me fazem pular com o contato com o corpo dele. Eu não sei, eu sempre quero fugir do meu passado, e eu não sei por quê.

    Folha Online - E como começou a carreira da senhora no rádio?

    Xinran - Eu comecei a trabalhar no rádio no final dos anos 1980, em 1988. Isso foi depois de 12 anos trabalhando no Exército. Naquela época a China tinha aberto [sua economia] à cerca de um ano. O governo central tinha começado a relaxar um pouco seu controle sobre a mídia. Então o Estado decidiu colocar várias antenas de rádio, algumas muito grandes. O governo costumava ter essas antenas em 1949, e eram aquelas que lançavam todos os dias um barulho como "zzzzzzz...", pelo qual as pessoas ouviam rádios da América, ou emissoras como a BBC [do Reino Unido], ou Hong Kong ou Taiwan. Então, em 1988, o governo quis transformar esse sinal nas antenas, pois esses sinais eram muito poderosos, cobriam praticamente toda a Ásia, não apenas a China. Selecionaram pessoas de toda a China, sete homens e sete mulheres, entre 40 mil pessoas. Eu fui uma delas.

    Folha Online - Antes disso a senhora já havia pensado em se tornar jornalista?

    Xinran - Eu sonhava sozinha durante a minha infância, sempre tive sonhos ousados de ter um diploma para poder viajar pelo mundo. Como advogada poderia lutar pela justiça. Como jornalista, podia falar às pessoas pelas notícias. Foi por isso que comecei a escrever muito cedo, como repórter freelancer. Mas eu nunca pensei que pudesse ser, formalmente, uma jornalista. Até 1988.

    Folha Online - Como a senhora escolheu o nome de seu programa, "Palavras na Brisa Noturna"?

    Xinran - Naquele tempo a China era como um animal durante um longo inverno: ninguém saía. Você tentava perguntar coisas às pessoas e, mesmo numa estação de rádio, ninguém sabia como lidar com esse tipo de programa, sem nenhuma censura. Porque todos sabíamos que o governo ainda controlava os programas, e era um risco enorme. Meu programa era um risco enorme. Exceto pelo meu programa, todos os outros tinham que passar pela censura todos os dias. Mas o meu foi um dos primeiros a acontecer sem essa passagem pela censura. Estávamos todos muito assustados com essa possibilidade. Não sabíamos o que fazer, então nos decidimos por fazer esse programa à noite, pois naquela hora as pessoas não tinham telefone, não tinham televisão, e não muitas pessoas tinham rádio. Então, por volta de 21h, todos iam dormir. Se eu dissesse algo errado, podia ser seguro, sabe? É uma razão muito engraçada [para a escolha do horário do programa], mas é verdade. Na verdade, três semanas depois [do início do programa], eu comecei a receber centenas de cartas por dia. Naquele momento havíamos decidido fazer um programa de duas horas falando sobre a vida cotidiana, e não sabíamos como estruturá-lo, pois tudo era proibido. Havia uma enorme lista do que você não podia falar, até mesmo festivais estrangeiros, religião, sobre nada disso se podia falar. Então não sabíamos como fazer. Eu decidi ler trechos de livros, e tocar um pouco de música, e contar às pessoas um pouco de história. E ficamos pensando em um nome apropriado para este programa. Porque era à noite, e também porque eu acreditava que quando as pessoas ouviam aquela voz tão pessoal, é um pouco como se você estivesse em um buraco escuro, sem oxigênio suficiente para respirar --você precisa de algo fresco. Por isso escolhi esse nome, "Palavras na Brisa Noturna", tirado de um poema antigo.

    Folha Online - Alguma vez a senhora teve medo das repercussões políticas que seu programa poderia ter?

    Xinran - Não. Era impossível ter liberdade para falar. No mínimo qualquer coisa sobre religião, qualquer coisa sobre notícias estrangeiras, qualquer coisa sobre a liberação dos preços ou sobre a igualdade entre os sexos, tudo isso era proibido. Por exemplo, as pessoas mandavam cartas dizendo "tenho um problema com meu marido". Porque isso entrava no assunto do casamento eu não podia falar, era proibido. Alguém mandava uma carta dizendo "meu pai é um político, e acho que ele fez uma coisa errada". Sobre isso eu não podia falar. Alguém dizia: "Eu quero meus direitos. Eu sou uma mulher, e por que não posso fazer isso ou aquilo?". Não, eu tinha que falar sobre isso de outro jeito, de uma maneira mais diplomática. Era muito difícil. Ao menos por duas vezes, até mais, eu fui banida pela lei do governo. Eu parei de trabalhar muitas vezes como punição, não recebi muitas vezes o meu salário como punição. Quando começaram a fazer telefonemas no programa, isso é muito difícil de controlar, mesmo com o atraso de dez segundos que tínhamos. As pessoas que falavam, os ouvintes, eles podiam ouvir o tópico imediatamente. Mas o governo não pensava que isso era culpa deles, achavam que eu é que não controlava direito. Então fui punida muitas vezes.

