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    Tema de documentário, Brennand fala sobre arte, sexo e morte

    FABIO VICTOR
    ENVIADO ESPECIAL AO RECIFE

    17/03/2013 03h33

    Francisco Brennand já tem pronta uma urna funerária de cerâmica para receber suas cinzas quando for cremado.

    Acesso a diários do tio-avô abriu porta para diretora
    Crítica: Documentário perde relevância por falta de tom crítico

    A três meses de completar 86 anos, o ceramista e pintor pernambucano trata do assunto sem rodeio.

    O objeto, que ele próprio confeccionou, fica em seu ateliê no parque de esculturas que mantém nos arredores do Recife, um recanto à beira do rio Capibaribe entre vestígios de mata atlântica que se tornou um dos principais pontos turísticos da cidade --no ano passado recebeu 23 mil visitantes.

    Leo Caldas/Folhapress
    O artista Francisco Brennand na sua oficina cerâmica no bairro da Várzea, no Recife
    O artista Francisco Brennand na sua oficina cerâmica no bairro da Várzea, no Recife

    Essa olaria herdada do pai, que Brennand reconstrói desde 1971 e onde reúne sua produção artística marcada por uma mitologia particular trágica e sexual, é chamada por ele de bosque sagrado.

    Basta conversar com o artista, entretanto, para perceber que a morte não lhe cai bem. Lúcido, sagaz e com a erudição e a memória intactas, ele recebeu a Folha para falar do documentário "Francisco Brennand", que estreou nos cinemas no dia 15 de março.

    Mas tratou de mil temas; de arte, velhice e morte, brigas --como a com o seu primo Ricardo Brennand, que criou um complexo cultural a poucos quilômetros do dele com vasto acervo sobre o período holandês e uma coleção de armas brancas--, cinema, sexo e política.

    Interpretou por que seu trabalho em pintura e desenho é quase desconhecido em relação à sua obra cerâmica, que está espalhada pelo Recife (como num mural sobre a Batalha dos Guararapes no centro da cidade ou num parque de esculturas no dique do Marco Zero) e em cidades como Miami (num enorme mural em prédio que abrigou a Bacardi) e São Paulo (um mural no hotel Renaissance, nos Jardins, uma escultura na estação de metrô Trianon-Masp, entre outros.

    A velhice pouco afetou a imponência da figura de Brennand: alto --ele diz que tinha 1,87m e encolheu para 1,83m--, com uma espessa barba branca (agora raspou uma faixa do bigode acima do lábio superior), sempre está de suspensórios (resquício da educação algo inglesa que recebeu na infância) e só anda apoiado numa bengala de madeira --tem várias delas em seu ateliê-escritório-biblioteca.

    A autodefinição como um homem feudal, sua obra de pendor mitológico e o gosto pelo século 19 fazem crer que Brennand parou no tempo. É uma meia verdade.

    No ateliê abarrotado de livros do artista veem-se volumes de autores atuais como Roberto Bolaño --por quem anda encantado--, Ricardo Piglia e Enrique Vila-Matas.

    Discorre com propriedade sobre temas como a morte recente de Hugo Chávez e o governo Obama --gosta do americano a ponto de na última eleição ter colocado um cartaz dele na entrada da sua oficina.

    Por outro lado, este homem que conviveu com Léger, Balthus (uma de suas maiores influências, com quem divide o gosto por ninfetas), Lasar Segall e Cícero Dias desdenha da arte conceitual contemporânea. "Nada disso me interessa. Eu apenas não perco tempo em olhar para o que não me interessa."

    Dirigido pela sua sobrinha-neta Mariana Fortes Brennand e com fotografia de Walter Carvalho, o recém-lançado documentário parte dos diários que o ceramista escreve há 64 anos para tentar desvelar parte do mistério em torno deste ermitão da arte brasileira, algo que a reportagem também buscou em quase cinco horas de uma conversa cujos principais trechos estão a seguir.

    *

    RAIO-X
    FRANCISCO BRENNAND

    VIDA
    Nasceu em 11 de junho de 1927, no Recife, descendente de ingleses. Casado pela quarta vez, tem cinco filhos, o caçula com 20 anos

    OBRA
    É pintor, desenhista, ceramista e escultor.
    Fez estudos em Paris nos anos 1940/1950. Participou de quatro edições da Bienal de São Paulo e da Bienal de Veneza de 1990

    *

    O que o sr. achou do resultado do filme?

    Eu não sei se a aproximação excessiva foi vantajosa ou prejudicial a ela [Mariana Brennand Fortes, a diretora]. Ela tinha esse mundo aqui aberto, desde a infância que ela o frequenta. Evidentemente isso tem uma influência grande sobre as pessoas, o local. Teve influência na minha infância e juventude e na dos meus irmãos, deve ter para outras pessoas mais jovens. Eu vejo uma quantidade enorme de colegiais que passaram por aqui e hoje já são adultos com profissões definidas e fazem questão de lembrar que passaram por aqui com cinco, seis, oito, dez anos. Essas lembranças foram todas indeléveis, não se esquecem dos cisnes, das esculturas, de que as coisas foram se transformando. E acho que todos estão de acordo que esse lugar representa uma atmosfera mágica, que há qualquer coisa de magia dentro desse conjunto.

    Eu sempre temi que a à medida que eu fosse fazendo a reforma eu fosse banindo esse mistério que nós encontrávamos nas nossas brincadeiras de criança para fora da antiga fábrica. Porque, à medida que você corrige e limpa as coisas, dá a impressão que o mistério...

    Você não vai acreditar em fantasmas ao meio-dia, porque o sol é excessivo para que exista fantasmas, quando na realidade o fantasma pode aparecer a qualquer momento.

    Eu não tinha absolutamente inaugurado, nunca houve inauguração disso. Eu comecei a trabalhar e por acaso nos primeiros 11 anos de trabalho apareceram aqui umas pessoas trazidas por um motorista de táxi. Essas pessoas, que eram aliás paulistas, entraram, e o motorista, na sua humildade, ficou lá fora. As pessoas olharam o pouco que tinha para ver, fizeram elogios, demonstrando surpresa de terem encontrado o que viram, e lá na saída me deparo com o motorista, que bate no meu ombro e diz: "Isso parece o Egito".

