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    Jorge Bodanzky fala do encontro com Lévi-Strauss

    EUCLIDES SANTOS MENDES
    da Folha de S.Paulo

    08/11/2009 02h30

    O cineasta Jorge Bodanzky fala do encontro com Lévi-Strauss no final dos anos 80, durante as filmagens do documentário "A Propósito de 'Tristes Trópicos'"

    Um documentário refaz os caminhos de Claude Lévi-Strauss pelos sertões do Brasil. "A Propósito de 'Tristes Trópicos'", uma produção de 1990 para a TV francesa, dirigida por Jorge Bodanzky, Patrick Menget e Jean-Pierre Beaurenaut, segue os passos das três expedições realizadas pelo antropólogo no interior do país, entre 1935 e 1938.

    O documentário aborda a vida de comunidades indígenas brasileiras a partir do livro "Tristes Trópicos", obra mais célebre de Lévi-Strauss. Para isso, utiliza imagens registradas nos anos 30 pela mulher do antropólogo e nos anos 80 pela equipe do documentário. Há também trechos de duas entrevistas com Lévi-Strauss.

    "Ele amou o Brasil", diz Bodanzky em entrevista à Folha. "Nunca deixou de mencionar o carinho e a simpatia pelo país, e a importância que teve o Brasil na sua vida", comenta o cineasta na entrevista abaixo.

    FOLHA - Qual é o legado deixado por Lévi-Strauss ao Brasil?
    JORGE BODANZKY - O seu grande legado para o país é o olhar sobre a cultura brasileira, da qual faz parte a cultura indígena. Os antropólogos que estudaram depois as culturas nativas olharam-nas a partir dele.

    Ele amou o Brasil, tanto que se embrenhou pelo interior do país [em 1935] em condições precaríssimas, e fez isso até com sacrifício. Realizou fotografias magníficas, registros preciosíssimos, um álbum espetacular sobre São Paulo, as fotografias dos índios [imagens publicadas, respectivamente, nos livros "Saudades de São Paulo" e "Saudades do Brasil", editados pela Companhia das Letras]. Ele nem era fotógrafo; usou a fotografia como um instrumento de trabalho.

    FOLHA - Como surgiu a ideia de fazer o documentário "A Propósito de 'Tristes Trópicos'"?
    BODANZKY - O documentário ficou pronto em 1990, mas, na realidade, foram quase seis anos de trabalho nele. Fiz três viagens para o Mato Grosso.

    A ideia do filme foi minha, porque eu soube da existência de um material filmado pela mulher de Lévi-Strauss, Dina, quando eles fizeram a primeira expedição para o Mato Grosso [em 1935].

    São filmes mudos, em 16 mm, que estavam arquivados na biblioteca municipal de São Paulo [estão atualmente no Centro Cultural São Paulo, com cópias na Cinemateca Brasileira].

    Quando pedi a autorização para usar o título do livro "Tristes Trópicos" [publicado em 1955] no filme, ele imediatamente concordou. Mas não queria que eu usasse os filmes feitos nos anos 30; dizia que eram amadores. Ele não estava preocupado com as filmagens [da expedição ao Mato Grosso nos anos 30], tanto que foi a mulher dele quem filmou.

    Foi Mário de Andrade [então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo] quem financiou a expedição e os filmes. Eu achei esse material interessantíssimo. Daí surgiu a ideia de percorrer os mesmos caminhos que Lévi-Strauss tinha percorrido, mostrar esses filmes aos índios (e seus descendentes) visitados por ele nos anos 30, fazer um trabalho em cima dessas imagens (das imagens antigas e das imagens contemporâneas), mostrar isso para o Lévi-Strauss e deixar que as comentasse.

    Assim, o filme tem três elementos: o registro da época [da expedição do antropólogo], o da viagem recente e o de Lévi-Strauss comentando esses dois registros (o antigo e o novo).