    Folha Online - A senhora conta que três semanas depois de ter começado o programa, já recebia centenas de cartas diariamente. Esperava esse tipo de repercussão entre as mulheres?

    Xinra parte 2

    Xinran - Não. Eu lhe disse que era muito ingênua, mesmo já tendo trabalhado durante 12 anos antes [de começar no rádio]. Eu fui criada por uma educação de uma única cultura, e tinha informações de uma única cultura, e as crenças de uma única cultura. Eu não conhecia o enorme abismo entre ricos e pobres, não sabia que meu país havia sido inventado, em muitos aspectos, em sua história. Também não sabia que as pessoas tinham problemas tão grandes em suas famílias, especialmente as mulheres. Eu sofri muito por causa da relação com meus pais. Mas eu achava que isso era só na minha família, porque era uma família especial. Sabe, a maior parte dos chineses não fala nenhuma língua estrangeira, e meus pais falavam mais de três. Por causa disso pensei que os problemas fossem só com a minha família. Depois, quando as cartas começaram a chegar, eu estava tão surpresa e era tão ingênua, que não percebi como era importante para aquelas pessoas que escreviam cartas para mim. Muitas pessoas até mesmo pagavam alguém que pudesse escrever: pagavam com batatas, com batata doces, com vegetais, com peixe, por uma carta. Eu não sabia disso, eu era muito ingênua. Pegava uma carta bonita para ler, não abria todas uma por uma. Até que um dia um casal veio até a estação de rádio para dizer que eu era a assassina da filha deles. Ela havia escrito uma carta para mim, pedindo ajuda. E eu não tinha aquela carta, não tinha percebido como era importante. Depois disso a garota cometeu suicídio, pois achou que eu não queria ajudá-la. Ela deixou um testamento, me pedindo ajuda de novo. Isso foi muito chocante. E foi também um ponto de virada para o meu programa, para o meu olhar sobre as cartas. Depois disso fui para a universidade procurar ajuda. Eu era uma professora convidada naquela época. Todos os dias, dezenas de estudantes universitários vinham para a minha sala abrir as cartas para mim. As dividíamos em três pilhas: uma daquelas sobre as quais eu precisava falar no programa daquele dia; uma com aquelas que eu deveria responder naquele mesmo dia; outra com agradecimentos e comentários, coisas assim.

    Folha Online - A senhora acredita que já conhecia um pouco mais sobre o seu país e sobre a realidade das mulheres que viviam nele quando decidiu escrever "As Boas Mulheres da China"?

    Quando comecei a escrever "As Boas Mulheres da China", em 1998, já morava na Inglaterra. Decidi escrever o livro porque meus alunos, quando eu dava aulas na Universidade de Londres, conversavam comigo sobre as mulheres chinesas e diziam que elas eram fisicamente distantes, emocionalmente frias, e isso me deixava brava. Ao mesmo tempo, eu estava ferida pela ignorância das pessoas no Ocidente, por como era limitado o conhecimento delas sobre o meu país, um país enorme, com 1,3 bilhão de habitantes, 5.000 anos de civilização, e ninguém sabia disso. Então escrevi o livro. E quando meus alunos perguntavam sobre as mulheres chinesas, por que elas não se preocupavam com os relacionamentos, com sexo, com beleza, ou gosto, eu ficava muito irritada. Eu tinha entrevistado mulheres chinesas, cara a cara, mais de duzentas mulheres. Eu sabia como elas são fantásticas, sabia quão ricos são os seus sentimentos. Não há muitas mães como as mães chinesas, que sejam capazes de continuar com a vida, cuidando de suas famílias e filhos em meio a um deserto tão grande. Porque a China, antes de 1988, era exatamente como um deserto. Mas elas ajudaram essa nova geração, ajudaram a construir essa nova nação, essa nova geração, de uma forma tão fantástica. Deram seu sangue, seu suor, seu coração. Talvez elas não sejam belas, bem vestidas, talvez não pareçam jovens, ou nunca tenham tido educação. Mas, como mulher, como mãe, como filha, como avó, essa lição [das mulheres da China] é enorme para mim, que aprendi durante os 8, 10 anos na China em que eu trabalhei como jornalista. Por isso é que sempre disse a todos que eu fui educada por camponesas chinesas. Os chineses me diziam: "Não diga às pessoas no Ocidente que você foi educada por camponeses! Isso quer dizer que você é barata". E eu respondia "Eu não ligo! É verdade!". Antes disso eu não entendia nada da vida.

    Folha Onine - A mudança para a Inglaterra deve ter sido um enorme choque para a senhora, além de uma decisão muito difícil.