    Quando ele disse essa frase, eu de imediato pude verificar que ele estava à procura de uma analogia, porque o que ele queria dizer era que isso aqui é misterioso. Porque na realidade, quando você fala no Egito você se aproxima de um segredo, de uma civilização que ainda hoje é indevassável, de uma cultura que é ainda profundamente obscura, misteriosa. As pirâmides não são absolutamente só monumentos funerários, elas teriam um outro significado. Quando ele disse isso eu senti que ele estava à procura de definir como isso é misterioso, eu descobri que, pela voz dele, de um homem do povo, eu estava no caminho certo, porque o mistério perdurava. Eu não me preocupei mais, continuei daí em diante a fazer o que eu deveria fazer.

    Levando em conta que a ruína balizava tudo e era apenas reconstruir a ruína. Outra coisa que me vinha à mente era uma frase de Ludwig Wittgenstein, que diz "A arquitetura eterniza e glorifica alguma coisa. Por isso, onde não existe nada a glorificar, não pode existir arquitetura".

    O que eu estava glorificando? Primeiro de tudo, uma ideia abandonada: essa fábrica havia sido fundada pelo meu pai em 1917 --vai fazer cem anos daqui a muito pouco tempo, em 2017. Para mim não é só a Copa do Mundo que está valendo alguma coisa não. A data de 2017 para mim é muito mais importante. Gostaria eu de estar vivo para comemorar com meus filhos e meus amigos.

    Essa glorificação tinha sentido, porque era reaver e revitalizar uma ideia abandonada. Meu pai sempre foi um homem fascinado pela matéria cerâmica. Era um colecionador de porcelanas. Apesar de ter herdado uma usina de açúcar, ele resolveu por conta própria entrar no ramo cerâmico, por paixão e fascínio pela matéria cerâmica. Ele fundou esta fábrica em 1917, com apenas 20 anos.

    Era uma fábrica de cerâmica?
    Era quase uma olaria, que pouco a pouco foi se industrializando, com o concurso de técnicos estrangeiros, sobretudo franceses. Depois ele chegou a fazer porcelanas --não aqui, na outra margem do rio Capibaribe, nós estamos na margem esquerda do rio. Chegou a fazer porcelana e azulejos. Ora, todo o leque tecnológico da cerâmica ele abordou. E foi dentro desse universo cerâmico que eu cresci.

    Mas e o resultado final do documentário, o que o sr. achou?
    Eu sou um apaixonado por cinema, e me dou até ao direito de escrever sobre cinema, sobre Antonioni, gosto muito de Buñuel, gosto muito de Bergman. O filme é um documentário, a própria palavra está dizendo e, dentro disso a que ele se propõe, acredito que ela [Mariana] se saiu muitíssimo bem. Agora, na realidade, ela está documentando a trajetória de um artista envelhecido, com 85 anos, e eu acho o ritmo do filme lento. Lento como eu estou lento. Eu posso aqui estar falando de uma maneira desembestada, mas na realidade meus movimentos não são assim --minha fala ainda é agônica.

    O sr disse isso para ela, sobre o ritmo?
    Disse, mas ela sempre tem uma boa resposta, porque ela é muito bem preparada, conhece muito cinema. Eu fiz uma observação: você apresenta uma série de quadros de mulheres seminuas naquele beco fatal, que é um beco onde eu fazia posar meus modelos...

    Fazia ou faz?
    Faço, ainda faço. É uma coisa curiosa. Você sabe, se um fotógrafo, qualquer fotógrafo, pede a uma menina qualquer pra posar, elas estão sempre prontas. Mas se um pintor pedir pra uma moça posar, elas acham uma coisa muito estranha. Porque pintar e desenhar exige você não se mover, exige uma série de coisas.

    O pintor José Cláudio, uma pessoa extraordinária e um homem que desenha com uma rapidez invulgar, resolveu passar um tempo dentro de um prostíbulo, morando lá, para ver se conseguia pintar e desenhar as mulheres. Foi um drama para ele, porque as prostitutas reagia muito mal. Em sua maioria elas diziam que já conheciam inúmeras taras e vícios e as coisas mais inacreditáveis em matéria de sexo, mas nunca tinham visto uma tara tão misteriosa quanto essa de querer pintar alguém. José Cláudio fez alguns quadros, mas sempre com grande dificuldades.

    O sr. usava muitas vezes a foto como base de suas pinturas e desenhos de mulheres?
    O filme termina com uma Polaroid que está ali em cima de minha mesa, sempre me acompanhou.

    O sr. então está numa situação difícil, porque a Polaroid parou de fabricar filmes.
    Exatamente, a Polaroid hoje você tem dificuldade de encontrar filmes. Nos Estados Unidos você ainda encontra.

    Mas aí o sr fotografa com uma Polaroid e depois...
    Nem sempre. Eu tenho múltiplos desenhos... Porque nem sempre meus desenhos são figurativos. Mas, quando se trata de mulher, eu preciso de elementos figurativos bem característicos, para depois então partir para as chamadas deformações --que eu considero sempre uma homenagem à forma, não como a criação de monstros. Não é para enfear. Quando um pintor neoclássico como Ingres acrescentou cinco vértebras no corpo de uma mulher, ela ficou com um corpo inigualável. Nenhuma outra mulher, por mais bela, nem que fosse Miss França, poderia competir com aquele corpo com mais cinco vértebras. Porque alongando as vértebras das costas, o braço também cresceu, e a cabeça diminuiu. Isso deu uma elegância infinita ao corpo. Isso é o que ele chamava a beleza idealizada, que seria a beleza propriamente criada pelos gregos. Não fique pensando que na Grécia antiga as pessoas eram exatamente aquela estatuária que se vê. Aquilo tudo é uma beleza idealizada.

    É uma deformação também.
    É uma deformação como homenagem à beleza.

    Mas talvez o fato de o sr fotografar também não se deva a uma probabilidade maior de conseguir atrair as modelos?
    Eu tive uma modelo italiana, italiana de pai e mãe, que posou para mim durante oito anos.

    Não encontrei com facilidade até hoje uma modelo com quem eu me familiarize, para pintá-la.

    Matisse teve uma infinidade de modelos. Mas curiosamente hoje em dia é possível se localizar o nome de cada uma. Porque, para haver essa aproximação para pintar um modelo, é preciso ter um elemento qualquer de ligação. Não é uma pessoa qualquer, distraída ou indiferente, que vai servir de modelo a você. É preciso que ela tenha alguma paixão pelo que você faz, ou até a vaidade de se deixar representar ou ser desenhada.

    Essas moças que gostam de aparecer na revista Playboy certamente não vão ficar desvanecidas por serem pintadas por um pintor que jamais vai atingir aquele grau de verismo que tem uma fotografia.