    O documentário tem duas entrevistas com Lévi-Strauss. A primeira foi feita quando ele visitou o Brasil nos anos 80, acompanhando o presidente francês François Mitterrand.

    Tentaram levá-lo [na época] à área que ele visitou no Mato Grosso. Só que ele não chegou a ir até lá. O pequeno avião que o levou teve problemas e parou numa fazenda, onde a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha fez uma longa entrevista com ele, que foi filmada por um aluno da Universidade Estadual de Campinas.

    Incluímos essa entrevista no documentário. Começamos o filme, inclusive, com essa tentativa frustrada de Lévi-Strauss de voltar ao Mato Grosso. Ele se lembra [das viagens que fez nos anos 30] e comenta tudo. Isso é o ponto de partida do filme.

    Uma segunda longa entrevista foi feita em Paris, no Laboratório de Antropologia Social, depois de ele ter visto o material que filmamos.

    A entrevista foi conduzida por mim, por Patrick Menget, antropólogo que viveu muito tempo com índios no Parque do Xingu [no Mato Grosso] e é um estudioso de longa data da cultura indígena brasileira.

    FOLHA - Como o sr. descreveria a personalidade de Lévi-Strauss?
    BODANZKY - O contato que a equipe do documentário teve com ele foi, no início, muito formal. Mas, uma vez quebrada essa formalidade, quando conversamos com ele, depois de termos mostrado as imagens, foi surpreendentemente simpático e normal. Uma pessoa muito simples, muito afável, muito aberta. Ele não só falava, escutava também.

    Nós o entrevistamos no final dos anos 80, em Paris. Foi simpático e aberto, ficou horas falando conosco. Gravamos um material riquíssimo, onde ele recontou tudo o que passou no Brasil (esse material está na França, onde eu havia me associado a um produtor para fazer o filme).

    FOLHA - A partir desse contato pessoal que o sr. teve com o antropólogo, como percebeu a relação que ele mantinha, sobretudo na memória, com o Brasil?
    BODANZKY - A memória dele era surpreendente. Falava das coisas como se tivessem acontecido ontem, não esquecia nenhum detalhe do que tinha vivido no Brasil. Falava isso com uma lucidez espantosa.

    Nunca deixou de mencionar o carinho e a simpatia pelo país e a importância que teve o Brasil na sua vida.

    Das imagens que fizemos no Mato Grosso, o que mais o impressionou foi a paisagem. Achou a paisagem ainda quase intacta, e dizia: "Mas aquela paisagem ainda está lá!".

    Como o documentário foi focado em torno da viagem [ao Mato Grosso nos anos 30], então a conversa toda girou em torno da questão antropológica. Ele reafirmou tudo aquilo que já havia escrito em "Tristes Trópicos", onde se deu a liberdade de fazer uma espécie de romance da história da viagem ao Brasil.

    O filme é uma reflexão, quase 50 anos depois, das conclusões a que chegou no livro.

    FOLHA - Quais as diferenças entre o mundo registrado por Lévi-Strauss e aquele que o sr. encontrou entre os índios no Mato Grosso?
    BODANZKY - Era uma parte do Brasil quase intocada nos anos 30. No final dos anos 80, quando fizemos o filme, nos deparamos com esse pandemônio que hoje existe no Mato Grosso, com a chegada da cultura da soja, a queimada da floresta, do cerrado, as grandes propriedades expulsando as populações nativas.

    A mudança foi muito grande.

    Mas, por outro lado, também nos surpreendeu como certos aspectos da cultura das populações nativas ainda estavam preservados.

    Para nossa surpresa, quando mostramos as imagens para Lévi-Strauss, ele ficou impressionado: comparando-as com os filmes dos anos 30, não havia grandes diferenças.

    Mostramos fotos de Lévi-Strauss a alguns índios, e dois ou três, mais velhos, se lembravam ainda dele e reconheceram [também] parentes ancestrais nas fotos.

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