    Xinra parte 3

    Xinran - Sim, foi uma decisão difícil, em muitos aspectos. Primeiro, em relação à minha credibilidade. Eu achava que sabia inglês, quando não conseguia falar uma palavra, ninguém entendia o meu inglês de maneira nenhuma! Eu achava que conhecia a Inglaterra, em comparação com a maioria dos chineses, pois meus avós trabalharam para os ingleses por mais de 30 anos, e meus pais falavam inglês. Mas quando cheguei em Londres fiquei tão chocada! Me descobri totalmente ignorante no que se referia à vida das pessoas. Quando comecei a trabalhar como garçonete e o dono do restaurante gritava comigo, eu simplesmente não conseguia acreditar ou entender o porquê. Mas depois eu percebi que aquela era eu de verdade. Na China eu confiava muito no meu nome, mas não em mim, não na alma. Mas quando vim para Londres, as pessoas não podiam me reconhecer. Na China as pessoas me paravam e diziam "Você pode autografar isso?", sabe? E eu me encontrei, reencontrei o meu valor, o meu espírito, a minha coragem. Eu comecei do zero.
    Vou te contar um pequeno segredo: eu vim para Londres com apenas mil libras [R$ 3.200, aproximadamente]. Foi uma grande aposta! Minha mãe disse que eu estava louca. Deixei todo o dinheiro na China, para as famílias e as meninas que eu ajudava financeiramente. E com as mil libras eu me desafiei, se conseguisse me reconstruir com mil libras, essa seria eu de verdade. Senão, eu seria apenas uma farsa. Foi difícil, muito difícil. De novo eu me machuquei, ficava com os olhos cheios de lágrimas quando as pessoas não tinham ideia sobre o que é a China. E alguém vinha falar comigo, muito contente, e dizia: "Sabe, eu adoro a China, eu gosto de comer, adoro os pauzinhos!". Na China, começamos a comer com eles no ano três. Para nós é uma grande cultura. E eu pensava, e quanto às nossas belas pinturas em seda, nossa filosofia, nosso belo "Shakespeare chinês", a literatura, os poemas, nossa música, a seda, nossos vestidos... ninguém sabia de nada disso. Foi isso o que mais me chocou.

    Folha Online - A senhora tem muito carinho pela cultura chinesa, e o seu próprio nome foi escolhido numa demonstração desse carinho.

    Xinra parte 4

    Xinran - Sim, eu tenho muito, muito orgulho! Acho que tenho tanta sorte de ser chinesa. Porque a cultura é linda! Se você ler um único caractere é como uma linda pintura, se você entender o significado. Vou te dar uma palavra: temos um caractere que usa o sol e a lua juntos, que chamamos Amin. O significado é ou amanhã, ou "está claro", ou "é inteligente". Isso significa que a filosofia desse caractere é que se você entende a razão desse contato, ou a relação entre o sol e a lua, você sabe o significado do que é amanhã", você sabe o que é a luz. E você também sabe o que é a compreensão entre pessoas diferentes, entre diferentes culturas, entre diferentes coisas. Eu amo essa cultura!

    Folha Online - Como foi o processo de escolha do seu próprio nome?

    Xinran - Meu nome vem de um poema do final do século 19, um poema muito famoso. Tive essa ideia porque naquele tempo [do poema] a China estava imersa em uma escuridão muito profunda. Os manchus governavam pela Mongólia, no norte, e muitos intelectuais chineses escreviam sobre isso. Naquele poema está escrito algo como: "Não se preocupe, não chore, se você estiver na escuridão. E um dia acredite que a vida humana é como as estações --depois do inverno vem a primavera. Você vai se libertar, você vai respirar, quando chegar a primavera. Eu achei que isso cabia no meu programa de rádio... Na verdade, usei isso muito antes do programa, porque publiquei muitos artigos e poemas antes do programa. E eu sempre senti que, quando as pessoas se sentem tristes, ou quando eu luto com o meu passado, eu sempre disse a mim mesma "Vá em frente, porque em seguida virá a primavera". Isso se tornou muito parte da minha filosofia.

    Folha Online - Como foi para a senhora o estranhamento de se mudar para a Inglaterra e falar cotidianamente uma língua que não tem nenhuma relação com sua língua materna?

