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    Português Gonçalo M. Tavares fala sobre maldade, Saramago e o Brasil

    FABIO VICTOR
    DE SÃO PAULO

    17/07/2010 07h42

    Gonçalo M. Tavares rejeita a ideia de que os seus "livros pretos", como "A Máquina de Joseph Walser", que sai agora no Brasil, sejam um atestado de descrença na humanidade.

    São, antes, sustenta o escritor português, um recado de que "nenhum de nós está fora do barco da maldade".

    "O ser humano é potencialmente uma máquina da maldade. Mas é também uma máquina da bondade. Temos dois motores em funcionamento, o de fazer atos maldosos e um para atos bondosos. E eu gostaria que esses livros servissem para que os leitores percebessem melhor o funcionamento dos seus motores", disse em entrevista por telefone à Folha, de Lisboa, onde vive.

    A extensa (24 livros) e precoce obra de Tavares, 39 anos, funda-se em duas séries, "O Reino" e "O Bairro". "A Máquina de Joseph Walser" compõe a primeira, junto com o premiado "Jerusalém", "Um Homem: Klaus Klump" e "Aprender a Rezar na Era da Técnica", livros que abordam a maldade.

    "O Bairro" reúne homenagens a escritores caros ao autor, como "O Senhor Valéry" e o "O Senhor Brecht" --e há espaço para graça e ludismo.

    Tal leveza também se nota quando ele fala da crescente relação com o Brasil, iniciada com a vinda à Flip em 2005 e ampliada com o prêmio Portugal Telecom em 2007.

    Tavares conta que na última visita escreveu aqui "páginas e páginas", o que não costuma conseguir fora de Lisboa. "O Brasil é um sítio em que me sinto perfeitamente em casa", justifica.

    Silvia Zamboni/Folhapress
    O escritor português Gonçalo M. Tavares, que diz se sentir em casa no Brasil
    O escritor português Gonçalo M. Tavares, que diz se sentir em casa no Brasil

    Folha - Por que, embora cronologicamente o segundo da tetralogia "O Reino" a ser publicado, "A Máquina de Joseph Walser" é o último a sair no Brasil?
    Este livro não tem uma sequência exata. Em diferentes países tem saído por ordens diferentes. Até me agrada isso. Em Portugal saíram "Klaus Klump", "A Máquina", "Jerusalém" e "Aprender a Rezar", nesta ordem, e digamos que talvez seja a ordem mais natural, mas ao baralharmos a ordem obtemos um "Reino" diferente, e portanto deixo um bocado de espaço para editarem na sequência que lhes parecer melhor.

    Este reino é o reino do mal?
    É uma ideia que remete a um espaço muito largo, e de certa maneira opõe-se ao "Bairro", um espaço pequenino, acolhedor, lúdico. E este espaço é o do inimigo, de grandes dimensões, que não tem propriamente um nome. Eu não diria que é o reino do mal porque acho que nestes livros também há todo o resto, bondade, as pequenas paixões, desejo, excitação, coisas em que podemos pôr uma carga positiva. A ideia estudar o homem em circunstâncias por vezes extremas ou limite. É um livro quase paralelo a "Um Homem: Klaus Klump".

    * Como foi concebida a tetralogia "O Reino"?*
    Não foi uma coisa pensada previamente. Comecei a escrever o primeiro ("Um Homem: Klaus Klump") sem saber que iam aparecer outros, e a certa altura, de um romance para outro, foram faltando personagens. Personagens que são secundárias num livro passam a ser principais nos outros. Na "Máquina...", há um personagem muitíssimo secundária, uma pessoa que ajuda Walser a tirar o cinto de um morto, Hinnerk, que é um dos protagonistas essenciais em "Jerusalém".
    Na "Máquina", o momento em que ele perde o dedo e está no hospital, ele cruza-se com um médico que é o protagonista de "Aprender a Rezar...".
    "O Reino" foi se criando como um romance único. Provavelmente mais tarde até eu publicarei em conjunto num único volume os quatro romances, porque há uma ligação muito forte entre eles.

