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    Peter Greenaway ataca obsessão por filmes 'bobos' e desdenha do 3D

    RODRIGO SALEM
    DE SÃO PAULO

    12/03/2012 09h03

    Em "O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante" (1989), o violento gângster vivido por Michael Gambon (para os mais novos: o professor Dumbledore de "Harry Potter") é forçado pela mulher (Helen Mirren) a se banquetear do corpo do homem que assassinou por ciúmes.

    A cena até hoje é lembrada como uma das mais grotescas do cinema. No entanto, a sequência é uma das mais normais da filmografia do cineasta inglês Peter Greenaway, que retorna ao Brasil em maio para a edição 2012 do projeto anual de conferências Fronteiras do Pensamento.

    Morando em Amsterdã desde os anos 90, Greenaway nunca foi um diretor comum. Dos longas repletos de referências artísticas barrocas às instalações multimídias que faz em museus pelo mundo, ele procura sempre provocar o espectador.

    "Sei muito bem das críticas que recebo, que meus filmes são incompreensíveis", confessa à Folha (veja a íntegra da entrevista abaixo). "Mas o que realmente me empolga hoje em dia é o pensamento de reinventar o cinema sem narrativa."

    O diretor prega há alguns anos que o cinema convencional está morto e que o futuro da arte envolverá interação, imersão total e telas de notebooks e tablets.

    Ele não se interessa nem mesmo pela moda do 3D e ataca cineastas que aderiram "ao truque", como Martin Scorsese, que realizou "A Invenção de Hugo Cabret", seu primeiro filme usando a tecnologia. "Martin Scorsese é uma perda de tempo", polemiza Greenaway.

    "Ele fez alguns bons filmes no início da carreira, mas passou a ser manipulado pelos estúdios. Perdeu completamente a vibração que possuía em 'Táxi Driver' e 'Touro Indomável'."

    Divulgação
    O cineasta inglês Peter Greenaway
    O cineasta inglês Peter Greenaway, que volta ao Brasil em maio no Fronteiras do Pensamento

    FOLHA - O senhor fala há anos que o cinema está morto. Ainda continua com a mesma opinião?
    PETER GREENAWAY - Sim. O cinema é uma criação do fim do século 19 para servir de diversão para o proletariado. Eu não sei como está a situação no Brasil, mas aqui na Europa não há mais proletariado, somos todos burgueses. O cinema era uma forma simples e sustentável de entretenimento. Acho que o mundo está muito mais sofisticado e o cinema não tem o poder de estimular a imaginação como no passado. A nova geração está interessada em participar e o cinema é um fenômeno íntimo: você fica trancado em uma sala escura como um animal prestes a ser abatido, observando um retângulo de luz e olhando para a mesma direção por duas horas. É uma atividade limitada.

    Como mudar isso?
    Agora estamos vivendo na era da imersão total em termos de atividades e o cinema é uma atividade que não pode nos fornecer isso. Aqui em Amsterdã, os jovens simplesmente não vão mais ao cinema. Eles não se interessam nem mesmo pela televisão. Querem ir mais além, estão profundamente interessados em mídias sociais. Empresas como Apple já entenderam que isso é o futuro, nas telinhas que todos possuem hoje em dia. Estamos dando um passo para outras formas de diversão. Precisamos tirar os filmes dos cinemas e levar para a vida de todas essas pessoas.

    O que podemos esperar para os próximos anos?
    O que precisamos fazer para continuar a experiencia audiovisual é deixá-la mais imediata. Estou sentando neste momento em um escritório com uma câmera de vigilância atrás de mim e aposto que você será filmado várias vezes hoje ao entrar em prédios públicos. Como falam: se você não aparece em uma câmera, você não existe.

    A indústria de games hoje é maior que a cinematográfica. Você acha que a interatividade é a razão do sucesso dela?
    Não sei se é a razão, mas certamente é um dos sintomas. Os games trazem a experiência para você diretamente a sua casa. Não precisamos dividir nossas emoções com mais ninguém.