    Vou contar uma história do que aconteceu comigo em meu primeiro dia em Londres. A primeira coisa que vi foi [uma placa dizendo] "way out" [saída] no aeroporto. Fiquei tão chocada, porque na minha reação, na minha compreensão de inglês, o que eu sabia era "get out" [algo como "saia"]. Eu disse: "Meu deus, os ingleses são tão rudes!". E então entendi que o problema devia ser do meu inglês errado, pois todo lugar dizia "way out", "way out". Não poderia ser "saia daqui"! Depois, entrei em um táxi e disse "Hello! I'm going to the road". [algo como "Olá! Eu estou indo para a rua"] E o motorista disse: "Hello to you! Where do you go?" ['Olá para você! Para onde vai?"]. E eu disse: "Hello, road!" ["Olá, rua!"], e ele respondeu: "Hello to you again, but where are you going?" ["Olá novamente, mas para onde você vai?"]. Isso mostra o quanto eu estava perdida! Quando saí do táxi, não ousei dizer para ninguém que não sabia falar inglês, sabe? E eu estava com tanta fome, depois da viagem, da imigração, da bagagem, tudo isso, estava com tanta fome que entrei num restaurantezinho minúsculo perto do meu hotel. Era realmente pequeno, tinha sete ou oito mesas. E vi que todo mundo ali estava comendo frango, então achei que fosse um restaurante especializado em frango, porque meu conhecimento era muito limitado. Quando o garçom apareceu --um homem muito simpático, acho que ele era indiano, mas não me lembro exatamente-- eu disse a ele: "Quero asa de galinha". E ele respondeu: "Nós não temos isso". Então eu disse: "Então quero os pés da galinha", e ele respondeu que também não tinham aquilo. Eu disse: "Então quero o pescoço da galinha!". Ele se irritou e, usando mímica, ele disse: "Nós não servimos nem aqui, nem aqui, nem aqui!", enquanto apontava para sua cabeça, seus braços, seus pés e seu pescoço. "Nós só servimos o corpo!". Bom, eu entendi a mímica, e respondi usando mímica do mesmo jeito: "Você pode então me servir o traseiro da galinha?"! O restaurante inteiro parou de comer e começou a rir da gente! Nós tínhamos encenado a conversa inteira, como um show. Quando publiquei meu primeiro livro eu levei uma cópia para o restaurante, para agradecê-los, por me dar minha primeira refeição. E aí apareceu o dono do restaurante, que foi tão gentil comigo... Ele me deu um frango inteiro! Eu disse "Não, é muito caro para mim, eu sou uma estudante, não tenho muito, e não posso comer tudo isso, não posso desperdiçar meu dinheiro...". E ele disse "Coma, eu não vou te cobrar tudo". Então eu comi uma coxa, e ele só me cobrou duas libras... Um homem muito gentil!

    Folha Online - A senhora sente falta de se expressar em chinês?

    Xinran - Ah sim, muito! O inglês é uma língua tão jovem, comparado ao chinês... Eu costumava ter um programa com um professor de Oxford, John Harry. Falávamos de verbos, as diferenças entre verbos ingleses e verbos chineses. Então eu usei os meus dedos para mostrar um dedo, dois dedos, três dedos, a mão inteira de formas diferentes para expressar a ação de levantar. E perguntei a ele quantas palavras em inglês há para isso. Veja, em chinês, observa-se a linguagem corporal, a mão, os dedos, tudo em verbos diferentes. Mas o inglês não tem isso. É muito difícil.

    Folha Online - Em que língua a senhora escreve seus livros?

    Xinran - Não consigo escrever em inglês. Preciso escrever em chinês, pois são livros de não ficção, então preciso escrever na voz dos chineses, da maneira como falam. O único livro que escrevi em inglês foi "O Que os Chineses Não Comem" (Cia. das Letras, 2008), que é a coletânea de minhas colunas no "Guardian" [o jornal britânico]. Depois que publiquei esse livro um professor, um ex-colega meu, me ligou e disse: "Xinran, você é realmente muito corajosa. Eu nunca li um livro tão mal escrito em inglês!". E eu respondi: "Sinto muito!". Não, não posso escrever em inglês!

    Folha Online - A senhora gostaria de voltar a viver na China? Ou achou seu lugar na Inglaterra?

    Xinran - Na verdade, vou tentar explicar assim: o que eu encontrei eu perdi. Na Inglaterra, ou em qualquer país, eu sinto muito fortemente que sou chinesa. Me sinto chinesa fora da China. Mas, quando volto para lá, posso ver pelos olhos das outras pessoas que não sou parte delas. Me sinto como um animal selvagem, sabe? Você é criada por humanos, e depois eles te mandam de volta para o seu habitat selvagem. Então você acha que é um animal selvagem, mas os outros animais dizem que você não é, pois foi criada por seres humanos. Eu me sinto um pouco assim, no momento. É uma luta. Acho que, interiormente, gostaria de voltar a viver na China. Pela cultura, pela comida, não importa quanto tempo se passe longe da China, ou quantas línguas se fale, o estômago sempre pede o mesmo gosto. Isso acaba por ser um problema grande na sua vida. Todos os dias três refeições, ou pelo menos duas refeições. É a mesma coisa, nunca muda. A comida, a cultura, a língua, a filosofia, a paisagem... Ah, eu sinto falta da paisagem! Mas eu preciso ser honesta. É muito difícil amar a China. Só nos abrimos há 20 anos, e nesses 20 anos alcançamos muito na condição de vida, nas cidades, nos edifícios. Mas a atitude de vida, o sistema, o sistema do Estado, tudo isso ainda é muito difícil. Então, às vezes... Honestamente, eu não sei. Vou pensar nisso. Talvez na próxima vez que nos encontrarmos você me pergunte isso de novo e eu tenha uma resposta.

