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    Leia íntegra da entrevista com Olafur Eliasson

    FABIO CYPRIANO
    DE SÃO PAULO

    20/12/2010 07h30

    Por conta de sua visita-relâmpago por São Paulo, onde esteve por apenas quatro dias, o artista dinamarquês Olafur Eliasson preferiu falar com a Folha, quando estivesse de volta à cidade onde vive, Copenhague. Ele também mantém seu estúdio de trabalho com cerca de 30 assistentes em Berlim, mas segue dividindo seu tempo com sua terra natal, por conta dos filhos.

    Veja fotos de obras de Olafur Eliasson

    Na hora marcada para a entrevista, o telefone tocou, mas ninguém atendia. Só 15 minutos depois do combinado, Eliasson atendeu à chamada: "Desculpe, eu estava vendo a neve lá fora." Leia a seguir como foi o resto da conversa:

    Folha ­ Você esteve quatro dias em São Paulo para conhecer os locais da mostra, mas já tinha passado por aqui em 1998, quando participou da 24ª Bienal. Quais suas impressões da cidade?
    Olafur Eliasson: ­ Já estive várias vezes no Brasil, desde 1998. Então eu sinto que tenho uma relação com a cidade, mesmo que ela não seja muito profunda.

    Peter Macdiarmid/Reuters
    Visitante observa obra de Olafur Eliasson, que ilumina o átrio da Galeria Tate Modern, em Londres (Inglaterra)
    Visitante observa obra de Olafur Eliasson, que ilumina o átrio da Galeria Tate Modern, em Londres (Inglaterra)

    Essas outras vezes foram motivadas por Inhotim?
    Sim, em parte por conta de Inhotim. Mas eu gostei muito de voltar e consegui perceber as mudanças que o Brasil passou nos últimos dez anos. Obviamente, fiquei impressionado em ver como o padrão do público em geral mudou nesse tempo.

    Em uma visita de quatro dias, é difícil dizer algo muito preciso sobre isso. Meu trabalho tem lidado muito, nos últimos anos, com o espaço público e o que percebo que é interessante no Brasil é que existe uma forte tradição no sentido de comunidade e uma definição de subjetividade que depende em muito da coletividade. Isso foi, de certa forma, perceptível no campus universitário que visitei.

    A Faculdade de Arquitetura da USP, você quer dizer?
    Não apenas, eu passeei por todo o campus. Talvez eu esteja interpretando de forma exagerada essa relação da subjetividade com a coletividade, mas o motivo que abordo isso é por conta da exposição no Sesc, tanto no Pompéia como no Belenzinho. Eu me interesso por esse tipo de instituição cultural com função pública.

    Além do mais, também queria andar pelas ruas de São Paulo, ou por bares e restaurantes que não sejam turísticos, como o Ponto Chic, no centro da cidade, que gostei muito. Em lugares assim eu sinto melhor a cidade e gostaria de ter passado mais tempo, porque isso também teria sido melhor para meu trabalho. Mas esse é o tipo de pesquisa que faço para minhas exposições: saber como é sentir os espaços, não só como eles parecem.

    Você disse numa entrevista recente que tem aceito só 5% dos convites para exposições. O que o levou a aceitar trabalhar em São Paulo?
    Eu disse sim à mostra de São Paulo porque o convite pareceu de alta qualidade para mim e isso é, essencialmente, o que me leva a aceitar um convite. É verdade que eu tenho que fazer muita coisa, mais aliás do que eu dou conta, mas as potencialidades dessa mostra em São Paulo me levaram a aceitar esse convite de Solange Farkas e Jochen Volz.

    A luz no Brasil sempre foi uma inspiração e um ponto de transformação para muitos artistas europeus, desde o século 17. Você também trabalha com luz e o que você viu por aqui pode interferir em seu trabalho?
    Definitivamente eu vou fazer algo com luz. Como nós sabemos, todo trabalho, no fim, depende de luz, mesmo uma pintura negra. Nos últimos anos tenho me interessado pela luz tanto para falar da desmaterialização da obra de arte, seja em sua própria definição, como uma afirmação crítica. Mas também me interesso em como a luz pode provocar nuances na forma como nos orientamos na sociedade. Ambos elementos serão tratados na mostra.

    Talvez o Brasil, ao menos da forma que o conheço, não seja tão famoso pela sua luz, mas pela crueldade de sua luz, porque as diferenças dela são muito intensas: no Rio, ela é muito intensa, mas em São Paulo, que é um lugar muito alto, raramente se observa o pôr do sol, por exemplo.

    Assim, porque o Brasil é muito grande, há muitas intensidades distintas de luz e isso, sem dúvida me interessa porque apesar de se pensar que a luz é um fenômeno globalizado, ela é, na verdade, altamente localizada. Há uma grande diferença entre a luz no centro da cidade, até por conta da poluição, e ao redor dela, ou no interior. E nossa impressão da luz está muito vinculada à impressão de temporalidade. Então se estamos num ambiente desgastante como São Paulo, a luz parece muito mais estressante do que se você estivesse na floresta, por exemplo. Nesse sentido é que percebo a grande crueldade, ou diversidade, da luz no Brasil.