    Verismo ou não, porque hoje existe outra deformação chamada Photoshop...
    Exatamente. Essas correções, transformá-las em bonecas, em figuras quase assexuadas ou sexualizadas demais. A pintura é outra coisa, o propósito da pintura sempre foi outra coisa. Se você pegar a história da pintura, mesmo para os mais acadêmicos, jamais a pintura quis competir com os elementos fotográficos, são duas coisas diversas. A fotografia é uma arte relativamente recente, de meados do século 19.

    E teve uma influência muito grande sobre os pintores, muito mais do que se supõe, sobretudo nos enquadramentos fotográficos. Na composição de pintura antiga, você note que havia todo um arcabouço em torno do espaço entre a figura e a pintura propriamente dita. Hoje em dia, com os cortes fotográficos, você já vê na pintura impressionista, principalmente na pintura de Degas, de Toulouse-Lautrec, a presença do corte fotográfico.

    Leo Caldas/Folhapress
    Escultura em cerâmica de Brennand exposta em sua oficina
    Escultura em cerâmica de Brennand exposta em sua oficina

    Mas em geral no beco o sr fotografava, às vezes pintava, como é que era?
    Aí eu disse a Mariana: por que é que de repente uma daquelas modelos não sai correndo nua, aí vira uma mulher de verdade e sai correndo nua aí pelas campinas, pela oficina. Simplesmente ela irrompe, deixa de ser uma tela, uma pintura, e passa a ser uma modelo, completamente despida, nu frontal, corre e desaparece, pronto, não precisa ser tão explícito assim. Uma cena de alguns segundos, como acontece em cinema, não precisa mais que isso, porque o cérebro pega tudo.

    O sr. sugeriu isso a ela, e então?
    Sim, mas ela imediatamente rebateu, porque aí é que está a história. Ali já está implícito tudo, é como se ela já tivesse corrido etc etc. Ela sabe perfeitamente o que fez.

    No começo do filme é dito que o sr primeiro resistiu a participar --alegou que nada mais tinha pra falar e somente entregou o diário a Mariana. Por que voltou atrás?
    Ela veio com, por exemplo, Walter Carvalho, excelente fotógrafo e diretor de cinema. Toda aquela atmosfera de uma equipe organizada, eu senti a seriedade do propósito e não tive como recusar.

    Olhe, você me desculpe, porque, se por ventura eu ouso fazer alguma restrição a qualquer coisa desse documentário feito por Mariana é porque eu também faço restrição a todos os filmes que já foram feitos até hoje sobre a vida de pintores. Para mim foram todos absolutamente caricatos e decepcionantes.

    Tudo que foi feito sobre Van Gogh, por exemplo, é uma lástima. Aquele filme de Kirk Douglas representando Van Gogh é horrível ("Sede de Viver", de 1956). Tudo sobre Gauguin [também], com exceção, curiosamente, de um filme dos anos 1940, uma adaptação de um livro de Somerset Maugham, "Um Gosto e Seis Vinténs", não me recordo o nome do diretor, mas o ator foi Georges Sanders [o filme é "The Moon and Sixpence", de 1942, e o diretor é Albert Lewin].

    O que motivou a mim e a José Cláudio a nos tornar pintores foi a leitura desse livro.

    Por que o sr. considera o diário tão importante para compreensão de sua vida e obra?
    Minha obra sempre foi muito contaminada de literatura. Eu não faço nada que não esteja contaminado de palavras. O que me leva a pintar na realidade são as palavras, tanto que meus desenhos e meus quadros são quase todos com títulos. Eu tenho horror de uma pessoa que tem a pretensão de colocar "sem título". Isso é de um orgulho espiritual inacreditável. Como é que um quadro pode ser sem título, ou então "composição número 1"? Isso se faz em música, não em pintura.

    A publicação do seu diário é uma novela que se desenrola há anos. Por que ele não foi editado ainda?
    É uma novela sobretudo porque o movimento editorial no Brasil --e não sou eu quem diz, são os escritores quem reclamam-- está muito ligado a problemas de vendas, de best-sellers, coisas desse tipo. E se eles torcem o nariz para grandes escritores e jovens escritores e poetas, imagine para um pintor, não devem pensar que um diário de um pintor seja grande coisa. Mas acontece que é, porque está aí toda minha vida. Desde que me movimentei para viajar para a Europa que eu escrevo, desde fevereiro de 1949.

    Determinadas influências que tive, literárias e artísticas. Todo movimento intelectual, físico e espiritual de minha vida está dentro do diário.

    Uma passagem do filme remete a um pesadelo em que, no obituário do sr, é ignorada sua obra em pintura. O crítico Weydson Barros Leal já mencionou o "avassalador desconhecimento" da obra em pintura e desenho do sr entre o público de arte. Por que isso ocorre?

    Por conta desta admirável moldura que se fez em torno do mundo da cerâmica, porque foi a própria reconstrução da oficina, este bosque sagrado que eu criei, talvez um bosque único dentro da arte moderna de qualquer parte do mundo, um conjunto de esculturas aliado a arquitetura e à paisagem, que deu um relevo ao meu trabalho cerâmico, deixando a pintura escanteada. As gerações foram se renovando, e os novos não teriam obrigação de saber o que eu fazia em 1940 e pouco nem em 1950. Só os meus contemporâneos é que sabem dessa história.

    Mas o sr. se considera antes de tudo um pintor, não é isso?
    Sim, me considero antes de tudo um pintor. Só faço cerâmica porque sei pintar. E, quando faço um mural de cerâmica, não sou um ceramista, sou um pintor pintando sobre cerâmica. Então um pintor medieval que pintava sobre madeira não era um pintor? Só veio a ser pintor quando pintava a óleo sobre tela?

    Ser definido como ceramista incomoda o sr.?
    Não, absolutamente. Porque eu não tenho preconceito nenhum. Existem alguns aborígenes na Austrália que trabalham com areias coloridas durante o pôr do sol e fazem desenhos magníficos, inenarráveis, que desaparecem com o pôr do sol etc

    A cerâmica Brennand sempre foi um distintivo das residências abastadas do Recife, em pisos, azulejos, objetos de decoração. Em que medida esse lado comercial do seu trabalho prejudicou sua reputação como artista?
    Não vou dizer que prejudicou, mas criou ambiguidades. A importância empresarial da família muitas vezes foi motivo de controvérsias, de mal-entendidos a respeito do meu trabalho. Por exemplo, há muita gente que pensa que sou milionário. Eu tenho irmãos milionários, mas eu não sou milionário.

