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    Politicamente correto chega a ser "imoral", diz Pondé

    DE SÃO PAULO

    25/10/2011 23h15

    O filósofo Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha desde 2008, tornou-se uma espécie de porta-voz do "politicamente incorreto". "Há espaço para falar dos limites do politicamente correto. Há uma onda, e reconheço que, de certa forma, faço parte dela."

    Pondé participou ontem, no Teatro Folha, de sabatina Folha/UOL mediada pelo editor da Ilustríssima, Paulo Werneck, com a repórter especial da Folha Laura Capriglione, o repórter do UOL Rodrigo Bertolotto e Francisco Borba, do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP. Leia a íntegra da sabatina abaixo e veja o vídeo.

    Vídeo

    LIVRO "CONTRA UM MUNDO MELHOR"

    O nome do livro nasceu como resultado de uma irritação. Ninguém normal pode esperar que o mundo piore. Às vezes ele piora sozinho mesmo. O livro é contra um certo discurso, uma espécie de neopuritanismo, uma forma contemporânea de hipocrisia, que, me parece, tomou conta do pensamento público. Todo muito conta de um certo conhecimento público, acadêmico, mesmo a mídia. Todo mundo fala a mesma coisa, acaba trabalhando por um mundo melhor. Nesse sentido, acaba evitando certas questões que me parecem apontar para uma natureza humana que nem sempre é exatamente o que ela diz que ela é. Você tem uma espécie de marketing, muita gente está preocupada em apresentar uma imagem de "ser bom". A gente sabe pela história da filosofia, ou mesmo pela história da tradição judaico-cristã, que todo mundo que se acha bom, no sentido de virtuoso, provavelmente está do lado errado. No sentido de que uma reflexão mais profunda do ponto de vista moral e ético sempre nos leva a uma consciência de que nunca somos nós aquele que enuncia o nosso valor moral.

    "Contra um Mundo Melhor" é um expressão retórica que tem o objetivo de dizer que o pensamento público está todo falando só o que é bonitinho e legal, e na verdade a gente tem que discutir algumas questões mais difíceis.

    ONDA DO INCORRETO

    Se a gente assumir que o politicamente incorreto está num momento alto porque dois livros ["Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" e "Guia Politicamente Incorreto da América Latina"] vendem muito, então a resposta é sim. Mas isso é uma variável muito redutora. A gente tem esses episódios do humor, mesmo hoje o colega João Pereira Coutinho volta a esse tema na coluna da Ilustrada por conta da história do Rafinha [Bastos]. O debate fica redutivo se a gente acha que é o grande momento politicamente incorreto.

    Há, sem dúvida, uma grande espaço para se falar dos limites do politicamente correto. Há uma certa onda, e reconheço que, de certa forma, faço parte dela. Se 100 mil pessoas estão comprando o "Guia Politicamente Incorreto da América Latina" é porque você tem um público, por alguma razão, de saco cheio, achando que não tinha acesso a determinado tipo de informação.

    Um certo tempo atrás, você tinha que ter um mínimo de coragem para dizer certas coisas, discutir determinados temas. Muita gente tinha medo do leitor, do colega da faculdade, do aluno na sala de aula. Nesse sentido a gente pode dizer que talvez tenha uma certa brecha para colocar em dúvida esse medo do politicamente correto.

    Agora sem dúvida a indústria cultural, quando é eficaz, sabe ler determinados momentos e brechas para você vender livro. O meu próprio livro não deixa de ser politicamente incorreto, embora esse não seja o foco do livro.

    POLITICAMENTE CORRETO É UMA LEITURA MORAL?

    É uma leitura moral no sentido de que, na filosofia, a moral se refere ao campo da liberdade do ser humano e de como você conduz seu comportamento. Não me vejo como uma leitura moralista. Moralista, na filosofia, é um tipo de autor que tem seu epicentro no século 17 na França. Autores como Pascal. Moralista, nesse sentido, se aplica muito à leitura que faço, não moralista no sentido comum, de ficar jogando regra na cara dos outros. Isso quem faz é o politicamente correto.