    ''O Reino" é um atestado de descrença na humanidade?
    Não colocaria como descrença. Acho que tentarmos observar os comportamentos humanos não é uma descrença. Se nós virmos um organismo ao microscópio e virmos aquelas células, a sujidade do que compõe o corpo... O corpo mais belo é composto pela sujidade. Se víssemos ao microscópio o corpo da pessoa por quem estamos apaixonado teríamos visões que muito provavelmente nos criariam repulsa. Quando nós olhamos com algum pormenor, sempre há alguma coisa que não funciona bem, que está turva.
    Não diria que o olhar sobre estes personagens é para tentar ver o mal, mas é um olhar que tenta percebê-los completamente humanos. E no limite os comportamento humanos têm uma base animalesca, que é muito quase linear --defender o espaço, o território, sobreviver.
    Evidente que temos uma série de camadas culturais por cima disso, mas basicamente somos animais que queremos sobreviver e de certa maneira há um conjunto de estratégia que têm a ver com isso. Eu posso?... Só um minuto [sai para advertir o filho que faz algazarra]. Está uma confusão aqui.
    O que me parece mais importante é que em 2010 e neste século não acho que seja útil um tipo de livros muito líricos, muito positivos. Não acho que seja útil um elogio do homem como um ser fascinante, extraordinário, extremamente bondoso. Acho que precisamente o que marca o século 20 --a Segunda Guerra, o Holocausto-- são coisas muito fortes, que têm uma dupla marca, a da racionalidade e a da inteligência.
    Os campos de extermínio foram claramente consequência de atos da inteligência e da racionalidade; havia arquitetos, químicos envolvidos, todas as grandes ciências trabalharam em comum para construir os campos de extermínio. Isso é tão marcante em relação ao século 20 e é tão marcante que a inteligência humana seja aproveitada para essa brutalidade extrema que me parece que depois disso não podemos escrever livros ingênuos e inocentes.
    "O Reino" tem mais a ver com isso, são livros que recusam a inocência, a ingenuidade, recusam a ideia de que o homem é naturalmente um ser bonzinho.

    Você parece ter antecipado um comentário que eu pediria para fazer em relação a algumas passagens do livro. "A maldade é uma categoria do raciocínio"; " A felicidade humana é um mecanismo"; "Os grandes exterminadores da História não odiaram o suficiente. Houve sempre alguém que os acompanhou. Nunca estiveram sozinhos"...
    [interrompe] Por exemplo, essa última frase: uma coisa que nos espanta ainda hoje, que nos deixa imóveis sem perceber, quando vemos uma biografia sobre Stálin ou Hitler ou outras pessoas terríveis e percebemos que elas se apaixonaram, que havia quem gostava delas e se apaixonava por elas, que tinham gestos carinhosos. Isso é algo muito perturbante, porque nós temos um bocado a cabeça muito virada para um espécie de "sim-não", então se alguém é classificado como maldoso, nós quase que assumimos que a pessoa é 24 horas por dia maldosa. Mas a questão basicamente perturbante é que uma pessoa pode ter durante 50 anos os hábitos mais elogiáveis, mais bonitos, interessantes e generosos, e pode por dez minutos, de repente praticar um ato absolutamente terrível, de maldade pura. Portanto, muitas vezes essa questão do que é um homem bom ou um homem mau... Se formos às quantidades, mesmo as pessoas mais execráveis da história, na maior parte do seu tempo tiveram atos normais, até generosos, bondosos. Essa questão de classificar os homens como maldosos ou bondosos é uma questão muito...