    Um bairro planejado de alto padrão do Recife foi batizado de Aphaville Francisco Brennand. Em nome do que o sr autoriza homenagens desse tipo?
    Isso foi coisa que minhas filhas fizeram e já está feito, inclusive está inaugurado. Foi uma pequena parte do engenho São Francisco, que eu herdei, e foi feito para evitar invasões, porque era uma área de invasões.

    Mas ter o nome do sr. num empreendimento desses...
    Não, isso veio de avalanche e eu não pude fazer nada. Tem outras coisas mais prejudiciais sobre as quais eu também não posso fazer nada.

    Por exemplo?
    Uma série de mal-entendidos a respeito de ter ou não ter dinheiro, de ter uma vida folgada. Como eu não vou para canto nenhum... Estou imaginando há muitos dias --porque tive esse compromisso com Mariana de aparecer na pré-estréia [do filme no Recife]--, com que cara vou ficar durante uma ou duas horas diante de um imenso público, mesmo que seja de luz apagada, mas tem a hora em que a luz estará acesa, e eu estou sendo ali enfocado. Acho isso tão destoante.

    O sr não é um homem rico?
    Não. Eu luto com dificuldade para sobreviver. Eu vivo do meu trabalho. Não tenho rendas.

    O sr de certa forma gosta de ser desprezado ou renegado? O sr diz no filme que "quem não gosta de minha escultura a reconhece". Poderia explicar melhor?
    Eu falo num artista renegado muito mais em relação à pintura do que em relação a escultura. A minha escultura foi na realidade mal interpretada porque, como ela se dirige a elementos arcaizantes, está muito presente nela uma pesada carga sexual, não elementos eróticos, mas elementos primitivos ligados à própria reprodução, que é algo em que o sexo está muito presente, mas não é propriamente nada atrativo.

    Tanto que eu costumo dizer que uma das únicas pessoas que teve uma interpretação correta do que eu faço foi uma velha senhora --que aliás eu traduzo iso fazendo uma comparação com uma peça de teatro de um dramaturgo suíço chamado Friedrich Dürrenmatt, "A Visita da Velha Senhora".

    Uma jovem veio comprar cerâmica e a tia dela quis ficar esperando no carro. A menina demorou, a velha ficou inquieta, desceu do carro e entrou na primeira sala. Quando viu as cerâmicas, disse: "Valha-me, Deus, nossa senhora, estou diante de um museu de horrores, uma carnificina. Espero nunca mais voltar aqui".

    Isso me foi contado pela menina. Considerei a primeira pessoa que soube olhar com exatidão aquilo que eu fazia. Porque olhar um parto, por mais normal que ele seja, é uma carnificina. Qualquer hábito sexual em si é uma violência. Quem está dentro dele não sente, mas é uma violência. O próprio ato, os movimentos são frenéticos. À natureza está pouco interessando se é um par amoroso, se é um ato ou se é um estupro. Pouco interessa à natureza, interessa é a procriação, que a fatalidade aconteça. E que dali, dessa cópula, nasça uma criança. À natureza interessa a procriação. A reprodução é um emblema de eternidade. As coisas são eternas porque se reproduzem.

    Eu estava no escritório há poucas horas atrás, quando a secretária me diz: está aí o filho de seu João, que veio pegar o dinheirinho que o senhor dá por mês a ele. Entrou o filho de seu João, falou como se fosse seu João, me cumprimentou como se fosse seu João, me estendeu a mão como se fosse seu João e agradeceu como se fosse seu João e foi embora. Eu disse: você viu, Cristiane, ele é igualzinho ao pai, porque ele é o pai. O avô já deve ter sido igual, e assim ele é eterno, aí está a eternidade. Não precisa falar em transcendência nem em imortalidade da alma. A imortalidade está no próprio corpo.

    [Brennand menciona o recente estupro de uma mulher que causou revolta na Índia, levanta para pegar um livro do intelectual romeno Mircea Eliade, "Ferreiros e Alquimistas" --"um livro de que não me separo", diz--, e lê longo trecho em que o historiador de religiões relaciona cavernas, grutas e acidentes geográficos a úteros e vaginas]

    Então veja, esse grupo de loucos que estupraram e maltrataram essa pobre moça estavam à procura talvez da caverna primordial, entende? Desse poço. A mulher despertava essa ânsia arcaica, ancestral, fora deles. Isso não é caso para a polícia deixar de prendê-los e fazer justiça. Mas, veja bem, isso na mão de quem quer se aprofundar na natureza humana.

    O sr. acha que eles são mais do que simplesmente bárbaros e vândalos?
    Nós estamos sempre à procura de rótulos. E esses rótulos não podem ser dados em determinadas coisas. Quando você mexe com elementos arcaicos, de formação, as matrizes da vida, você está mexendo com fogo. E eu em parte, por querer mexer com isso --não quer dizer que eu penetre não, eu raspo neles, mas já é perigoso, encontra reação, essa reação de me chamarem de artista obsceno, pornográfico etc. Apenas a palavra não está bem usada, mas que eu estou tratando com um assunto com que deveria ter mais cuidado, é verdade. Mas desde que comecei a lidar com o barro, eu me permiti essa liberdade.

    Aconteceram várias coisas que me levaram a isso. Eu estava aqui há quatro anos apenas, quando houve uma cheia catastrófica, não houve nada igual no Recife, em 1975, tão violenta que levou a ponte que ligava os dois lados. Fiquei ainda mais isolado, total solidão.

    E em vez de dar curso só à pintura floral e à minha disposição a pintar mulheres, eu comecei a enveredar por formas que tivessem uma morfologia ligada exatamente à sexualidade mais primitiva possível, descobrindo essas verossimilhanças através de formas vegetais de raízes...

    O sr. já se definiu como um homem da renascença...
    Sabe quem me disse que eu era um homem da renascença? Foi o nosso bibliófilo, o Mindlin, meu amigo.

    O século 20 foi um século amaldiçoado?
    O século 19 foi um século glorioso, de grandes descobertas, grandes movimentos em todos os sentidos, sobretudo na pintura, e teve uma influência grande no alvorecer do século 20, com o aparecimento de pintores definitivos, sobretudo Picasso. Mas nós não nos preparamos absolutamente para as grandes utopias, as grandes promessas para a entrada do terceiro milênio. Tudo aquilo que se prometia para o século 21 --a ausência de guerras, a erradicação das doenças e da fome. Enfim, quase todas as utopias foram absolutamente desmoralizadas, nós estamos num beco sem saída, com uma crise econômica terrível na Europa, os países em conflito e eu não vejo qual é a saída.