    Qual sua opinião sobre a tecnologia 3D no cinema?
    O 3D é totalmente irrelevante. Não está fazendo nada para reorganizar a experiência cinematográfica. É um truque barato e passageiro. As pessoas que estão fazendo 3D hoje em dia estão apenas preocupadas em mostrar um punho saltando na sua cara.

    Qual a sua sensação ao ver um diretor como Martin Scorsese filmando em 3D?
    Martin Scorsese é uma perda de tempo. Ele fez alguns bons filmes no início da carreira, mas passou a ser manipulado pelos estúdios. Perdeu completamente a vibração que possuía "Táxi Driver" e "Touro Indomável". Pobre Scorsese, ainda fazendo filmes italianos dos anos 1950 sobre a obsessão italiana pelo mal inerente aos homens. Não estamos mais interessados nisso.

    Hollywood enfrenta uma de suas maiores crises econômicas e criativas. O senhor avisou que isso aconteceria há alguns anos.
    Como eu costumo falar, Hollywood é um dinossauro e dinossauros não eram criaturas inteligentes. O cérebro deles era muito pequeno e longe da cauda. Se você atira na cabeça na segunda-feira, a cauda fica se mexendo até a sexta. É a mesma coisa com Hollywood, que está agora nostálgica por causa de filmes bobos como "O Artista". Os sintomas dessa morte ficam ainda mais evidentes quando tentam elevar a reputação de Scorsese só porque resgatou a figura de Georges Méliès.

    Mas ainda você filma o tempo todo. Por quê?
    Eu ainda sou um estúpido e antiquado cineasta que gosta de fazer filmes. Não gosto de assisti-los, nem mesmo meus filmes. Mas a ocupação de fazer um longa é empolgante, mesmo que ninguém o assista. Não quero fazer projetos como "Harry Potter" ou "O Senhor dos Anéis", que são textos ilustrados. É melhor ir a uma livraria.

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    Cena do filme "O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante" (1989)
    Cena do filme "O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante" (1989)

    Como observa essa onda de realismo no cinema? Há vários filmes que usam câmeras de mão, com uma ideia de hiperrealidade...
    O cinema nos levava a lugares que não poderíamos chegar. Se eu quisesse ver a vida da minha linda vizinha, eu iria tocar a campanhia da casa dela. Não preciso ir ao cinema para isso. Mas faz parte na natureza humana. Se pegarmos o período Renascentista, as obras de arte tentavam ser realistas, anatomicamente perfeitas. É um desperdício, porque não podemos criar realidade. Isso é uma preocupação de Deus. O maior presente do universo para a humanidade é a imaginação, então vamos usá-la. E não para replicar Deus.

    Ironicamente, o senhor mora na Holanda, o país que inventou o pai dos reality shows, o "Big Brother".
    Não. Essas ideias foram todas inventadas por George Orwell (1903-1950) no livro "1984", há mais de cinquenta anos. O que os holandeses fizeram de maneira bem esperta foi simplesmente comercializá-las [risos].

    Seu próximo trabalho é "Eisenstein in Guanajuato", longa sobre a passagem frustrada do diretor russo Sergei M. Eisenstein (1898-1948) por Hollywood e seus projetos pelo México. Alguma razão especial para filmar esse período?
    Eu queria fazer uma profunda investigação sobre alguém que é considerado um dos grandes cineastas da história. Ele foi para o México nos anos 1930, desesperado depois de ser cuspido por Hollywood, como geralmente acontece com cineastas inteligentes. Depois de retornar para a Rússia de Stalin, Eisenstein demorou dez anos para fazer outro filme. Eu me interesso sobre obras cinematográficas usadas como propaganda governamentais.

    O senhor vai ao cinema?
    Dificilmente. O cinema está muito chato. Para falar a verdade, a última vez que paguei um ingresso para sentar no escuro foi há 15 anos para assistir a "Veludo Azul", de David Lynch. Hoje em dia, eu vejo muito material de filmes em DVD para entender quais atores são bons atualmente e quais a novas tecnologias.

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