    A questão da percepção, aliás, é central em seu trabalho. Segundo o curador Gunnar Kvaran, artistas como você e o Ernesto Neto questionam parte do que se produz em arte, atualmente, porque suas obras se percebem a partir da necessidade da experiência e não da racionalização. Você concorda? O que o levou a trabalhar com a experiência?
    Primeiro, quero dizer que eu gosto muito do trabalho do Neto.

    Acho que é necessário ir além da percepção como uma via alternativa para definir a relação entre o objeto e o espectador no museu. Se você sugere que a percepção ela mesma pode ser considerada, fenomenologicamente falando, um objeto, há um potencial crítico nisso, que é muito relevante nesse mundo orientando para o mercado, no qual vivemos. Assim, a ideia de mercantilização se torna muito difícil. É possível mercantilizar uma experiência, mas não de forma tão fácil como se faz com sapatos, carros, essa coisas. Por isso, há um elemento ou um potencial que vai além da necessidade contemporânea da sociedade de consumo em sugerir que os objetos são constituídos pela percepção. E se sabemos que cada um tem uma percepção distinta do objeto, então trabalhamos com uma definição muito mais sofisticada de realidade. Com isso, a definição de democracia, parlamentarismo, sistema educacional de repente pode ser repensada por instituições culturais como o Sesc.

    Se pensarmos no Sesc como um container, ele é cultura ele mesmo, com os indivíduos dentro dele e isso é muito mais provocante. E do jeito que os museus estão se desenvolvendo no mundo, eles se tornam, cada vez mais, containers, ao invés de produtores. É uma grande discussão. Quando discuto percepção, ou recepção, ou mesmo arte, eu sempre os vinculo com a qualidade potencial em nossa sociedade. Eu não acredito em uma discussão da percepção isolada da sociedade.

    Alguns de seus trabalhos trabalham com paradoxos. As cataratas em Nova York, por exemplo, eles propiciam uma experiência coletiva, já que estão em lugares públicos, mas também lidam com elementos da sociedade do espetáculo, por sua grandiosidade e seu efeito impressionante, não?
    Eu acho que esse paradoxo reflete o mundo atual. Passamos por esse desafio em muitos lugares e espero que eu vá um pouco além de apenas apresentar problemas. Espero que, ao menos, se eu não conseguir apontar soluções, eu apresente potenciais questões.

    Para mim, a diferença entre um bom e um ruim projeto espetacular é que o bom deixa espaço e contém camadas, ele permite que o tempo passe, e quando o tempo passa ele se transforma e nunca será uma marca, um logo. Um espetáculo ruim é aquele que eclipsa o tempo e se transforma num monumento, num tipo de estética, de solidificação, enquanto o outro é líquido.

    Em meus projetos, eu posso dizer que é sempre possível desconstruí-los, é possível ver como eles são feitos e mesmo que em sua escala eles sejam imensos, eles não são incompreensíveis. Portanto, eu não deixo que o espetáculo se submeta à arrogância do comércio. Eu não quero submeter a ideia de beleza ao marketing. Eu quero permitir que algo muito lindo também seja crítico. E por isso eu não tenho medo de usar uma linguagem semelhante à da indústria do comércio. E eu não vejo minha obra como um mundo paralelo, mas como parte do mundo, por isso nunca me considero como parte de uma vanguarda distante. Eu quero dialogar com as pessoas.

    De certa forma posso refletir sobre essa temática em relação aos jogos olímpicos no Brasil, porque por um lado todos sabemos que isso faz parte de uma imensa indústria social, que também é uma brutal marca capitalista. Ou seja, também é um paradoxo, já que a ideia essencial das olimpíadas tem origem na democracia, em estar junto e ser diferente. E tanto nas cataratas de Nova York, como no Projeto do Tempo (The weather project), na Tate, esses projetos lidam com a experiência coletiva sem que isso dificulte a experiência individual de cada um. E o que é o populismo que vejo crescer na política, atualmente? O contrário disso, ele quer tornar todos iguais.

    Você também gostaria de fazer uma obra pública em São Paulo?
    Eu já tenho dez trabalhos pensados para os espaços expositivos do Sesc e da Pinacoteca, mas se eu conseguir pensar num 11º que fosse diferente dos demais e bom para a mostra de forma geral, então eu iria buscar um espaço... Hum, isso é simplificar demais, deixe-me falar de outra forma.

    Eu gosto da ideia de que você pode encontrar partes da exposição não só no Sesc ou na Pinacoteca, mas também nas ruas. Eu acho bacana que as pessoas percebam que a mesma linguagem dentro do museu também esteja ocorrendo fora.

    Como as bicicletas, que tinham espelhos nas rodas e estavam espalhadas por Berlim?
    Sim, isso mesmo. Eu também fiquei buscando bicicletas ai, mas há muito poucas, e eu não vou repetir isso, mas algo semelhante. Eu não chegaria a chamar isso de democratização, mas não posso esquecer a política do Sesc de portas abertas. Também acho muito importante que a Pinacoteca, historicamente falando, tenha uma relação com o espaço público. Ter algo na rua, ou talvez na praça da Luz, fora da Pinacoteca, pode ajudar na qualidade do que acontece dentro.