    O tempo atual não lhe desperta interesse?
    É claro que sim. Mas eu tenho o direito de olhá-lo de longe, e para mim já é um sacrilégio. Eu não quero meter a mão nessa cumbuca. Mas, confesso, não sem uma certa inveja de vocês que podem usufruir dele. Mas usufruir como eu penso hoje, mas vocês não sabem como usufruir dele, porque vocês estão imersos nele.

    Leo Caldas/Folhapress
    Urna criada por Brennand para abrigar suas cinzas
    Urna criada por Brennand para abrigar suas cinzas

    Quando se está imerso...
    Apenas se vive, o que é o normal.

    Ou seja, é uma conjectura insolúvel. Se só distanciado é que se tem a dimensão, ninguém...
    Depois de vivido e sofrido é que você se apercebe, mas já é tarde para você compartilhar experiências e até também ser compreendido. Eu não sei como você ainda está puxando por mim e já não desistiu [risos]. Não é que eu esteja propondo nada de novo, está tudo aqui.

    O sr. foi muito amigo do escritor Ariano Suassuna. Como é a relação entre vocês hoje?
    Ariano hoje é um socialista e eu continuo monarquista, com simpatias pela monarquia.

    O sr. diz isso como blague, ou tem convicção?
    Não, tenho grande simpatia pela monarquia. Acho que eleição democrática é o caos rodeado de urnas eleitorais. Isso é uma frase de Carlyle.
    [faz uma digressão e elogia Obama, por quem diz nutrir "enorme simpatia" e conta que, durante a última eleição americana, colocou um cartaz do democrata na entrada da oficina.]
    Uma monarquia parlamentarista, à maneira britânica, holandesa...Uma coisa simbólica, espécie de personagem supremo.

    E quem assumiria o papel, algum dos herdeiros da Casa de Bragança?
    Mas claro que sim, algum dos herdeiros, eles têm virtudes. Dom Pedro 2º foi, a meu ver, uma figura exemplar, e dom Pedro 1º um bravo português, já com características bem brasileiras, por conta da sua formação liberta.

    Mas essa seria a única divergência com Ariano Suassuna?
    Por exemplo, a insistência de Ariano em falar em armorial e às vezes me confundirem com esse movimento. E eu reajo de imediato e digo: armorial não, eu sou sexual. Eu não tenho nada a ver com armorial. Em 1961, quando fiz [o mural] A Batalha dos Guararapes, o armorialismo não havia ainda sido criado, o armorial de Ariano começou em 1971. Na realidade, talvez, sob o ponto de vista pictórico, eu tenha influenciado muito mais Ariano do que ele a mim. Agora, sob o ponto de vista literário, é claro que Ariano teve influência sobre mim. Ariano é uma das pessoas mais capazes que eu conheço, um dos grandes amigos que eu tive e tenho.

    Mas a maneira como Ariano pensa hoje, acho que ele simplificou muito os problemas brasileiros.

    O sr. disse numa entrevista que Portinari foi um pintor de segunda categoria...
    Exagero meu. Não existe isso. Em termos brasileiros, um excelente pintor.

    Mas não é de sua predilação.
    Não, prefiro muito mais Guignard, Pancetti, Di Cavalcanti, Siron Franco, Lasar Segall, um dos meus preferidos.

    O sr acompanha a arte que é feita hoje?
    Não. Mas não tenho nada contra, pelo seguinte: se o mundo está todo de cabeça para baixo, por que os artistas plásticos têm de ter uma posição correta, têm de pintar ainda com pincel e tinta? Eles estão fazendo experiências absolutamente corretas, dentro daquilo que o mundo moderno se deleita, que é a eletrônica.

    O que o sr. acha da arte conceitual contemporânea?
    Tem de encontrar outro nome, não é mais pintura nem escultura.

    Alguns chamam de artes visuais, não mais artes plásticas.
    Muito bem, está certo. Já estão chamando não mais obra de arte, mas artefato. Isso é um problema semântico, mas eu prefiro a velha intuição, de você pegar com a mão.
    Os contemporâneos têm muitas armas. O pintor Delacroix dizia, "o pincel, essa comodidade". É um ataque ao pincel, vindo de um pintor clássico.

    O sr. já ouviu falar em artistas como Damien Hirst, Jeff Koons, Cindy Shermann, Matthew Barney?
    Não, não, de jeito nenhum.

    E entre os brasileiros, já ouviu falar de Adriana Varejão, Tunga, Nuno Ramos, Waltércio Caldas?
    Já, esses já. Já ouvi falar, mas não conheço o trabalho. Tunga eu já vi fotografia de alguma coisa dele, através de Janete Costa, que era uma arquiteta ligada a ele.

    Há obras de artistas brasileiros que atingiram R$ 4 milhões, como uma tela de Beatriz Milhazes? O sr. conhece o trabalho dela?
    Eu já vi... É uma que tem uns elementos decorativos, né? Agora isso aí é um problema de mercado. Penetrando nos segredos do mercado nova-iorquino e internacional, das grandes galerias e casas de leilão, então você está integrado. Uma vez integrado nesse contexto, você vai longe.

    O que sr. acha desses valores?
    Deve irritar as pessoas que ainda... Por exemplo, um pintor como Siron Franco, um grande artista, admirável pintor. E outros pintores que são pintores de verdade no Brasil. Aqui [em Pernambucco] tem Ismael Caldas, tem João Câmara. São pintores de primeiríssima qualidade e que deveriam, esses sim, estar lá no mercado de Nova York, atingindo esses preços, e não essa que faz aqueles circulozinhos redondos se interpenetrando como se fossem bolhas de sabão. Mas sem fazer crítica nenhuma, eu acho que isso é um movimento sempre recomeçado, toujours recommencer. Tem que ser feito de alguma maneira, e essa maneira é a maneira moderna.

    Quanto custa a peça mais cara do sr?
    Ah, não chega a R$ 1 milhão, mesmo em se tratando de um grande mural.

    E qual o maior mural que o sr já fez, o mais valioso?
    O maior mural que eu já fiz, e fui gratamente bem recompensado, foi o que fiz em 1961 para a Bacardi, em Miami. Porque é o revestimento praticamente total de um prédio. Não é uma área, uma superfície, é um volume decorado. É um prédio de oito andares, que só não tem decorada a frente, que é de vidro.