    Simplista.
    Simplista, e de certa maneira o fato de percebermos que uma pessoa que fez atos terríveis e tem atos também bondosos e também toma café e se levanta, isso é muito importante, porque nos permite ver o contrário: que nós, que tomamos café e que nos levantamos também temos essa parte comum a essas personagens tenebrosas e, no limite, em circunstâncias extremas, [podemos] até praticar atos que se aproximem desses atos terríveis.
    O que talvez tenha este "Reino" é dizer um pouco que nenhum de nós está fora do barco da maldade, da potencial maldade. O ser humano é potencialmente uma máquina da maldade. Mas é também uma máquina da bondade. Temos quase dois motores em funcionamento, o de fazer atos maldosos e um para fazer atos bondosos.
    E o que eu gostaria é que esses livros servissem para que os leitores percebessem melhor o funcionamento dos seus motores, soubessem como é que se pode reduzir a velocidade do motor da maldade que nós temos, como é que se pode travá-lo, como é que se pode desviar a aplicação da sua força.
    Acho que isso é muito mais útil do que partir da ideia, errada, de que somos bons, feitos de outra massa que não a igual a daquelas pessoas terríveis. Acho que isso é que é perigoso: se nós assumirmos que nunca iremos praticar uma maldade... São as pessoas que assumem isso que mais rapidamente entram em atos absolutamente terríveis. Porque também são ingênuas, a ingenuidade tem a ver com isso, com a pessoa pensar que é boa até o fim dos seus dias. E nossa vida está sempre em questão.

    "O Bairro" seria um contraponto, se não a um niilismo, a essa interpretação mais dura e crua da realidade?
    Sim, realmente não diria niilismo, porque há sempre nos livros, em algumas personagens femininas, também no próprio Joseph Walser...

    Que de certo modo é um homem bom...
    É, aliás há dois tipos de interpretações sobre esta personagem: há os que o classificam como alguém frio, indiferente, que se afasta das coisas, e por outro lado esse afastamento em relação às coisas também pode ser uma definição de santidade. A definição de santo mais ligado ao oriente, a ideia de a pessoa ser indiferente ao que acontece, estar distante dos acontecimentos, não se envolver, é uma ideia muito religiosa, e de certa maneira é isso que o Joseph Walser faz. Basicamente ele não comete nenhum crime, nunca.

    Tem uma frase boa no livro, "Quando há confusão o sensato afasta-se e o imbecil corajoso aproxima-se, eis a História".
    Exatamente. E é interessante que precisamente este "A Máquina..." faz um contraste muito significativo com "Um Homem: Klaus Klump". O Klaus Klump é, pelo contrário [de Walser], o homem que, como diz essa frase, quando há um confronto se aproxima.
    É alguém forte, agressivo, assertivo, está sempre no centro da história. E o Joseph Walser é de certa maneira o oposto, é alguém que se afasta, que se põe de lado. E realmente podemos chamar esse Joseph Walser de um covarde ou um sensato, tranquilo. Toca aqui também um ponto que me parece relevante, que é essa questão da covardia: até que ponto o não envolvimento se traduz numa covardia, numa cautela ou numa sensatez. Porque essas fronteiras não são muito claras. Muitas vezes o fato de não nos envolvermos numa situação faz de nós covardes, mas noutras vezes faz de nós pessoas sensatas. E não é muito fácil distinguir isso.

    Por que todos os personagens, deste livro e da série dos livros pretos, têm nomes alemães?
    São nomes do centro da Europa, alguns alemães, mas alguns não exatamente alemães, alguns nem sequer são propriamente nomes de nenhuma nacionalidade --Klump, por exemplo. Mas geralmente tem esse tom da Europa, germânico. É muito difícil justificar... tanto o nome das personagens como o dos livros. Este ["A Máquina..."], por acaso, é um nome mais ou menos direto, mas "Jerusalém" e "Aprender a Rezar..." são nomes que não têm relação direta, exata, com o livro.
    E os nomes das personagens também às vezes não tem uma racionalidade muito concreta. O que aconteceu foi que, à medida que fui escrevendo, naturalmente senti a necessidade desse tipo de nomes.
    E também o que eu a posteriori percebi é que o fato de ter esses nomes afastados do meu cotidiano --não ter um Antônio, um José, uma Maria--, o fato de ter nomes que estão distantes de mim no espaço e no tempo faz com que eu olhe para essas personagens de uma forma distante e não queira defendê-las afetivamente. Tento olhar para elas como um cientista olharia para partículas químicas, ver como elas se comportariam sem participar. Não quero como narrador participar, tomar partido. É algo que acho importante, não julgar as personagens, não dizer "essa personagem é terrível", deixar que o julgamento seja feito pelo leitor.