    Alguns trabalhos que mostrei na rua em Berlim simplesmente desapareceram e achei interessante porque não sei se as bicicletas que usei foram recuperadas e voltaram a circular, novamente, ou se alguém a achou e a pegou como obra de arte.

    Nessa exposição de Berlim, um trabalho muito impressionante e que você está trazendo a São Paulo, com fumaça de cores distintas, me lembrou muito as propostas de Hélio Oiticica em não só construir espaços de convivência, mas que a experiência da cor pura esteja presente. Você conhece as propostas dele?
    Sim, conheço bastante. Creio que em seus escritos ele falou do efêmero de maneira interessante, pois para ele efêmero é algo que se internaliza, não um local que se atravessa. Efêmero é um lugar dentro de espaço. Isso é muito interessante, pois os neurocientistas Francisco Varela e Humberto Maturana escreveram que algo efêmero também coloca questões éticas, e não é um conceito moderno neutro, mas uma fenômeno performativo. Acho que o Oiticica tem esse componente. E é sempre perceptível que os trabalhos dele, quando estão cheios de gente, são incrivelmente bons, de alguém que percebeu que a interação abre novas dimensões.

    Seu trabalho também proporciona esse espaço coletiva e você vem de um pais, a Dinamarca, onde, historicamente, o indivíduo sempre foi menos importante que o coletivo. De que forma essas raízes o influenciam?
    Cresci na Escandinávia, onde a ideia de coletividade era predominante. O Estado não era simplesmente uma moldura, mas algo produzido coletivamente, nem algo já pronto, mas algo que se constrói, que se faz, em conjunto. Aprendi na escola a discussão que define um estado de bem estar social, numa típica visão da esquerda, o que foi muito importante. Desde cedo, eu sempre pensei que nós poderíamos estar juntos, olhando uma obra de arte, e tolerar a pessoa ao seu lado, que tenha uma visão totalmente distinta da sua. E isso não compromete o senso de coletividade. Essa é uma das razões para o nome do trabalho na Tate chamar-se Projeto do Tempo. O tempo constitui um espaço coletivo na cidade e, em geral, não se despreza uma pessoa com a qual se discorda em relação ao tempo, enquanto nos parlamentos ao redor do mundo, o desacordo leva à exclusão, com a polarização das opiniões. Eu cheguei a ideia de coletiva numa tradição escandinava, mas dos anos 1970.

    E o Oiticica chegou a essas ideias numa escola de samba, onde, embaladas pelas músicas, as pessoas dançam juntas, mas cada uma a seu jeito. Curiosamente, em seu trabalho nunca há música...
    Tristemente eu não cresci no contexto do samba e moro há muito tempo na Alemanha.

    Onde a música eletrônica é importante.
    Verdade. Agora mesmo sem usar música, eu não me lembro de um trabalho que não tenho tido uma trilha sonora, eu ouço muita música. Eu até tentei fazer uma obra com o som de guitarras, mas não consegui.

    E aqui você pretende criar dois novos trabalhos, certo?
    Sim, mas também talvez mais, porque quero que os trabalhos fiquem muito bem colocados no espaço e o Sesc Pompeia de Lina Bo Bardi é tão especial e generoso, que realmente quero que meu trabalho possa estar numa correspondência clara a essa brilhante arquitetura. Por isso eu estou trabalhando numa nova versão do que você viu em Berlim, para que a obra esteja mais adequada ao conceito da mostra.

    Finalmente, gostaria que você falasse um pouco sobre seu trabalho como um processo colaborativo, já que você emprega gente de várias outras áreas, que não se relacionam diretamente com arte.
    Eu comecei nesse processo por constatar minha própria incompetência, precisando de assistentes competentes. Não se deve esconder que a melhor razão para se contratar o serviço de alguém é para otimizar a qualidade do que se quer fazer. Ocasionalmente, trabalho em diferente áreas, como engenharia, ciências sociais, e isso ocorre mais porque em outras áreas se encontram aprofundamentos metodológicos que não existem no mundo da artes. Como diz o neurocientista chileno Francisco Varela, a percepção não ocorre apenas no cérebro, mas no cérebro e no corpo como uma totalidade. Em arte, por muito tempo, se valorizou muito mais o cérebro, e quando o corpo é discutido é como se nunca ninguém tinha se movido. Por conta disso, a relação entre corpo e mente é bastante sofrível em relação à neurociência cognitiva, onde há muitos experimentos sofisticados, que comprovam, por exemplo, que nós nos vemos de acordo com o nosso movimento.

    Mas é importante perceber que eu não trabalho como um cientista, eu trabalho como um vampiro, eu sinto cheiro de sangue. E esses cientistas estão trabalhando com conceitos facilmente traduzíveis para o contexto no qual que eu trabalho e isso eu posso pegar emprestado.

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