A audiência realmente importa tanto quanto fomos condicionados a acreditar? Faço essa pergunta porque "Som & Fúria", a série da Globo sobre Shakespeare, é uma das melhores coisas que já vi na TV aberta, de longe, nos últimos cinco anos. Mesmo assim, o programa tem perdido feio no Ibope até para filmes de quinta exibidos na Record. Não chega a dez pontos.
E eu mais uma vez pergunto: E daí? Não há espaço nenhum para a diversidade na grade de programação? As TVs têm apenas que buscar produzir e reproduzir aquilo que o público maciço supostamente espera ver? Se a resposta para essa pergunta for sim, então a TV brasileira realmente ainda está na era paleozóica, porque, nos Estados Unidos, país que serve de modelo supremo para executivos de TV que valorizam tanto as questões de mercado, a segmentação de público é quase tão importante quanto a preocupação com números e cifras representadas por essa entidade chamada audiência que, a meu ver, não passa de mera abstração estatística, como os números sobre segurança em voos e, em alguma proporção, as pesquisas de intenção de voto. Chega a ser engraçado ver um país tão avesso à matemática quanto o Brasil ter os números como parâmetro para algo não quantificável como a arte e a cultura.
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Zé Paulo Cardeal/TV Globo | ||
Elenco de "Som & Fúria" em cena da minissérie; audiência perde no Ibope, mas tem vantagem na qualidade |
"Som & Fúria" não é apenas um programa bem produzido, com atores bem dirigidos, ótima trilha sonora, roteiro bem amarrado, edição dinâmica, fotografia, figurinos e direção de arte impecáveis, personagens cativantes, elenco de primeira --seja do teatro, seja da TV. Sua importância está no fato de discutir, na própria TV, de forma bem humorada, inteligente e, mais importante, não hermética, o papel do teatro no atual panorama das artes cênicas brasileiras.
É mais ou menos o que fez o filme "A Malvada" (EUA, 1950), ao expor os bastidores do teatro em comparação com o cinema. Naquela produção, o diretor da Broadway Bill Sampson, interpretado por Gary Merill, dá um discurso inflamado sobre a decadência do teatro para a aspirante a atriz Eve Harrington (Anne Baxter), que questiona porque ele está deixando sua posição artisticamente privilegiada para dirigir um filme em Hollywood, o que ela, ingenuamente, considera uma fábrica de produtos culturais de baixo valor artístico. "Não aprove ou desaprove. [O cinema] pode não ser o seu teatro, mas certamente é o teatro de alguém", rebate o diretor.
Nota-se que a discussão é velha. "Som e Fúria" traz isso para a atualidade, mas, dessa vez, o teatro vai à forra com a TV. Mostra o ator de TV interpretado por Daniel Oliveira buscando reconhecimento artístico aonde? No palco e ao vivo, pois o teatro ainda é a mãe das artes cênicas. Pondera que, se alguém quer ser um ator de verdade, seja no cinema ou na TV, tem que ter uma formação teatral e que todos os atores, bons ou que pretendem ser bons, sabem disso.
Ou seja, "Som & Fúria" pode não ser a TV da maioria, mas certamente é a TV que alguém espera ver, a minha por exemplo, e de mais uns poucos que somam esses quase dez pontos no Ibope. Um meio que é capaz de produzir elementos de valor artístico sem necessariamente terem de ser comerciais, embora também seja capaz de trazer obras de igual valor artístico, comercial e até político, como já ocorreu com programas como as novelas "Vale Tudo" e "Que Rei Sou Eu?"
Louvor solitário
É triste saber que a minha empolgação com "Som e Fúria" é quase solitária. Após a exibição do primeiro capítulo, fui comentar a série no Twitter. Abro a página e me deparo com alguns comentários de pessoas que diziam "não terem entendido nada" da minissérie, como se aquilo fosse uma tese de mestrado de física (embora, ironicamente, um dos comentários tivesse sido escrito justamente por uma pessoa com mestrado em física nuclear).
Respondi na hora que não era de se surpreender, afinal, em uma sociedade em que as pessoas acham que o ápice da comunicação humana são 140 caracteres (o paradigma do Twitter), uma série sobre Shakespeare era demais mesmo.
Houve quem se ofendesse, mas o que quis dizer com isso é que não damos mais oportunidade para que as coisas se expressem em sua verdadeira forma e em seu verdadeiro tempo.
Temos que enfiar hormônios no gado para que ele cresça mais e mais rapidamente, temos que manter as galinhas acordadas à noite toda para que cresçam em peso e em tamanho em tempo recorde. Temos que fazer a flor desabrochar mais rápido com adubos químicos. Temos que automatizar a indústria em detrimento do trabalho humano para aumentar a produção e cumprir prazos estabelecido pelo "mercado", essa outra entidade abstrata. Temos que sair com a pessoa mais linda fisicamente, sem nos darmos a menor possibilidade de nos surpreendermos com alguém não tão bonito assim. Temos que, já no primeiro capítulo de uma série com 12 episódios, ver se aquilo deu Ibope, se era facilmente palatável e, já de cara, elaborar uma opinião crítica sobre algo que não vimos no conjunto. É como se tudo já estivesse posto, determinado e planejado.
Hoje é o último capítulo de "Som e Fúria" e estou ansioso para ver o que acontecerá com aquela companhia de teatro, com a montagem maldita de "Macbeth" e com o destino daquele teatro, cujos personagens ironizam tanto a hegemonia da TV e, ao mesmo tempo, tenta se firmar artística e comercialmente. Sei que, logo após as cortinas descerem, me sentirei novamente órfão, pois a minha TV mais uma vez foi reprovada na prova de matemática.