    O moralista, filosoficamente, significa aquele tipo de autor que ponta limites do comportamento humano, daquilo que a gente quer esconder, determinados vícios que se fingem de virtude.

    COMO NASCE O POLITICAMENTE CORRETO?

    O politicamente correto nasce quase como uma necessidade de educação doméstica. Nasce do fato de que, num determinado momentos nos EUA, você começa a ter pessoas, por exemplo, como os negros circulando em restaurantes aonde brancos iam. E aí você [branco] precisa saber se comportar e parar de falar besteiras no sentido de ser inadequado.

    Tem também uma raiz filosófica que é mais técnica, no sentido que a gente [chama] de filosofia pragmática, que é a ideia de que a verdade social é constituída de determinados usos que vão moldando o comportamento. Alguém, por exemplo, começa a transformar em mal-estar você se referir a Deus como Ele, porque tá dizendo que Deus é homem. E aí você a ter que dizer que Deus é ele/ela. Ou aquela coisa "boa tarde, caros alunos e alunas". No sentido de excluir, separar. Você vai repetindo isso com a intenção de que isso vai gerar um certo mal-estar naquele que fala e naquele que ouve. Aí você corrige o uso da palavra. O politicamente correto me parece o casamento de uma postura filosófica americana, chamado pragmatismo, ao lado de fatos sociais, de ascensão social.

    O politicamente correto acabou se transformando numa espécie de censura. Na vida acadêmica acabou se transformando numa espécie de lobby para eliminar pessoas que não concordam com aquelas que têm poder institucional. No fundo se transformou numa espécie de patrulha. E, nesse sentido, me [parece] bastante imoral.

    QUAL A SUA PRIMEIRA PREOCUPAÇÃO?

    O politicamente correto não é minha maior preocupação. Minha inserção é como alguém que tem uma postura filosófica. É uma das questões que suscitam bastante interesse. Há vários níveis, desde o canalha aproveitador que se diverte com sacanagens de todos os tipos até pessoas que se sentem amordaçadas e veem o colunista como representante do que não podem falar.

    As questões que vêm a mim primeiro são o niilismo, a moral, análise do comportamento. Trazer à tona uma certa visão de onde possamos ultrapassar a obsessão pela felicidade.

    Vejo uma relação íntima entre meu trabalho de colunista e como docente. O colunista é aquele que fala com mais pessoas no espaço restrito, de toques. O docente é aquele que fala para menos pessoas, mas é um espaço mais aberto, presencial, contínuo. E como docente me preocupo em fazer com que o aluno entre em contato com a humanidade dele. O ser humano é uma espécie problemática, confusa, perdida, mas com capacidade de compreensão. O politicamente correto me parece uma espécie de traição à capacidade humana de análise da realidade.

    POLITICAMENTE CORRETO EDUCOU OS COSTUMES?

    Politicamente correto é resultado de uma sociedade que torna bastante complexa. Se você pensa em moral, educação doméstica pressupõe casa, cotidiano, relações impregnadas de afeto, e numa sociedade como a nossa você quase não tem mais o processo de impregnar as pessoas com a vergonha do que a sua tia pensa.

    Você é o sujeito desconhecido que mora no vizinho. Nesse sentido, não só o politicamente correto, você tem um vácuo moral no qual entra a presença do político e do jurídico. Quanto menos ética, mais lei. Cada vez mais precisa de advogado e juiz como quem pauta pensamentos. Isso é um fenômeno estatístico numa sociedade como a americana. O politicamente correto é um processo dentro desta linha quando ele começa com um tentativa de criar mal-estar e chega a uma tentativa de produzir processos jurídicos e leis. É o caso de gays, leis sobre casamentos, filhos e tal.

    Quando você me pergunta se não acho interessante educação para a diversidade, eu acho. Minha dúvida é se isso só é conseguido pelo politicamente correto. Conheço pessoas que estão longe disso, que com vivem razoavelmente com diferentes e não foi o politicamente correto que causou isso.

    Eu vejo o politicamente correto como uma máquina de controle do pensamento em determinadas instâncias públicas. É assim que se move dentro da universidade.