    Folha Online - Em um de seus artigos para o jornal britânico "The Guardian" a senhora diz que, a cada vez que vai para a China, fica mais e mais espantada com as transformações que ocorrem no país. A senhora chegou a se perguntar se ainda era chinesa? Encontrou uma resposta para essa pergunta?

    Xinran - Acho que se pode ver que, no meu coração, eu sou chinesa. Sou chinesa demais para ser ocidental. Mas acho que agora talvez eu penda para os dois lados, em alguns aspectos. Como no sistema social, ou em relação à educação, em relação à liberdade, eu realmente prefiro o Ocidente.

    Folha Online - A senhora acredita que se encontrou na Inglaterra?

    Xinran - Acho que eu ainda tenho o idioma como um grande problema. Se você não tem o [domínio do] idioma local, você não se comunica realmente com o povo local. Você não consegue entender, pois há muitas diferenças nesse idioma jovem. Acredito que eu estou numa longa jornada em direção às raízes de meu país e em direção ao Ocidente. É, estou nessa longa jornada. Estou caminhando.

    Folha Online - Algum dia a senhora imaginou que poderia se casar com um ocidental?

    Xinran - Não, nunca! Nunca tinha viajado para o exterior antes de 1997, quando vim para Londres. Por causa da minha criação, e como jornalista não se tinha autorização para sair do país. Antes do ano 2000, ou de 1997, aquele tempo era muito difícil. Depois, havia a cultura... Às vezes eu ainda não acredito. Agradeço muito a meu marido por isso, ele me aguenta bastante, pois de muitas maneiras somos muito diferentes. Por exemplo, na China, para membros da família, ou em respeito aos mais velhos, quando se conhece alguém é costume dizer "Oh, você parece tão cansado!". Isso quer dizer que o trabalho da pessoa deve ser muito difícil, e ela se preocupa com outras pessoas, dá seu tempo a outras pessoas. Você mostra que dá valor, assim. Mas no Ocidente, se você diz isso as pessoas ficarão furiosas com você. Não, eu nunca consegui imaginar isso... às vezes eu ainda não acredito!

    Folha Online - Como é o seu processo de escrita? A senhora escreve sobre eventos tão dolorosos que é difícil não imaginar que esse processo deva ser doloroso também.

    Xinran - Sim, é doloroso. É por isso que não consigo escrever meus livros em casa. Preciso escrevê-los em público, em salas largas cheias de gente, com muito espaço. Eu preciso disso, caso contrário não consigo. Não consigo escrever sozinha. Depois, eu nunca escrevo algumas poucas frases para depois parar por dois dias. Eu sempre me sento em algum lugar, penso, faço alguma coisa, leio minhas anotações das entrevistas que faço --porque tudo se baseia nesse material de entrevista-- e penso, e penso mais. Quando sinto que meus sentimentos me escapam e eu não consigo mais segurá-los, deixo-os partir. Como quando escrevi "Enterro Celestial" (Cia. das Letras, 2004). Um dia eu me despedi do meu marido, e quando ele voltou, achei que tinha voltado rápido demais. Perguntei a ele: "Esqueceu alguma coisa?". E ele disse: "Como assim?", e eu respondi: "Mas porque você voltou?" E ele disse: "Mas está de noite!". Tinham se passado 12 horas, e eu não tinha percebido. É assim que eu escrevo. Não posso escrever em casa, é muito perigoso. Meu marido sempre quer que eu escreva em algum outro lugar. É muito difícil. E para a minha escrita eu sempre tento libertar aquela pessoa de mim. Não escrevo por mim, mas por aqueles que entrevistei. Esse é o meu princípio, como respeitar, como ser honesta com os fatos. Porque eu escrevo sobre a vida de outras pessoas, e quero que meus leitores possam sentir, possam ver, possam dividir algo com essas mulheres chinesas. Não apenas pela minha mão, ou pela minha voz. É isso o que é muito difícil para mim, mas eu realmente tento. Não sei se funciona, mas até agora posso ver, pelas cartas que recebi --talvez algumas centenas de cartas do mundo inteiro--, que não importa a língua, pois meus livros foram publicados em mais de 30 idiomas, percebo que as pessoas sentem isso. É, acho que esse é o meu princípio. Sim, é difícil. Por isso é que, agora que estou trabalhando em meu novo livro... Meu marido sabe que às vezes fico completamente perdida. Corto meus dedos, machuco minhas pernas... Eu volto ao tempo em que vivi aquilo. É muito difícil, mas acho que é muito importante. Eu não gosto de usar a vida de outras pessoas, de me vestir como outras pessoas para depois contar as coisas do meu ponto de vista. Acredito que é muito importante dividir a vida real, mas o que é real? Honestamente, é algo muito doloroso de se fazer, mas temos que ser honestos conosco e com as outras pessoas também.