    O que funciona lá hoje, continua sendo a Bacardi?
    Não, a Bacardi foi para Coral Gables, e aquilo foi tombado pela Prefeitura de Miami,e o Frank Gehry, o arquiteto, foi contratado pela Bacardi para fazer lá uma reforma, não do prédio, mas da área em geral, com elementos novos, arquitetônicos, e sobretudo com um grande parque. Eles fizeram recentemente uma exposição dos desenhos que mandei quando me contrataram para fazer o mural.

    Há também, no mundo inteiro, uma valorização muito grande dos chamados neoconcretos brasileiros --Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica. O sr conhece o trabalho deles? Como avalia?
    Eu os conheço todos de nome. Acredito que eu os conheço de nome e nenhum deles me conhece. Mesmo vivos jamais pensariam em saber quem eu sou. Lygia Clark é mais próxima a mim, porque era escultora. Eu vi alguma coisa dela.

    Mas nada disso me interessa. Sem que haja nenhum espírito crítico. Eu apenas não perco tempo em olhar para o que não me interessa, prefiro pensar noutras coisas.

    As modelos do sr. sempre foram muito jovens?
    Sempre muito jovens.

    Ainda hoje?
    Ainda hoje. Hoje eu tenho apenas o cuidado, porque hoje em dia estão com a mania de falar pedofilia. É uma coisa curiosa, meu sogro, pai de Deborah [primeira mulher do artista] casou-se com dona Helena ela tinha 14 anos. Ele era médico, e não acredito que ele fosse um pedófilo. Ela já era uma mulher feita com 14 anos. Uma mulher quando passa a ter menstruação, ela começa a ser uma mulher. Agora, sob o ponto de vista cultural, é uma outra coisa --ela está em formação, estudando. Mas, sob o ponto de vista da natureza, ela está pronta.

    Quantas modelos o sr. ainda tem?
    Hoje em dia eu luto com grande dificuldade para arranjar uma modelo.

    Como sumiu Mara, a modelo italiana?
    Ela tomou lições. Gosto de um filme de Scorsese, "Contos de Nova York", no qual um artista oferece emprego a uma modelo, dizendo "eu lhe dou casa, comida, moradia e lições de vida".

    Essa italiana compreendeu isso. Era uma moça absolutamente livre, eu não tinha interferência nenhuma na vida dela. Interessavam-me as histórias que ela me contava, de todas as suas aventuras aqui por fora, as praias, os gringos, suas conquistas etc

    Mas a ela começou a se interessar o mundo da pintura, da música clássica. Ela começou a ler e, nesses oito anos em que foi minha modelo, ela saiu daqui com essas lições de vida, eu diria, como se tivesse passado por uma universidade. Tanto que ela chegou à Itália e logo arranjou um casamento.

    E aí sumiu?
    Sumiu totalmente. Me mandou um cartão postal ou outro.

    O sr. manteve relações amorosas com algumas de suas modelos?
    Não. Eu fui casado com Deborah, depois eu tive mais três mulheres, e ainda vivo com uma delas. Com cada uma delas eu tive um filho, com Deborah foram dois, as mais velhas, que me ajudam aqui na fábrica. Tenho um outro de 44 anos, que mora na Paraíba, chama-se Pedro Fabrício. Tenho Helena Viktoria, que tem 20 e poucos anos, e tenho um rapaz de 20, o Oliver Edward, que é esse que ainda vive comigo.

    É esse que gostava de desenhar?
    Gostava de desenhar, mas hoje é um especialista em futebol, torcedor fanático do Manchester United, que empatou ontem com o Chelsea.

    Afinal de contas ele tem um nome inglês...
    É, e nós somos de Manchester, minha família veio de lá. Meu quarto avô veio de Manchester, chamava-se Edward.

    Por isso Oliver Edward?
    É, e o Oliver veio de Oliver Twist, de Dickens, porque o livro conta a história de um avô que descobre o neto que foi sequestrado. E claro que nunca disse isso ao meu filho, mas eu sou muito mais avô dele do que pai, porque tenho 85 anos e ele tem 20. A educação que eu dou a ele. Ainda ontem, antes de ele sair para se encontrar com a namorada --a coisa mais sagrada para ele é assistir a um jogo do Manchester--, ele delegou a mim [a tarefa de assistir ao jogo] para contar a ele. A maior dádiva de confiança que ele poderia me dar de confiança é que eu assistisse e depois contasse a ale. Ele acredita, ele já viu que eu entendo de futebol, tanto ou mais do que ele, porque já joguei futebol quando era menino e assisti futebol às pencas e gosto muito de futebol.

    Mas a história de ele ser do Manchester tem a ver com a ancestralidade?
    Ele ouviu dizer que meu tataravô veio de lá, talvez tenha localizando-se, e é um grande time.

    E o sr torce para quem aqui?
    Eu torcia pelo Fluminense no Rio --porque nós estudamos no Rio, eu e meus irmãos, viemos para cá já no fim do ginásio; morávamos em Botafogo, ali perto das Laranjeiras, e frequentávamos o Fluminense-- o que me deixou indisposto a aderir ao Sport, que é o time dele [o filho], por conta da camisa rubro-negra do Flamengo, arqui-inimigo do Fluminense. Não ia ser Náutico nem Santa Cruz, então fiquei sem time aqui no Recife. Mas o fato de Oliver torcer pelo Sport me enche de simpatia pelo Sport. A maior parte das pessoas que eu conheço são do Sport, Ariano [Suassuna] é Sport.

    Mas o sr falava de suas modelos e de suas mulheres...
    Há um estudo de um livro agora sobre Matisse que fala muito nesse problema. Que tipo de relação tem um homem que está sozinho com uma mulher nua dentro de um ateliê, que tipo de relação o sujeito pode ter?

    É claro que poderia acabar no desfecho de um relacionamento, a chamada cópula... Que nome estranho... Matisse sempre soube se resguardar. Não sei, isso não me interessa. É até possível que algumas dessas meninas que passaram pela minha vida tenham sido momentaneamente amantes. Mas todas foram tão fugazes. A única que foi mais demorada, que teve um peso maior, foi Mara.