    Não tenho certeza se você precisa alterar livros de literatura para conseguir uma reflexão razoável para o racismo.

    A conclusão de que os ganhos que tivemos com o politicamente correto não me parece que seja um conclusão evidente. Minha impressão também é que os atores que praticam o politicamente incorreto normalmente se aproximam muito de práticas que chamamos de fascistas, no sentido de controle de pensamento.

    IMPORTAÇÃO DO POLITICAMENTE CORRETO

    Li essa coluna do Antonio Prata, lembro bem. A gente resvalou nesse tema no Festival da Mantiqueira. Ele me fez perguntas com relação a esse tema. O politicamente correto atua bastante bem nas sociedades em que ele diz que não é necessário, no sentido de estar presente. Se pensar em países da Escandinávia, é interessante perceber como o politicamente correto tomou o lugar do puritanismo luterano nos países escandinavos.

    Não acho que empiricamente se possa dizer isso. Com relação ao Brasil. Em relação a direitos, filosoficamente, entendo que os direitos são sempre proporcionais a deveres. Não consigo entender direito dissociado de deveres. A ideia de uma discussão acerca de direito sem falar de deveres me parece capenga. A ideia de direitos estabelecidos, filosoficamente, é que não é uma questão de senso comum, não me parece que seja evidente.

    Há pessoas que acham que o Brasil tem uma série de peculiaridades nas relações entre homens e mulheres, brancos e negros. De alguma forma, nosso padrão de relacionamento não é idêntico aos padrões americanos. O que a gente observa nos grupos que trazem o politicamente ao Brasil é uma espécie de tentativa de definir os problemas do Brasil de uma forma muito igual aos problemas que existem nos Estados Unidos.

    O politicamente correto me parece uma importação de um modelo de crítica social, no seu pacote, que não exatamente o mesmo no Brasil.

    ESTREIA DA COLUNA

    Dei uma entrevista para o Rafael Cariello quando saiu minha primeira coluna [em 2008], que era uma coluna sobre darwinismo, com um título na linha "Quem tem medo do macaco?". Escolhi essa temática porque poderia dizer coisas que penso sob a guarda de um discurso científico que acho interessante, não meramente retórico, mas bastante consistente. Na entrevista, a gente tocava nessa questão de eu ser conservador, porque dois anos antes ele tinha feito uma longa entrevista comigo, que saiu na capa da Ilustrada, em que o foco era a questão conservadora.

    Quando você pergunta se eu achei que ia fazer o leite derramar [por estrear num momento em que um governo de esquerda era bem avaliado e o capitalismo mundial passava pela crise financeira] ou que era um azar enorme, eu digo... Tenho uma característica pessoal, seja no jornal, na aula, seja o que for, que pode ser maldição ou pode ser virtude: sempre falo o que penso na hora em que penso sem levar muito em conta o contexto. Isso pode me levar à maior tragédia, desgraça total, ou pode dar certo. Eu sabia do contexto da crise, mas tenho também um olhar para períodos de tempo maiores. Acho que um dos grandes males nossos é achar que o mundo começou com a queda da Bastilha. Acho isso uma piada. Ou cada vez que alguém espirra e sai correndo na rua é um novo momento histórico.

    Isso não significa que eu não olhe o contexto no sentido de analisá-lo, mas que eu não leve o contexto em conta como uma preocupação para fazer uma coisa ou outra. Quando estreei, no ápice da crise, logo depois teve a eleição do Obama. E eu dizia que ele era uma espécie de messias, achava que ele não ia dar certo, no sentido que tinha a impressão de que ele era uma espécie de bolha, que ele prometia demais, que todo mundo achava ele um santo, ninguém podia falar mal dele.

