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    Estilo de Bernardo Carvalho passeia entre cinismo e coragem

    TERESA CHAVES
    Colaboração para a Folha Online

    29/06/2009 19h44

    Uns acreditam em Deus nas suas diversas formas. Outros creem no amor, no dinheiro, na fé em qualquer coisa, em si mesmos. Bernardo Carvalho é um daqueles que acredita. Mas sua crença é monoteísta: ele diz acreditar tão somente na literatura.

    O escritor carioca de 49 anos é um desencantado. Seus livros falam do desencanto com o mundo, enquanto ele, autor, reafirma uma descrença profunda em tudo que não seja literatura. Alguns críticos dizem que essa é a falha de sua geração de escritores, que é cedo demais --se é que há uma época-- para todo o niilismo que transborda de suas obras.

    Outros dizem que esse suposto desencanto é farsa, que Carvalho encontrou nele uma fórmula mercadológica para agradar um editora e se repete continuamente nela, só nela. Que os críticos tirem suas conclusões. Enquanto isso, o escritor escolhe uma terceira via e despeja nela a sua acidez, explicando seus textos sem explicá-los, horrorizando-se com a falta de leitura generalizada sem pensar em oferecer alternativas. Carvalho se apresenta, antes de mais nada, pela controvérsia.

    Durante alguns anos ele escreveu para a Folha de S. Paulo uma coluna sobre literatura. Hoje, sem a necessidade e a cobrança de uma escrita semanal, ele fala sobre literatura --inclusive sobre a sua-- de maneira aberta, rígida e profundamente crítica. Abandonou o comentário institucional para poder ter a liberdade que tanto preza e que considera fundamental para sua literatura. Estreou como escritor com uma coletânea de contos, "Aberrações" (Cia. das Letras, 1993); foi o livro que definiu seu primeiro jeito de escrever, um estilo muito sucinto, curto. Deliberadamente, segundo o autor, o leitor deveria se sentir impelido, ao ler uma frase, a fechar o livro e pensar no que construir a partir daquela frase.

    Um projeto nada simples para um escritor que afirma não ter nenhum talento para entender o que quer o leitor. Pelo contrário, diz que o que escreve está muito longe do que quer o mercado, e vê seu trabalho como uma enorme aposta da editora (a Cia. das Letras), que não o publicaria hoje em dia. Por outro lado, escrever aquilo que gostaria de ler --e nisso desenvolve, certamente, algum contato com seu leitor, talvez uma outra versão dele mesmo. Apesar de não enxergar nenhum espaço para a literatura que escreve ele prossegue como escritor, porque não quer fazer outra coisa.

    É difícil para o leitor entender se Carvalho é um cínico, se é um corajoso que escreve apesar da corrente, ou se é apenas um provocador. Mas as ambiguidades que cercam a figura do autor --e que ele não procura desfazer-- encontram-se também em seus livros, e são talvez o núcleo mais importante deles.

    Ele é radical ao definir o papel da literatura no Brasil: é quase nenhum. Segundo ele o texto não faz parte da cultura brasileira, e ele nem está falando só de literatura. As pessoas são analfabetas e não se importam com textos, e a elite brasileira é definida por ele em uma palavra: "iletrada". O romance que o lançou como promessa da literatura nacional, "Nove Noites" (Cia. das Letras, 2002), foi pensado com uma certa dose de raiva e irritação, uma reação à recepção de livros anteriores e ao que queria o tão famigerado "mercado" (palavra que aparece constantemente associada à literatura nas falas de Carvalho).

    Seu sexto livro é baseado na história real de um antropólogo norte-americano que veio para o Brasil estudar os índios numa aldeia no Tocantins e terminou se matando entre eles, aos 27 anos. O escritor soube da história de Buell Quain por meio de um artigo da antropóloga Mariza Corrêa, publicado no "Jornal de Resenhas" da Folha de S. Paulo. A partir de uma história um tanto quanto trágica, decidiu investir no tipo de literatura que achava que o público queria, mas estabelecendo um jogo constante com seus leitores.