    A italiana.
    A italiana, porque ela demonstrou interesse. Por exemplo, coisas que me surpreendiam. A maioria das pessoas sempre falou que Van Gogh era horroroso, feio, que a feiura dele afastava as mulheres. Ela começou a ler sobre Van Gogh e me disse uma vez: eu sou apaixonada por Van Gogh, se ele fosse vivo eu teria uma paixão por ele. E isso me comoveu. Quer dizer, Van Gogh já não seria tão só. Porque Mara era uma bela mulher, bela mulher, belo corpo, tudo. Porque nem as prostitutas deram atenção a Van Gogh, sempre o desprezaram. Tanto que há até a lenda de que quando ele cortou parte da orelha --não foi a orelha inteira--, colocou dentro de uma caixa de fósforo e foi a um prostíbulo que ele frequentava com Gauguin e entregou a caixa de fóssforo a ela. Ela abriu e, quando viu uma parte da orelha, desmaiou. Ele tinha sede de afeto, de atenção.

    Mara era prostituta?
    Não sei se ela não era uma prostituta. Ela frequentava cabarés e...

    Mas isso tampouco lhe interessava.
    Não, nunca me interessou. Você quer saber de uma coisa: chegou a um ponto em que eu tive tanta confiança na preparação intelectual de Mara que dei para ela ler os ª120 Dias de Sodomaº, [do Marques de Sade], que ela estava preparada para ler. Se fosse outra não, mas ela estava preparada para ler.

    O sr. teme que a oficina seja invadida?
    [após uma longa divagação sobre sua ligação com a chamada Restauração Pernambucana, a expulsão dos invasores holandeses no século 17]
    Eu tenho um primo que construiu um castelo e comprou uma biblioteca sobre o período holandês no Brasil. Muito bem, é uma maravilha, é uma bela biblioteca. E hoje em dia, como esse castelo é um lugar de turismo também, há pessoas que vão para o castelo e pessoas que vêm para cá. Então hoje em dia já se diz no Recife, se alguém diz que vai visitar o Brennand: mas qual deles, o brasileiro ou o holandês? Então felizmente que eu sou o brasileiro e ele é o holandês, porque ele já recebeu a rainha da Holanda, tem ligações...

    Leo Caldas/Folhapress
    O artista Francisco Brennand com sua primeira mulher, Deborah, nos anos 1950
    O artista Francisco Brennand com sua primeira mulher, Deborah, nos anos 1950

    O sr conhece a propriedade dele?
    Não. Eu nunca estive lá. Eu conheço porque eu nasci lá.

    Mas essa área expositiva que ele criou, que, à parte as diferenças temáticas profundas, guarda algumas semelhanças com a oficina do sr, por ser um grande espaço expositivo em meio à mata Atlântica. Gostaria de conhecer?
    Não, não gostaria de conhecer porque não vai me acrescentar nada. Acho elogiável da parte dele.

    De onde vem a divergência entre vocês, que é notória na cidade?
    Primeiro de tudo porque eu nasci do lado de lá [do rio] e ele não nasceu aqui, ele nasceu no Cabo [cidade a 35 km do Recife], ele é filho de um irmão de meu pai. Ele não é meu irmão, ele é meu primo, agora, primo-irmão, porque curiosamente ele é filho da irmã de mamãe e de um irmão de papai, primos carnais. Quer dizer, eu nem posso chamá-lo de impostor, porque se eu chamá-lo de impostor, eu tô chamando a mim mesmo também porque ele tem o mesmo sangue, exatamente igual. Eu acho apenas que ele despertou muito tardiamente para as artes. Ele e o pai desprezavam com a mais absoluta convicção toda e qualquer coisa que fosse ligada à arte. E agora, de repente, nesses últimos anos, dado ao meu sucesso nesse setor, ele resolve também incursionar pelo mundo das artes, e isso me criou dificuldades, como por exemplo problema de identidade, de endereço.

    Às vezes as pessoas vêm pra cá e é pra ir pra lá, às vezes vão pra lá e é pra vir pra cá, dificuldade correspondência e etc. Falando num artigo sobre pode-se dizer que "Ricardo Brennand comprou um Franz Post de 2 milhões de dólares..." e logo adiante dizer "Brennand pagou 2 milhões de dólares...", e eu nunca vi esse dinheiro na minha frente. Isso me irrita que essas quantias sejam facilmente... Que ele comprou isso, comprou aquilo...

    Eu escutei que ele diz que o nome dele é uma homenagem ao pai do sr.
    Sim, mas isso é uma bela maneira de ele disfarçar que o nome dele já foi dado pelo pai dele como uma homenagem ao meu pai, porque o pai dele era o irmão mais moço do meu pai, e o filho mais velho do meu pai, já falecido, tem o nome do pai dele, Antônio. Ele diz que fez tudo aquilo em homenagem ao tio Ricardo, que era na verdade o grande colecionador, que foi meu pai, não o pai dele.

    O sr. está falando isso agora, mas na verdade muito antes disso vocês já não tinham uma relação de proximidade. Por quê?
    Coisas da vida. Ele é um rapaz aplicado, inteligente e um excelente empresário, de primeiríssima qualidade.

    Como o sr. encara a proximidade da morte? Tem medo de morrer?
    Eu tenho uma urna [funerária]. Primeiro, eu fiz meu testamento. Isso não quer dizer que seja destemor da morte, ou uma espécie de desafio. Segundo, as criaturas humanas têm um dispositivo que, apesar de saberem que todos morremos, lá no fundo nós não acreditamos, pensamos que somos imortais.

    É como se pudéssemos adiar indefinidamente o fatal. E, quando ele chegar, claro nós vamos ser pegos de surpresa, mas o temor vem de maneira muito mais sutil, através do pânico por outras razões, através da sua fraqueza e sua impotência de defender convenientemente aqueles que nós amamos e por quem somos responsáveis. Tudo isso nos aterroriza e isso é uma espécie de morte.

    Eu acredito que dentro da mecânica da psique, nós morremos inúmeras vezes e renascemos outras inúmeras. Estamos sempre morrendo e renascendo até o fatal, até o desaparecimento total, físico. E acredito que eternidade é tudo, menos aquilo que se diga. Muito menos acredito que temos o direito e a pretensão de pensarmos que nós temos, de uma forma superior, a oportunidade de retornarmos ao mundo, à outra vida, que teríamos um substrato qualquer, ao qual nós chamamos de alma e que o restante dos animais não tem o direito à isso. É intolerável.