    O que Joseph Walser tem de Robert Walser?
    Não, aqui foi apenas uma coincidência. No "Reino" não ha esse jogo que existe no "Bairro", de homenagear escritores. Aqui foi uma pura casualidade. São personagens totalmente ficcionais.

    O que representam o quarto e a coleção de Walser ("Quanto mais a desordem e a imprevisibilidade da guerra aumentavam mais Walser se refugiava em seu escritório"...)? Qual a relação entre isso e a necessidade sobre a qual você já referiu de um "esconderijo" para trabalhar?
    Há dois mundos, um real, diante do qual o Joseph Walser quase se dobra e respeita e não intervém, tenta não alterar, o mundo real que ele sente fora do quarto, o mundo da rua, da guerra, que é desordenado, caótico. Grande parte do livro é passado em período de guerra, na própria cidade. E uma guerra na própria cidade é um dos expoentes da imprevisibilidade, de uma pessoa não saber o que vai acontecer no dia seguinte, não saber se de repente entra em casa, se há distribuição de comida. Há um grau de aleatório, de imprevisibilidade, caos, que tem a ver com essa mundo da guerra na cidade. E a coleção de Joseph Walser de certa maneira é um contraponto a isso, é um sítio onde ele controla totalmente, do início ao fim, tudo. Digamos que aquele quarto é o oposto do exterior, ali ele tem as peças com determinada dimensão, ele classifica-as, constrói um catálogo, mede, assinala os dias em que as apanhou. Controla o quarto como um pequeno Deus.
    Mas talvez um dos pontos que talvez seja aqui mais estranhos e tenham mais mais força é que precisamente ele constrói esse mundo totalmente controlado a partir de peças que resultam muitas delas daquele mundo caótico da guerra. Grande parte das peças de sua coleção são retiradas de vestígios ou restos da guerra, como balas, pedaços de armas, a fivela do cinto do homem que está morto. É como se tentasse, do caos exterior, construir uma ordem, controlar.
    Ao mesmo tempo é uma coisa quase também com uma indiferença brutal com relação ao que acontece no exterior. Ele sente que sua intervenção na guerra é aquela, alguém que coleciona despojos da guerra.

    O que significou, para você, a morte de Saramago?
    [Suspira, faz longa pausa] Bem... a morte de Saramago foi... a morte é sempre uma coisa surpreendente, independentemente do estado de saúde de uma pessoa, e portanto é sempre um choque. Nós sempre tivemos uma relação afetuosa. Mas o que é importante, para além das questões mais pessoais, é relevar realmente o buraco que foi perdermos um grande escritor. Em Portugal, Saramago, juntamente com António Lobo Antunes e Agustina Bessa-Luís e vários outros escritores, mas essas três referências são marcantes para as gerações mais novas. Em termos literários, a apreciação que semana a semana se vai tornando clara é de que não vão aparecer mais livros de um autor. Sentir isso é sentir uma perda muito forte. É difícil agora falar, estamos muito perto, mas a sensação é que algo mudou.

    São notórios os elogios dele à sua obra ("Um grande livro, que pertence à grande literatura ocidental. Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem com apenas 35 anos. Dá vontade de lhe bater" e "Vaticinei-lhe o prêmio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder."). Vocês se conheciam, tinham uma relação?
    Ouvir isso de um escritor como Saramago é sempre uma grande honra, mas o que é mais relevante aí é salientar a generosidade e a atenção do Saramago em relação ao meu trabalho e e um escritor de uma outra geração, bastante mais novo. Isso revela uma atenção da parte de Saramago que acho extraordinária. Tenho tido a sorte de esses grandes escritores darem atenção ao meu trabalho. Isso é também um exemplo que passa, que exige de nós que daqui a alguns anos fiquemos atentos às novas gerações que vão aparecendo. É um ato exemplar.