    Folha Online - A senhora sente algum tipo de leveza, algum tipo de liberdade depois que termina um livro?

    Xinran - Eu achei que sentia, mas não sei! Depois de escrever sinto às vezes um alívio imenso. Mas aí vem a publicidade, e as divulgações do livro, e as perguntas das pessoas. Isso me faz pensar mais e mais. Acho que deve haver um certo espaço quando se escreve a história de outra pessoa, você a deixa depois de tê-la visto em determinado lugar. E tantas pessoas carregaram aquela história antes de você, e dividiram aquela história com você! Nos últimos dez anos eu escrevi um total de seis livros, além de colunas para revistas e jornais. Precisa haver um espaço. Quando terminei meu último livro, "Testemunhas da China", eu estava tão assustada, estava profundamente presa naquele livro e precisava sair. Então, pulei para um outro livro, e fiquei presa nesse outro livro também.

    Folha Online - Qual é o assunto de seu novo livro?

    Xinran - Depois de "Testemunhas da China", escrevi um livro sobre a maternidade secreta, mais histórias de "As Boas Mulheres da China". As dez mulheres que entrevistei falam sobre por que elas deram suas filhas. Mais de 120 mil mil bebês chinesas foram adotadas por famílias de 27 países. E fiz um tour desse livro no mundo todo, e recebi mensagens de e-mail tão emocionantes me perguntando por que a minha mãe chinesa não me quis. Pensei muito sobre a minha vida, sinto falta da minha mãe, mesmo que ela ainda esteja viva. Ela nunca teve tempo para mim. Então acho que deve ser muito doloroso para essas meninas, quando se tornam mães e suas crianças perguntam isso a elas... Como responder a essa pergunta? Eu só gostaria de poder fazer alguma coisa. Não importam as razões, se políticas, de tradição, de ingenuidade... Acredito que essas meninas abandonadas precisam ter alguma razão real para o futuro, pois suas vidas já são a prova do amor de suas mães. Porque as mães as mantiveram vivas, quando poderiam muito bem tê-las matado. É doloroso. Depois de "Testemunhas da China" eu implorei aos meus editores para não ter de fazer publicidade para "The Secret Mothers" [algo como "As Mães Secretas" --ainda não publicado]. Eu não sei, talvez eu fique envolvida demais, emocionalmente envolvida.

    Folha Online - A senhora acredita que com seu trabalho como escritora, radialista e na ONG "The Mother's Bridge of Love" (algo como "A Ponte de Amor das Mães'), tenha sido capaz de dar um pouco mais de voz às "silenciosas" testemunhas da China?

    Xinran - Sim, acredito. É por isso que criei essa ONG, para oferecer um pouco mais de entendimento entre o Ocidente e a China, especialmente para as crianças. E também porque em toda a China não há um único hospital para crianças deficientes. E ainda porque há tantas crianças chinesas adotadas em países ocidentais que se sentem deslocadas, porque as culturas são tão diferentes. Na China nós nunca falamos sobre problemas de família, porque isso pode significar que a sua família é errada, que ela age contra o governo, ou talvez você tenha feito algo errado... Como todas essa história das mães secretas que nunca tiveram a chance de dividir seu segredo com os outros. Então pensei que eu podia construir essa ponte de mães e dar às pessoas a chance de falar, de ter voz, mesmo essas mães que nunca tiveram a chance de ler e de escrever, elas podem ouvir. Elas podem ouvir as pessoas. Eu não sei quanto posso fazer, mas até agora tentamos muito resolver os problemas, nos tornamos maiores, nos espalhamos e atingimos, acho, 22 países. Mas é uma luta. De um lado temos as doações e os fundos, e de outro precisamos desenvolver a estrutura para lidar com todos esses recursos e apoio. As pessoas doaram muito, e nós precisamos fazer algo realmente importante com isso. Precisamos melhorar a contratação. Além disso, os funcionários têm que falar várias línguas, pelo menos inglês e chinês. E não é só a habilidade dos idiomas, a China nunca teve uma fundação voltada para as crianças, e precisamos persuadir o governo a aceitá-la. O governo dizia que a ONG era algo ligado à religião, por tratar de crianças, e porque o nome remetia aos missionários que vieram para China nos séculos 17 e 18. É um trabalho difícil, mas eu realmente acredito que pode ajudar as pessoas nas suas diferentes necessidades, com suas relações e seus sentimentos, as meninas chinesas e as mães chinesas.