    É o que conta ao participar do "Paiol Literário", projeto do jornal de literatura "Rascunho", em 2007 - "Quando eu o escrevi, tinha escrito uns livros esquisitos, que não vendiam, que as pessoas não gostavam. Então, eu fiquei irritado e entendi o que as pessoas queriam --história real, livro baseado em história real. Pensei: 'se é isso que eles querem, é isso que eu vou fazer'. Mas resolvi fazer algo perverso para enganar o leitor, criar uma armadilha. O leitor acha que está lendo uma história real, mas é tudo mentira.

    "Não poupou esforços nem pesquisa para montar essa armadilha. No livro há fotos, autobiografias e um personagem que muitos identificaram como sendo o próprio autor. É um menino que frequenta, no fim da década de 1960, uma fazenda no Xingu, propriedade de seu pai. Trinta anos depois esse menino, que se tornou escritor, tenta reconstruir a trajetória de Quain e compreender as razões para o seu suicídio. As datas batem com a infância de Carvalho, que aparece na orelha do livro em uma foto tirada quando ele tinha seis anos, ao lado de um índio no Xingu --onde, de fato, seu pai teve terras.

    É uma pista? Não, é mais uma peça da armadilha criada pelo autor. Ao mesmo tempo em que apresenta as possibilidades autobiográficas em seu romance, ele também se recusa a ter a autobiografia como chave de interpretação. Não acredita em separar a ficção da realidade: em última instância, tudo é ficção e é isso o que importa. Em todo o seu tempo de pesquisa em antropologia, para poder escrever sobre os índios, concluiu que a narrativa feita por eles nunca dá margem para que um estrangeiro aos seus hábitos descubra o que é verdade ou o que é mentira. Adotou o mesmo processo.

    A saída deu certo. O livro recebeu o Prêmio Portugal Telecom e serviu para que ele recebesse a encomenda de um novo romance. Em uma parceria da Editora Cotovia e a Fundação Oriente, Bernardo Carvalho recebeu uma bolsa para escrever sobre algum país oriental. Foi para a Mongólia, por acreditar que ali estava o que havia de mais diferente em relação ao mundo que conhecia.

    Viveu ali algum tempo, viajando de carro com um motorista e com um guia, e descobriu o que não esperava: um país que, como Carvalho define, passou do feudalismo para o comunismo. Ou seja, de uma arte que era feita sob comando da Igreja para outra que está a serviço do Estado. A arte, como o escritor a compreende, não tinha seu lugar ali. Que arte é essa? Simples, ele diz. É uma arte que não serve para nada. Que não busca utilidade, que não obedece a demandas. Para o escritor, essa ideia de não ter função permite uma liberdade tremenda de criação, de busca de uma nova demanda, de criar um mundo que ainda não existe despertando nos leitores uma vontade que eles ainda não têm.

    "Mongólia" (Cia. das Letras, 2003) foi feito nos mesmos moldes e teve resultados semelhantes. Carvalho recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, além do Jabuti de melhor romance. O livro também trata de uma história de descobertas e suspense, e não procura retratar a Mongólia como Carvalho a conheceu. O país do livro é fictício; o homem que guiou o escritor em suas andanças odiou o texto, justamente por isso. Mas Carvalho não costuma esconder sua indignação com a falta de percepção do público em relação às fronteiras entre realidade e ficção.

    "Outra professora universitária escreveu um ensaio longuíssimo sobre "Nove Noites" e "Mongólia", dizendo que em ambos o personagem era um gay enrustido. E como os romances eram autobiográficos, só podia ser eu o gay enrustido.', conta ele no "Paiol Literário". O romance seguinte, "O Sol se Põe em São Paulo" (Cia. das Letras,), traz uma outra tentativa de armadilha, para confundir ainda mais os leitores em seu trânsito entre esses dois mundos que não necessariamente se opõem.

    Ainda assim, o escritor parece considerar que suas tentativas são infrutíferas. Ao voltar da Mongólia ele iniciou um projeto com o grupo de teatro Vertigem, na periferia de São Paulo. Detestou. Em primeiro lugar, não gostou de escrever para atores --o texto era seu, ele não era copidesque dos sentimentos de ninguém. Depois, percebeu que vivia uma ilusão em relação à literatura que produz. Essa ideia de uma literatura que não servia para nada, que não servia a ninguém e que ele não encontrou em suas andanças pelo Oriente, também não encontrou aqui.

