• Ilustrada

    Friday, 10-Jan-2025 05:47:13 -03

    Dorival Caymmi criou novo gênero musical com suas canções praieiras; leia trecho

    da Folha Online

    12/10/2009 00h00

    "Não parece coisa feita por gente: parece o canto das coisas em si." Arnaldo Antunes, músico e poeta

    Dorival Caymmi deixou um legado único na música popular brasileira: as canções praieiras. De acordo com o folclorista Câmara Cascudo, Caymmi inventou um gênero, já que não havia antes --e não houve até agora-- nada que se assemelhe às suas praieiras; músicas como "A Lenda do Abaeté", "O Vento", "Canoeiro" e "O Mar".

    Reprodução
    Compositor Dorival Caymmi morreu aos 94 anos; veja mais fotos
    Livro explica as canções praieiras do músico

    O volume da série "Folha Explica" dedicado a "Dorival Caymmi", escrito pelo ensaísta e escritor Francisco Bosco, explica a originalidade dessas canções e o mistério encerrado em sua simplicidade, que retrata, sem questionar, a vida da comunidade pesqueira.

    O autor argumenta que, nesse caso, o violão tem a função de compor o cenário e a paisagem da canção, descrevendo-a com tanta intensidade como a letra. O resultado, de acordo com Bosco, é que as canções praieiras parecem ser "as coisas cantando: o vento assoviando, o mar rumorejando, o casco estalando (...)".

    Leia trecho abaixo:

    *

    AS CANÇÕES PRAIEIRAS: A CERTEZA DO SER

    A série das canções praieiras perfaz o conjunto mais impressionante, não apenas em relação ao todo da obra de Caymmi, como, talvez, no sentido de sua espantosa originalidade, em relação a toda a tradição da canção brasileira. Com efeito, o folclorista Câmara Cascudo lembrava que o compositor baiano inventou um gênero, pois não havia então na canção brasileira nada que se assemelhasse às praieiras - e, deve-se acrescentar, não viria a haver depois.44 Sondar os segredos dessa originalidade, o mistério encerrado na simplicidade aberta dessas canções, é a tarefa a que se propõe este capítulo. Comecemos, então, a juntar as pistas.

    O crítico Luís Antônio Giron observa que "Caymmi pode ser designado como artista figurativo no sentido mais profundo do termo".45 Qual é esse "sentido mais profundo"? Ora, o sentido mais habitual e óbvio seria aquele de uma obra que retrata o cotidiano, que pinta musicalmente a realidade como fazem os pintores figurativos. Assim, por exemplo, nos sambas sacudidos, em que somos apresentados ao traje da baiana, à gamela da preta do acarajé, ao requebrado da vizinha, à receita do vatapá, às igrejas de Salvador. Mas, nesses casos, é a letra da canção que descreve as cenas, embora, é claro, a música acompanhe os quadros descritos: o ritmo é buliçoso quando sublinha a nega que sabe mexer, o canto é dengoso quando recusa - por charme - o chamado da baiana para dançar, e assim por diante. O "sentido profundo" do figurativo, de que fala Giron, vamos encontrá-lo, entretanto, exclusivamente nas praieiras. Aqui já não é apenas a letra que descreve as cenas, mas também a música - essencialmente o violão - que é capaz de pintar a realidade.

    Não foi por acaso que Caymmi exigiu gravar a série das praieiras em seu primeiro long-play, de 1954, chamado justamente Canções Praieiras, em formato voz e violão (procedimento quase inusitado na época). É que o violão de Caymmi, nas praieiras, não é um violão de acompanhamento, mas antes um recurso como que cinematográfico: ele cria um setting, compõe uma paisagem, estabelece um cenário.

    Como seu violão consegue isso? Não exatamente imitando, mas se transformando nas coisas que quer mostrar: em "A Lenda do Abaeté", o violão é obssessivo e sinistro como o mistério que envolve a lagoa escura arrodeada de areia branca; em "O Vento" (canção praieira que entretanto não consta desse primeiro LP), o violão dissolve-se, como se fosse o próprio fenômeno da natureza; em "Canoeiro", o violão vira um remo que bate na água, um braço que puxa a corda, um corpo que colhe a rede; em "O Mar", o violão, primeiramente, espraia-se, tornando-se o movimento mesmo da maré, depois se torna dramático, para contar a história da morte de Pedro e do enlouquecimento de Rosinha. Esse violão mimético, proteico, transformando-se nas coisas consegue apresentá-las; daí o "sentido profundo" - e paradoxal - desse figurativo: trata-se de uma figuração abstrata, uma figuração que se dá ao nível da música, linguagem abstrata por excelência (as palavras "representam" as coisas; os sons, em princípio, não).