    Na época, o Marcelo Coelho fez uma coluna muito legal [na Ilustrada] em que nos chamava, a mim, ao João Pereira Coutinho, ao Diogo Mainardi, de doutores do pessimismo. Uma coluna ótima, superbem-humorada, falando, "poxa, eu falo uma coisa, não sei quem faz uma piada. Eu falo outra coisa, não sei quem diz aquilo, virou chique ser pessimista". Sempre foi chique ser pessimista. Naquele momento, em que havia uma certa crise do capitalismo, primeiro, eu não estava preocupado com isso para pautar o que penso. Segundo, eu achava que aquilo ia se mexer. Terceiro, eu achava que o Obama ia dar errado, como de alguma forma deu.

    Em termos de Brasil, havia uma atenção minha grande ao contexto, que era a possibilidade de falar um tanto de coisas que pouca gente falava no espaço da mídia, inclusive por medo da determinada patrulha de que a gente falava antes. Foi um pouco de "vamos chutar o balde, vamos levantar a temperatura do jornal", no sentido de "eu vou falar o que eu penso e isso provavelmente levantará a temperatura do jornal". Sou polemista no sentido de, bem, "polemus" é guerra, combate, conflito, polemista no sentido bom da palavra, no sentido de jornalismo opinativo de coluna. Atacar determinados pontos do coro dos contentes.

    IGREJA

    Russell Kirk é talvez o maior historiador do pensamento conservador anglo-saxão no século 20. Ele tem um livro central para se conceber o pensamento conservador, "Conservative Mind", que sai em breve pela É Realizações no Brasil.

    O livro tem antes de tudo uma valor que é nos ajudar a compreender essa tradição e esse termo que nós conhecemos muito pouco, conservador. Associamos o termo conservador, grosso modo, ao que se podia associar comunista nos anos 60, aquele que come criancinha. Você quer difamar alguém, você chama de conservador.

    O livro do Russel tem como primeiro valor ensinar o que é a tradição conservadora em filosofia. É uma tradição específica, o próprio Kirk em outro livro localiza o termo, diz que surge na Franca no começo do século 19, "Conservateur, Conservative", para descrever um grupo de pessoas que, depois da Revolução Francesa, age em nome da defesa das estruturas político-sociais anteriores à Revolução.

    Em filosofia política, minhas referências são Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, David Hume, são autores referendados inclusive pelo Kirk como ancestrais do pensamento liberal conservador. E, no século 20, uma referência de pensador político para mim muito importante é um pensador chamado Michael Usher, que dizia: sou conservador em política, liberal no resto.

    Os especialistas no Kirk, quando falam que eu me vendo como conservador e na realidade sou pessimista, acertam mais ou menos, porque, quando discuto política na minha coluna, quem conhece a tradição conservadora vê que estou alinhado com essa, mas muito mais ao Hume que a que o Kirk abraça quando volta ao catolicismo. O pessimismo de fato sempre foi um parceiro meu. A tradição trágica me é muito cara, a tradição grega trágica, os filósofos posteriores... O que mais marcaram minha formação foram os céticos e Nietzsche. Entre ceticismo e tradição trágica eu sempre me encontrei.

    Agora, veja porque considero importante o debate teológico. Talvez seja uma das coisas mais pensadas, no sentido de que sou uma pessoa meio movida por impulsos. Inclusive na vida profissional. Imagine que abandonei a medicina para ser filósofo, um louco faz isso. Mas convencido de que o vocabulário teológico é importante para se compreender o mundo. E isso porque quero ser técnico, não estou nem entrando no mérito da confessionalidade. Convencido de que é importante para o debate, sabendo que o debate público se tornou impermeável. E a coisa mais engraçada que acontece comigo é gente que não me conhecia e diz: "Pondé, eu pensava que você era um reacionário daqueles que acha que todo mundo tem que rezar o tempo inteiro".

    E mais por pensar que é importante, num momento em que o Ratzinger foi eleito papa, e conheço um pouco o pensamento dele, acabei escrevendo sobre ele, é que introduzo questões seja da Igreja Católica, seja da tradição cristã em geral, seja do judaísmo, na minha coluna. Talvez aquele que mais deu espaço, sem preconceito.