    Folha Online - Deve ser um trabalho bastante recompensador.

    Xinran - Sim, mas eu estou um pouco brava com isso. De segunda a sexta na maior parte do tempo eu estou trabalhando na ONG. A minha escrita só acontece aos fins de semana, ou nos aeroportos. Nos fins de semana e nas férias eu passo a maior parte do tempo escrevendo. Meu marido me escreveu uma longa carta ontem, dizendo que ele me conhece há dez anos e eu nunca tive férias. Ele diz que eu preciso ter um pouco mais de tempo para mim. Eu pensei nisso, e acho que talvez precise de tempo para me recarregar. Foi por isso que eu deixei a China, afinal. Eu estava exausta, me sentia completamente vazia. Preciso me recarregar, ficar de pé novamente.

    Folha Online - Como o seu filho se relaciona com a China?

    Xinran - Ele é meu maior apoio, e volta frequentemente para a China como voluntário. Tem 21 anos e faz faculdade de química. Ele lê todos os meus livros, mas infelizmente o inglês se tornou a primeira língua dele. Ele fala muito e lê muito em chinês, mas praticamente não escreve. Ele se interessava muito pela China durante a adolescência, pegava livros de história ou filosofia para ler. Ontem mesmo nos encontramos e conversamos muito sobre a dificuldade que as pessoas têm de entender a China e a religião. Os chineses nunca tiveram uma religião nacional e as pessoas não entendem isso, é um país tão grande com pessoas tão diferentes... Como uni-las todas em uma única fé? É muito difícil. Mas conversamos muito, e ele volta muito [à China]. Ele é um jovem muito bom, eu preciso dizer isso. Muito apaixonado, com um coração enorme.

    Folha Online - A senhora acredita que conseguiu passar para ele todo o seu apreço pela cultura chinesa?

    Xinran - Acho que sim. Eu não desejo forçá-lo. Da minha vida, eu acho que aprendi uma coisa: apenas o amor e a paixão podem fazer uma pessoa mudar. Um membro da sua família nunca vai mudar por você empurrá-lo à força. Então eu nunca o forcei. Mas eu tentei fazer coisas interessantes com ele. Por exemplo, nós cozinhamos. E ele se surpreende e diz: "Mãe, você nunca cozinha a mesma coisa duas vezes. Nós sempre tentamos fazer coisas diferentes". E eu digo a ele que sim, porque os chineses vivem e deixam seu legado. São milhões e milhões de pessoas, e quando elas vão embora, o que deixam para trás? Além da cultura, da religião, da história é a comida. Deve haver milhões de jeitos de preparar algo. Por exemplo, algumas primeiras pessoas provaram caranguejo. Talvez elas tivessem provado aranhas também. E talvez aranhas também sejam boas para comer. E daí algumas pessoas seguiram o mesmo caminho, e comeram o caranguejo. Você precisa provar de tudo! Se você entra para a minha casa, vê que nunca usamos pratos iguais, ou xícaras iguais. Todos usamos coisas diferentes, que trazemos de todos os lugares do mundo. Não tenho dois prato iguais.

    Folha Online - Você costumava dizer em seus artigos que gosta de brincar com as coisas, de transformar objetos em outros inusitados, como um sapato velho em uma floreira. É uma tentativa de mudar de perspectiva, de ver as coisas sob outro ponto de vista?

    É verdade, eu uma vez plantei bambus chineses em uma bota inglesa. Explico para você o porquê, porque foi por isso que me tornei jornalista. Quanto mais eu vejo da vida, mais percebo que tivemos problemas no nosso sistema educacional. Eu me lembro de uma vez, quando era jovem... Uma de minhas colegas de jornalismo que ouvia meu programa me disse: "Ah, você só fala sobre a vida, é muito fácil! Venha ver o nosso dormitório, nós não temos nada". E eu fui até o dormitório dela. Era um quarto muito pequeno, com uma rede de proteção contra mosquitos em cada cama, para dar um pouco de privacidade. E eu perguntei a ela "Você tem alguma roupa aí? Uma meia ou um sutiã? Me dê aqui". Eu usei clips de papel para pendurar todas essas coisas na rede de mosquitos de cada cama, como um quadro. Diferentes garotas tinham diferentes quadros. Eu disse a elas: "Agora vocês usem isso, e lavem, e depois pendurem de novo. O quadro vai mudar". Esse quadro é feito da sua personalidade, você escolhe as cores e pode fazer uma pintura com esse material, não precisa de nada novo. A beleza, a arte, a alegria, não estão no novo, no que pode ser comprado. Elas vêm de você, da sua vida, de cada pequena coisa que te rodeia. É por isso que a minha vida é cheia de coisas interessantes, eu faço algumas coisas meio malucas e diferentes. E disse para o meu filho: "Se você sabe tudo, isso é acadêmico. Se você sabe como usar tudo, isso é técnico. Mas se você sabe usar o seu conhecimento para fazer coisas de jeitos diferentes, aí você vive com arte". Eu acredito nisso. Talvez seja loucura, mas eu acredito nisso.