    Vocês se conheciam?
    Eu recebi o Prêmio Saramago em 2005, esse foi o momento em que o conheci pessoalmente, porque ele tinha essa coisa muito interessante de se envolver por completo no prêmio que tinha o nome dele, de estar presente na atribuição do prêmio, fazer um discurso, almoçar com a pessoa que ganhava. Esse foi o primeiro momento de contato. Depois nos encontramos algumas vezes em momentos marcantes. Eu tive sempre um grande respeito por ele, sentia também que o Saramago me respeitava bastante. Foi sempre uma relação afetuosa.
    Depois que passar essa fase, o que é relevante também é as pessoas que ficam, através da leitura, deixarem um pouco o percurso de Saramago presente. Porque infelizmente às vezes alguns anos podem bastar para que a atenção sobre um escritor mude. E nesse aspecto o fato de Saramago ter estado muito atento ao trabalho das pessoas mais novas faz também com que os escritores mais novos sintam esta vontade de divulgar e mostrar a obra de Saramago à geração que vem a seguir.
    Ele tinha uma capa, parecia muito austero, mas tinha um sentido de humor muito interessante, e que muitas vezes não se conhecia tão bem. Acho que "A Viagem do Elefante", um dos seus livros mais recentes, passa um bocado desse humor que ele tinha. E realmente era sempre alguém que falava com paixão sobre as coisas e estava muito atento ao mundo, isso era uma característica

    Como pensa que vai ser avaliada a obra dele sem o peso da carga ideológica que muitas vezes contaminou a análise crítica da obra dele?
    Não sei, nunca se pode saber exatamente o que vai acontecer. Às vezes é interessante não saber nada sobre o autor de um livro, para não haver contaminação do percurso político, pessoal. O que me parece é que os livros têm que ser lidos fora do... Quando são realmente literatura de qualidade são coisas que saltam do tempo em que foram escritos e editados.
    Os grandes livros perdem a data, podemos quase enganar as pessoas e dizer que acabou de sair um livro que tem 300 ou 400 anos. Se pegarmos um clássico, por exemplo, "Cartas a Lucílio", de Sêneca, e não dissermos que é de um autor do ano 30 depois de Cristo, que escreveu aquilo há quase 2.000 anos, o livro parece que foi escrito ontem.
    Realmente, para quem se interessa por livros, por literatura, os livros soltam-se do seu tempo e são avaliados pelo seu conteúdo. Estou também curioso para saber o que vai acontecer, acho que gradualmente, quanto mais tempo passar, realmente menos terão importância as circunstâncias exteriores e políticas aos livros de Saramago, e de qualquer escritor. E realmente há na obra de Saramago livros que são muito importantes literariamente.

    Quais são os seus preferidos?
    É difícil, mas eu diria que "Memorial do Convento" e "O Ano da Morte de Ricardo Reis" são talvez dois dos que literariamente são mais densos.

    Em 2005, você disse numa entrevista, antes de vir para a Flip: "Espero que os brasileiros comecem a me conhecer". Isso já aconteceu?
    Sinto-me muito bem tratado no Brasil. Isso foi a primeira vez que fui ao Brasil. Depois aconteceram várias coisas, o Portugal Telecom. Estive no ano passado também no Brasil. E praticamente todos os meus livros, e são bastante, estão editados aí no Brasil. Os "senhores" [coleção "O Bairro"] estão a sair na Casa da Palavra, os romances estão a sair na Companhia das Letras, os ensaios e a poesia estão a sair noutras editoras.
    Publiquei vinte e tal livros e todos estão aí, isso é um sinal muito interessante. E o que está a acontecer é que muitos criadores, para teatro, artistas, começam a fazer coisas com os meus livros. Há várias peças de teatro que foram feitas a partir dos livros dos senhores, do "Senhor Valéry", do "Senhor Brecht".
    Há artistas plásticos que fizeram coisas a partir de livros também. Há uma séria de escritores que têm acompanhado o meu trabalho com atenção, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Moacyr Scliar. E portanto há um diálogo, quer entre esses escritores, criadores de teatro. Acho que realmente em poucos anos aconteceu muita coisa. Não há apenas a edição de livros aí, há uma espécie de respostas, de diálogo, está claramente uma conversa estabelecida.
    Só há uma quantidade de convites para ir aí ao Brasil, infelizmente não consigo ir como gostaria, mas nos últimos anos tenho ido uma vez por ano, e gostaria de conseguir manter, e às vezes não é fácil. Sinto que essa questão da língua portuguesa em relação ao Brasil... é um espaço mesmo muito comum. Está a acontecer alguma coisa que eu acho que com o tempo ganhará ainda mais força.