    Ninguém quer ter preconceito hoje em dia, o único preconceito que no jantar inteligente é aceito é contra católico. Se você disser "eu acho católico o fim da picada", tudo bem. Esse preconceito é uma coisa que é assumida entre todo mundo que se diz inteligente. Acabei sendo, de certa forma, alguém que está na mídia e introduz temas teológicos, fala de Deus ou mesmo da Igreja Católica com outro olhar, mas esse movimento é pensado inclusive do ponto de vista da abordagem no sentido de não me deixar cair nas armadilhas daqueles que acham que vão me pegar facilmente me encaixando em qualquer gaveta. A forma como introduzo a discussão é muito mais uma forma moral e de natureza humana. É um debate sobre a natureza humana para o qual acabo produzindo questões que são do âmbito católico. Sempre fui bastante pessimista com relação à natureza humana.

    PESSISMISMO

    Não é cômodo ser pessimista. Cômodo é ser quietista, aquele tipo de pessimista que diz: "Ah, não vale a pena fazer nada. Vou ficar na minha". Seria uma espécie de quietismo meio esquisito, porque o quietismo vem do mundo religioso, e tem um sofrimento embutido nisso. A tradição filosófica que você pode chamar de pessimista ou trágica é profundamente produtiva, produziu os filósofos e pensadores mais importantes da história, a própria dramaturgia grega como um todo, tragédia é uma das raízes do pensamento ocidental.

    Eu me vejo como um pessimista filosófico e um otimista fisiológico. Adoro acordar de manhã, trabalhar, fazer o que eu faço, me encontrar com as pessoas com quem trabalho. Eu me divirto trabalhando. Não fico comodamente do lado de fora do mundo, porque no fundo eu gosto do mundo. Eu me envolvo com ele, gosto da minha atividade de docência, me envolvo com os alunos e os leitores, participo. O que há de cômodo na minha vida é gostar do que eu faço. Não estou sob a maldição bíblica de Jó de suar para ganhar a própria vida. Eu suo, mas me divirto com isso. Uma vez escrevi sobre isso, respondendo a leitores que me acusavam de pessimista.

    Eu vejo ao contrário, vejo que o otimismo público acabou se transformando numa espécie de discurso vazio e fácil para você ganhar todo mundo. Então você vira pro jovem e fala: "Vocês são ótimos, mudem o mundo", daí o jovem que está de saco cheio, aborrecido, obrigado a assistir aula chata, e acredita.

    É muito mais fácil virar para uma classe de 40 alunos de 18, 19 anos e dizer que eles podem mudar o mundo. Difícil é dizer: "Vocês não sabem nada, podem começar do zero. Por mais que você ache que sua mãe é uma besta, ela sabe muito mais do mundo que você. Você acabou de chegar no jogo, acha que conhece regras porque leu meio livro e teve um professor de sociologia que ensinou para você como o homem é como o mundo é e como vai ser." Acho que isso é muito mais cômodo e inclusive é muito mais fácil conseguir adesões.

    FELICIDADE E MEDICINA

    Uma vez escrevi uma coluna que tinha no título algo como "Deus me livre de ser feliz". É claro que com isso não quis dizer que a gente tem que procurar ser infeliz, você nem precisa procurar, porque a infelicidade vai procurar você. Tenho absoluta consciência de que,entre os vários pecados que eu tenho, esse eu tenho, o pessimismo. Mas até hoje a minha vida e o meu corpo me traíram. Eu estou dizendo isso pelo seguinte, quando discuto essa mania de felicidade psicofarmacológica, eu a discuto de certa forma de um lugar razoavelmente confortável, de um cara que não é infeliz.

    AUTO-AJUDA

    Auto-ajuda nunca funciona, a prova é que você tem que comprar o livro seguinte. Funciona durante um tempo. Funciona para vender. Acho palestra motivacional brega. Acho o fim da picada.

    *ESPIRITISMO *

    O Brasil é o maior país espírita do mundo. O que não significa espiritismo ou kardecismo.

    O kardecismo é uma organização que surge no século 19 num ambiente de forte positivismo, Kardec é influenciado por isso. E isso fica patente na ideia de que a organização está pautada pela ideia de experimentação no sentido de ciência, e não só de confessionalidade.