    Folha Online - A senhora experimenta também novos jeitos de escrever e de se comunicar com as pessoas, como por exemplo seu blog. Por que decidiu começar a escrevê-lo?

    Xinran - Isso foi uma decisão da minha editora, a Random House. Para mim, escrever em inglês é muito difícil. Quando eu escrevia para o "Guardian" era um sofrimento, a cada duas semanas mais mil palavras. Lição de casa. E eu fiz por três anos. O inglês é muito difícil para mim. Mas eu tenho a oportunidade de escrever para jornais e revistas, e eu também mantenho um diário. Não achei que precisasse de um blog. Mas a editora insistiu, porque muitos leitores queriam se comunicar comigo. Eu não sou muito boa nisso, sou um pouco preguiçosa. Mas acho que tenho alguns bons leitores lá. Às vezes tenho vontade de responder e fico com preguiça, me dou desculpas, como ter que terminar um trabalho, e depois aparece outra coisa. Mas não tem desculpa, eu só tenho sido preguiçosa.

    Folha Online - Como a senhora vê a relação dos jovens chineses com o passado do país?

    Xinran - Acho que temos um problema. Muitos chineses mais velhos reclamam que os jovens não ligam para a história da China, ou não valorizam os mais velhos, ou são muito ingênuos. Eu acho que é um pouco injusto para com os jovens. Se você cresce sem informações de uma biblioteca, de livros, de aulas, mesmo da família, como você pode saber de algo? A China é um pouco como a Itália, a Alemanha, o Japão após a Segunda Guerra Mundial, ninguém quer falar sobre o que aconteceu, até muito recentemente. Na China há uma parte de nossa cultura sobre a qual nunca falamos. E também não autorizamos os jovens a questionar ninguém. Nem em casa, em palestras, em aulas. Também tínhamos um sistema legal muito cruel: se uma pessoa via outra fazer algo errado, não importa se era amigo ou família, a pessoa tinha que denunciar e o outro poderia ser condenado à morte. E esse sistema foi criado em 30 a.C., creio, pelo primeiro imperador chinês, e sobreviveu pela história da China até 1912. Esse país foi regado por esse tipo de medo. Nos últimos cem anos a China nunca interrompeu as perseguições e mortes políticas, além de muitas, muitas guerras. Então as pessoas têm muito medo. É como a Revolução Francesa (1789-1799), se você diz alguma coisa errada tudo acaba errado, e você pode até ser morto. Por todas essas razões, os jovens não têm como obter informação nenhuma. Não é culpa deles. Minha discussão com alguém como minha mãe é assim, ela diz: "Você não deveria abrir esses assuntos, tocar nisso é muito doloroso". E eu digo: "Na sociedade ocidental, mesmo que eles não falem, registram alguma coisa, há arquivos, há fotos. Na China a Revolução Cultural queimou tudo. Se não falarmos, se não registrarmos agora, como os jovens vão saber? Como terão informações? E se eles não souberem, como darão valor à sua história, ao seu passado, aos seus pais e avós? E como poderão evitar os mesmos problemas, os mesmos erros?". Acredito que isso seja muito difícil para os jovens. Eu espero que os chineses, que o governo central possa pensar nisso, antes que seja tarde demais. Antes que a geração mais antiga se vá, antes que tudo desapareça. Acho que isso é muito urgente neste momento.

    Folha Online - Se ensina algo nas escolas chinesas sobre a história recente do país?

    Xinran - É difícil, pois foram criados em uma educação de uma só cultura. Muitos estudantes [chineses] na sociedade ocidental ficam profundamente feridos com o conhecimento que o Ocidente tem da China. Eles ficam perdidos. Meu filho me disse, quando nos mudamos para a Inglaterra, quando ele tinha 11 anos: "Mamãe, meus amigos na escola não sabe nada da China! Eles só falam da Revolução Cultural! O que é essa Revolução Cultural?". Ele não sabia na época, porque na China não se falava nisso. Mas ele sabia sobre os escravos negros, e perguntou para seus colegas de classe. E eles não sabiam, porque em seus livros de história não se falava nisso. Estudantes chineses tiveram exatamente o mesmo problema em todos os lugares. Acredito que depende muito da China o quanto a China é capaz de se abrir, ou o quanto os chineses podem ser verdadeiros ou corajosos consigo mesmos. Acredito que a educação pode realmente ajudar.

    Áudios - Tradução e locução: TERESA CHAVES; edição: ANAÍSA CATUCCI (colaboração para a Folha Online)

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