    Por que você reparte a edição de suas obras no Brasil entre vária editoras?
    Simplificando, há "O Bairro" e "O Reino", mas há muitas outras variantes. Gosto de organizar os livros por uma espécie de ligações entre eles, e há um conjunto de livros que são ensaios literários, que eu chamo "Enciclopédia", que vai sair em outra editora, a Editora da Casa. Eu tento ver que tipo de livro tem a ver com a linha editorial de cada editora. Em Portugal acontece um pouco o mesmo, também publico em diferentes editoras.

    Você há pouco disse que tem "vinte e tal" livros escritos. Já perdeu as contas?
    [risos] Não, são... julgo que 24. Mas muitos dos livros são minilivros, a coleção dos "senhores" é de livros muito pequeninos. Mas todos os livros têm uma ligação entre eles. "O Bairro" é quase como se fosse um único livro. Provavelmente quando tiver tudo reunido é um único livro _ficará gigante, mas é um único livro. Tal como os quatro romances de "O Reino" são a lógica de um único livro.

    O projeto da "Senhora Clarice" está de pé?
    Talvez eu tenha falado sobre isso em alguma... O que me foi perguntado uma vez se não me engano foi que senhora eu colocaria no bairro, e o primeiro nome que me ocorreu foi a senhora Lispector. A ideia é que seja um bairro, um sítio onde as pessoas entram e saem, e portanto não está fechado. Mas aquele projeto de design que aparece na contracapa dos livros já tem as personagens. Tem uma ou outra coisa para sair, mas é uma coisa que vai se construindo.
    A questão da escolha dos senhores tem a ver por um lado com o gostar da obra, mas muitas vezes tem a ver com se criar um personagem a partir do tom da escrita do autor. Então não é uma coisa direta e óbvia. Há autores que eu gosto imenso e nunca os colocaria como senhores.
    Há pouco falei do Sêneca, que é um autor que me marcou muito, mas que eu não conseguiria colocar nos senhores. Tem que ter um caráter lúdico. O mais importante sobre essa questão da senhora Lispector é dizer que a leitura da Clarice Lispector foi essencial, e é uma das cinco autoras mais importantes de todos os tempos, uma extraordinária escritora.

    Em que livros está trabalhando hoje?
    Estou a terminar de rever um livro que, tal como outros, eu não sei bem o que é, uma mistura de ficção e ensaio, que se chama "Matteo Perdeu o Emprego". E há um outro livro que qualquer dia sairá aí também no Brasil que se chama "Uma Viagem à Índia", sobre o qual eu tenho dificuldade em falar.

    Mas o que é o livro?
    Não queria falar muito... É uma narrativa utilizando um gênero literário antigo. Mas por agora é o que posso dizer. Tenho continuado e gosto muito de alternar, tenho necessidade de escrever coisas diferentes umas das outras. É quase uma metodologia de trabalho.