    Na Faap, onde tenho alunos de graduação, muitos se dizem espíritas. O brasileiro é um pouco assim: "Vou investir em todos os deuses, um deles tem que dar certo". Algumas pessoas leem isso como tolerância religiosa. Outros leem como herança de uma matriz indígena, em que o índio fingia aceitar o catolicismo, mas o padre virava de costas e ele voltava pro deus dele. No Brasil tem até pai de santo judeu. No Brasil todo mundo tem um pé no terreiro.

    Já fui a vários terreiros. Não para pedir nada. Não tenho uma convivência religiosa, seja nos terreiros, seja no judaísmo, no sentido de pedir coisas a deus ou a orixás. Sou filho de xangô. Acho que no Brasil o espiritismo acaba entrando, responde um pouco pelo mal-estar de um catolicismo restrito. O espiritismo traz uma ideia de encarnação que é muito boa para quem morre de medo de morte.

    PENSAMENTO CATÓLICO PÓS-BENTO 16

    Ratzinger é seguramente um dos maiores teólogos vivos no cristianismo em termos de formação, achavam que ele daria um mau papa por ser intelectual demais. Acho que o pensamento católico se tornou menos politicamente correto porque, se você pega textos do Ratzinger dos anos 80, já aparecem, nas criticas à teologia de libertação, a dúvida sobre determinadas soluções modernas para problemas criados pela modernidade. Ele consegue se mover bem na filosofia do século 20, com certa familiaridade, como outros não conseguem.

    LEITORES

    Uma coisa que me causa normalmente mais mal-estar é quando um leitor concorda comigo pelas razões erradas. Me deixa inquieto no mau sentido. Já recebi e-mails de leitores que me deixaram inquietos no bom sentido, e eu pensar no que ele me falou e voltar ao tema em outra coluna. Vou atrás e repenso, não no sentido de revisionismo, mas porque aquilo amplia o ponto de vista. E-mails de gente me mandando tomar naquele lugar, dizendo que quer que eu morra, isso tem de monte, mas os que trazem questões pontuais sobre o tema são os que me inquietam.

    NELSON RODRIGUES

    Nelson Rodrigues é seguramente um dos maiores filósofos brasileiros, naturais, não de formação. Cito Nelson com alguma frequência inclusive porque estou imerso em leitura sistemática há muito tempo para escrever um livro sobre ele. Acho que ele fala de uma série de coisas, inclusive da relação entre homem e mulher... Ele é um inspirador para mim, assim como é Paulo Francis. Cito Nelson de vez em quando porque ele é uma referência fácil para o leitor pegar, porque está à mão, a língua em que ele escreve e o estilo da forma que ele escreve, acho que ele acertou em tudo.

    VEGETARIANISMO

    Não odeio vegetarianos, cada um come o que quer. O que odeio no vegetarianismo é uma espécie de moralismo de gente que agrega a isso uma suposta superioridade moral.

    CRÍTICA AO CAPITALISMO

    Impossível (risos). Desculpe, não consegui me conter. Uma coisa que me parece muito clara é o seguinte: entre as fontes de alimentação do capitalismo estão algumas das piores características da natureza humana --egoísmo, acúmulo desenfreado, ganância. Mas, ao mesmo tempo, entre os sistemas que a gente conhece ao longo da história recente, não me parece que conhecemos alguma forma de sociedade onde exista mais liberdade individual que não seja associada à liberdade de mercado.

    NOVA CLASSE MÉDIA

    Para mim, o espirito de classe média antes de tudo incute a ideia de estar profundamente preocupado com o que os outros pensam de você, e, na nova classe média, o de achar que, se você for bom, nada de ruim acontecerá com você. A nova classe media é o orgulho nacional, não poderia deixar de ser, o país para ser rico precisa ter uma classe media que consuma. Mas é a coisa da pessoa que vai ter uma TV de tela plana, mas acha que terá mais dignidade. Porque ela tem valores, enquanto o rico não tem, pensa que, ao contrário daqueles que ganham bem há muito tempo, tem mais valores familiares.

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