    Decepcionou-se ao perceber que a liberdade literária que tanto valoriza não é possível no Brasil. E concluiu que a sua literatura não serve para nada, já que não serve ao mercado --será? Segundo ele, a literatura anglo-saxã é valorizada exatamente porque funciona submetida a esse tal mercado literário, e isso é desprezível. Bem, ainda que seus livros não sejam escritos por essa ótica mercadológica, não parece que o mercado tenha qualquer dificuldade em aceitá-los. Mesmo porque "Mongólia" foi um livro escrito sob encomenda, e bem aceito pela crítica.

    Escrever por encomenda não é um problema para Carvalho. Sua obra mais recente, "O Filho da Mãe" (Cia. das Letras, 2009), foi encomendada para fazer parte da série "Amores Expressos", que enviou 17 autores a 17 países diferentes para escrever histórias de amor.

    Carvalho foi para a Rússia, especificamente São Petesburgo, e escreveu não uma história, mas várias. Permeiam o livro o amor materno, o amor homossexual, o amor jovem. É um romance de jogos, de trânsito entre o público e o privado, entre o implícito e o explícito. Jogos estes que são culpa da própria cidade. São Petesburgo aparece como uma cidade controladora, devassada pelo olhar do Estado. Ao chegar na cidade o escritor tentou estabelecer uma rotina para se habituar ao lugar: escolheu um cybercafé para escrever, uma lavanderia, matriculou-se numa academia de ginástica. Porém, em seu terceiro dia, foi assaltado às seis da tarde numa das principais avenidas de São Petesburgo.

    O assalto foi presenciado por diversas pessoas, e ninguém reagiu. O incidente fez com que Carvalho passasse o restante de sua temporada com um certo medo, com a sensação desagradável de ser vigiado, e o romance foi escrito sob essa suspeita constante. Resulta em personagens um pouco paranoicos e, de fato, em uma sensação de vigilância.

    "O Filho da Mãe" é, sem dúvida, um dos livros mais controversos da obra de Carvalho. Alguns críticos disseram que mais parecia uma desculpa ruim para um guia de viagem. Para outros, é a perda dos dotes literários que apareceram em seus trabalhos anteriores. Outros ainda o veem como genial e mantenedor dessa nova estrutura literária que o autor pretende ter. Por mais que aprecie elogios da crítica, o escritor diz que não se importa com a controvérsia. Na verdade, é parte de seu projeto, já que ele não escreve para agradar ninguém, e sim por uma necessidade --ou mesmo por uma crença na literatura.

    Ele mesmo é muito crítico em relação a seus textos. Reconhece que sua literatura é fruto da cultura em que foi criado, e que essa cultura rejeita escritores como Paulo Coelho, por exemplo. Mas talvez, fora de sua ótica, Paulo Coelho seja um bom escritor e ele, Carvalho, seja uma porcaria. Talvez a linguagem banal que ele às vezes usa propositadamente não seja tão proposital assim, e ele mesmo escreva mal. Para ele, tudo faz parte das descobertas que a escrita proporciona. É por isso que escreve, pelo sabor de criar a pura ficção. Não quer saber de fronteiras: elas existem, ele as ultrapassa e pronto.

    Esteve no limbo entre ser escritor e crítico, e fez sua opção. Não gosta da autopromoção permitida pela internet, que faz com que todos --na ótica de Carvalho-- se vejam como gênios. Mas isso não impede que ele mesmo tenha mantido um blog enquanto estava em São Petesburgo para escrever sobre seu trabalho.

    Se a obra desse autor é controversa, ele corresponde a ela. Talvez tenha vontade de agradar, mas não faz muito para isso. Prefere um certo isolamento, reforçando sua pretensão de não pertencer a nenhum gênero literário. Não pretende ser genial, não pretende ser aclamado, não pretende ser único. Quer apenas escrever o que gostaria de ler e, quem sabe, transformar suas ilusões sobre literatura em realidade.

    Bernardo Carvalho; Feira do Livro de Lisboa
    CEM; UOL; Rascunho;

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