    Você ainda dá aulas --do que e aonde?
    Dou aulas de duas cadeiras na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, uma que se chama epistemologia, que tem a ver um bocado com as filosofias da ciência, e outra que é cultura e pensamento contemporâneo. Dou aulas em cursos artísticos ligados à dança e num curso chamado reabilitação psicomotora, um curso de futuros professores de pessoas com deficiência mental, física. É um pouco mostrar como provavelmente se nós percebermos melhor o que já se fez e já se pensou, os conceitos de doença e de saúde, tudo isso permite que um futuro terapeuta tenha uma visão humanista e não exclusivamente técnica. Digamos que o meu contributo tem a ver com as humanidades, de tentar transmitir uma série de conteúdos ligados à cultura do corpo, da racionalidade. Tentar contribuir para que a intervenção desses professores seja não apenas técnica, mas humana.

    Sei que você tem um método muito rigoroso para escrever. Como é que você organiza o seu cotidiano?
    Essa disciplina eu tento manter. Não é possível sermos disciplinados se não tivermos entusiasmo pelo que estamos a fazer. A disciplina nasce da própria excitação, do entusiasmo, da vontade de fazer. Enquanto se mantiver esta vontade e esta necessidade de escrever e ler e se conseguir conciliar com essa disciplina, tudo é conciliável. E o que por vezes é até mais difícil conciliar a vontade de estar em lugares em que sai um livro.

    Quando atenderá aos convites para voltar ao Brasil?
    Tinha dois ou três convites para ir ao Brasil agora em agosto, mas não vou conseguir _estava quase, mas não consigo. Penso que até o final do ano consiga ir. Como disse, em novembro estive quase 15 dias aí, em Porto de Galinhas [Fliporto], depois em Ouro Preto [Fórum das Letras], depois em São Paulo, no Portugal Telecom [foi novamente finalista no ano passado]. Para além de ter sido um tempo muito forte e de ter sido muito bem recebido, eu escrevi imenso aí no Brasil, que é uma coisa que não acontece muito. Essa disciplina e essa hábito fazem com que eu quase sempre escreva cá em Lisboa, no meu local de trabalho, quando viajo não consigo. E quando estive no Brasil e escrevi imenso, imenso, imenso. Páginas e páginas e páginas.

    De um desses dois romances de que você falou?
    Não, isso é uma coisa que ainda está mais atrasada, mas escrevi dezenas de páginas no Brasil. Até nos dias da atribuição do Portugal Telecom, isso me deixa muito contente, porque nos próprios dias da cerimônia escrevi imenso. Agrada-me essa coisa de conseguir afastar-me um pouco do que acontece no exterior e conseguir concentrar nesses dias mais agitados.

    Quem sabe isso não lhe estimule a vir morar por um período no Brasil...
    É, eu senti... Eu hoje estou a sair em muitos países. Tive agora no México, em Moscou, são viagens muito importantes e realmente nunca escrevi como escrevi no Brasil. Fiquei muito contente porque tinha quase assumido que quando estou em viagem não consigo escrever, mas o Brasil é um sítio em que me sinto perfeitamente em casa. Aliás, a grande questão do Brasil é que são muitas casas, cada Estado é quase uma casa possível. Para nós, portugueses, que sempre vivemos num país pequenino, senti que há uma série de Estados onde poderíamos viver --há quatro ou cinco Estados, acho eu, em que eu me sentiria bem. Isso é uma grande tranquilidade também para quem fala em português.

    E quais são esses quatro ou cinco Estados?
    São esses Estados que fui conhecendo. O que senti também é que o fato de estar rodeado da língua portuguesa, no café, isso faz com que a pessoa não mude de barco. E o que senti que escrever no Brasil ou escrever em Lisboa era continuar no mesmo barco, enquanto quando estou em frança ou em Itália a sensação é que estou num barco completamente diferente.
    O dia a dia ser na própria língua faz com que a escrita apareça de uma forma muito mais natural. Quando estamos a funcionar no dia a dia numa outra língua, depois para voltar à nossa língua e escrever na nossa língua é um esforço físico brutal.

    A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER
    AUTOR: Gonçalo M. Tavares
    EDITORA: Companhia das Letras
    QUANTO: R$ 39 (168 págs.)

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