    Não parece coisa feita por gente

    O violão transforma-se nas coisas, apaga as fronteiras entre a música e o que ela "descreve". Essa indistinção entre dentro e fora coloca-nos diante da primeira característica espantosa das praieiras: são canções que nos apresentam um mundo onde homens e mulheres parecem estar de tal forma integrados à realidade, adequados a ela, que não se fazem perguntas, apenas vivem as respostas; não conhecem a interioridade, precisamente porque não se julgam apartados da exterioridade, nunca se dilaceram psicologicamente, antes acatam a dor e o sofrimento como uma determinação inquestionável. A saúde transbordante das praieiras reside aí, nessa perfeita adequação entre o homem e o real, envolvidos ambos pelo encantamento da divindade do mar, Iemanjá, que a tudo justifica e dá sentido.

    É por isso que Tom Jobim imaginava "Dorival sair do mar, de pé, sobre as águas, apanhado (vestido) pela rede, coberto de peixes prateados, de conchas, siris, caranguejos, sargaços, pedaços de madeira, de caixote, algas".46 Esse universo da indistinção, onde o homem se mistura aos peixes, ao sargaço, à matéria, é em certo sentido o universo das praieiras, que o maestro soberano aqui intui e projeta na pessoa de Caymmi. A mesma intuição teve o letrista Paulo César Pinheiro, que, em um poema em homenagem ao velho baiano, diz que "seu violão tem cordas de sargaço/ e foi cortado de um pedaço/ de uma velha embarcação/ [...]/ a voz é de arrebentação/ [...]/ Caymmi tem espumas no cabelo".47 O compositor e sua música transformando-se na natureza, o sujeito Caymmi anulando-se para dar voz aos próprios fenômenos naturais: as cordas do violão são o sargaço, a madeira é um pedaço de navio, a voz é a do rumor da arrebentação, os cabelos são a espuma das ondas que quebram na praia.

    Esse estado de anulação do sujeito, do autor, essa capacidade mimética das canções praieiras é o que definiu precisamente Arnaldo Antunes: "não parece coisa feita por gente: parece o canto das coisas em si". Com efeito, as praieiras parecem sempre ter existido, parecem ter a idade da natureza, não do homem. Não parecem ter sido feitas pelo homem. Parecem mesmo o canto das coisas em si, as coisas cantando: o vento assoviando, o mar rumorejando, o casco estalando, o coqueiro, a areia, a morena, o remo, a rede, o peixe, a vela. É como se cada elemento da natureza cantasse sua própria música. "Se é possível qualquer identidade de manifestação entre os fenômenos naturais e as criações do homem, um lugar onde isso se faz mais evidente é a música de Caymmi", complementa Arnaldo Antunes.

    Na recente exposição "A Imagem do Som de Dorival Caymmi", para a qual 80 artistas plásticos foram convidados a interpretar visualmente o cancioneiro do baiano, há uma foto, para a canção praieira "O Vento", em que uma cadeira vazia é colocada sobre pedras invadidas pelas ondas do mar. É sem dúvida essa impressão de não haver autoria, não haver sujeito que a fotografia pretendeu captar: não há ninguém lá, só o vento, as pedras, o mar.50

    Assim, embora imaginemos Caymmi misturado à natureza, com seus cabelos de espuma, é importante discernir bem as coisas: o mundo das praieiras está longe de ser um mundo à Alice no País das Maravilhas, onde os objetos vão se transformando em outros, os seres vão mudando de figura. Não; nas praieiras as formas são bem definidas, seus contornos são nítidos, tudo é claro e distinto, mesmo quando é noite, como em "Noite de Temporal". É, de fato, um mundo de formas, um mundo do privilégio absoluto do ver. Não há, como se disse, interioridade; não há reflexão, psicologia, profundidade, alma. É um mundo essencialmente físico. Mundo da ação e do olhar. Mundo solar, apolíneo. É irresistível dizer que, de certo modo, o Caymmi das praieiras é o nosso Homero. É claro que a experiência histórica da Grécia pré-clássica nada tem a ver com a experiência histórica da Bahia moderna, mas, justamente, a relação de Caymmi com a história é complexa e contraditória. Com cautela, é possível e pertinente aproximar o mundo das praieiras ao mundo das epopéias homéricas.

    *

    Francisco Bosco é ensaísta, letrista e escritor. É autor de "Da Amizade" (Rio de Janeiro: 7Letras, 2003), entre outros, doutorando em teoria literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e colunista das revistas "Argumento" e "Cult".

    *

    "Folha Explica Dorival Caymmi"
    Autor: Francisco Bosco
    Editora: Publifolha
    Páginas: 120
    Quanto: R$ 18,90
    Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2025