    O sr. falava das cinzas...
    Eu preparei uma urna, porque eu lido com fogo há muitos anos, já lidava com fogo nas caldeiras da usina e vi fogo desde muito cedo nas diferentes formas. Nós estamos habituados a ver fornos modernos, fornos de passagem, de rolo, intermitentes, forno garrafa, toda espécie de forno e de chama, as diferentes temperaturas, acima de 500 graus, acima de 1.000 graus, as temperaturas pra queima de faiança, temperaturas pra queimar porcelanas feldspáticas, temperaturas de altos fornos pra queimar material refratário, então nós lidamos com fogo e eu quero me transformar naquilo que é, vamos dizer, uma cerâmica, então eu vou ser cremado, volto pra essa urna, parte de minhas cinzas ficará nessa urna e o restante será jogado lá na casa do [engenho] São Francisco, onde eu vivi, de onde veio a minha família.

    A solidão incomoda o sr.?
    As pessoas dizem que eu sou um grande solitário, simplesmente por um motivo: porque eu não frequento sociedade de forma nenhuma, não vou pra canto nenhum. Amanhã, por exemplo, vai ser uma tortura, porque eu vou a um lugar onde vou ficar exposto [pré-estreia do filme no Recife], ser o centro das atenções, e isso me desagrada. É impróprio.

    Por isso dizem que o senhor é solitário?
    Simplesmente porque eles não me veem. Como eles me atribuem a possibilidade de viajar, eles dizem "Brennand está na Europa", e eu estou aqui. Nos filmes de cowboy não se diz "Procura-se vivo ou morto"? Pois se quiser me procurar venha aqui, eu estou aqui sempre.

    De domingo a domingo?
    De domingo a domingo, feriado, dia santo, não saio daqui.

    O que a velhice traz de bom? O que ela ensina?
    Olha, há uma frase de Ingres, além daquela sobre a deformação: "A velhice me vingará". Estava escritor ao lado de vários desenhos tinha. Nessa época eu tinha 22 anos e disse: mas como é que diabo um velho pode se vingar, se um dos elementos primordiais para a vingança é o fator tempo? E o velho não tem tempo pra se vingar.
    Depois que eu completei 80 anos, ou menos que isso, comecei a verificar, como é que você pode se vingar?
    Por exemplo, não mentir, não necessitar da mentira, a chamada mentira social, tão necessário para os mais jovens poderem sobreviver, não é que o sujeito seja um mentiroso, é apenas por uma questão de bom tom, de poder viver em sociedade. "Por que você não veio ao nosso encontro?" "Você sabe, esse trânsito, depois tive que levar menino no colégio..." Uma desculpa qualquer, mas não é exatamente a verdade, mas isso é pra você sobreviver no convívio social. Às vezes me telefonam [e eu aviso que não vou atender, e algum funcionário diz], "mas seu Francisco, o que é que eu vou dizer?". [E eu falo:] "Diga que eu estou e que não quero atender, estou trabalhando, e diga mais, que eu tenho horror a desocupados".

    Qual é o preço que a velhice cobra?
    É você ficar cada vez mais só, não há volta. Cada vez mais só. A solidão só lhe traz mais solidão.

    O sr. teve muitas mulheres, muitos filhos, sempre pareceu ter uma sexualidade muito intensa. Como é que a velhice influi nisso?
    Leonardo [Da Vinci] dizia que a pintura é coisa mental. Na velhice mais do que nunca eu verifico que sexo é uma coisa mental, e posso lhe dizer mais, quando vejo qualquer filme pornográfico, eu de imediato verifico como eles são tolos. Como é possível uma pessoa considerar que aquilo é pornográfico. Como é que pode existir pornografia sem palavras? No filme pornográfico ninguém fala, só faz "ui, ui, ui, oh, God". Isso não é nada. O terrível são as palavras. Nós pecamos por pensamentos, palavras e obras, já que o pensamento não se traduz em visível, mas as palavras são terríveis. Você note que eu disse a você que eu tive a audácia de entregar um livro "Os 120 dias de Sodoma" porque ela [a modelo italiana] estava preparada para ler, não se brinca com palavra.

    Sexo sem palavra não existe. Isso é que nos difere do sexo animal, os olhares, certas coisas estranhas que acontecem, toques absolutamente perdidos. Às vezes aquela que passa e que você nunca mais vê, nunca você vai encontrá-la de novo e ela certamente seria a mulher que você amaria.

    Desde que o sr. se instalou aqui, o senhor sempre foi ampliando a oficina. Quais as próximas etapas da ampliação e o que será feito depois que o senhor não estiver mais?
    Estamos pensando seriamente em criar um instituto, alguma coisa que possa perdurar, sem que essas coleções possam ser fragmentadas. Porque os elementos circunstanciais foram, de tal forma favoráveis e predeterminados pra que dessem certo que seria uma lástima que isso numa penada fosse destruído.

    Isso aqui sempre foi mantido com recursos próprios?
    Com recursos próprios, porque quando eu cheguei aqui, aconteceu uma coisa que eu nunca pensei, eu tinha 44 ou 45 anos. Quando eu vejo alguém se lastimando porque já está na casa dos 40 eu digo: eu tinha 44 anos quando comecei aqui e nem com 17 anos eu era tão louco e não tinha no meu vocabulário a palavra volta.

    O que eu fizesse era pra valer, era pra ficar, e eu tinha 44 anos. Uma audácia incomum. Primeiro de tudo eu não tinha tido experiência empresarial nenhuma, não distinguia uma duplicata de uma nota fiscal. Eu nem tinha uma assinatura própria, eu só assinava meus quadros e minhas esculturas eu assinava FB.

    Eu não conhecia nada, nada de leis trabalhistas, fiscais. Quando eu cheguei aqui e meu pai aqueceu que eu fizesse modificações, a reforma, ele ainda estava vivo, mas eu não contava com as máquinas, que eram máquinas de empresas, tipo de fábricas, as prensas eram pra prensar toneladas de argila. Os fornos contínuos eram pra ter uma carga permanente e como é que ia suprir essa carga pra poder por meus parcos trabalhos individuais? Não era um forno intermitente, que eu acendia, não, tem uma carga e descobri que era obrigado a pegar o ladrilho sobre o qual eu pintava meus murais e fazia uma produção maior pra vender como piso e revestimento. Tanta sorte que um grupo da Sudene estava terminando o projeto da Sudene e queria revestir a Sudene com cerâmica e gostavam do que eu fazia nos murais e perguntaram se era possível fazer pra eles.

    Eu passei dois anos anos fornecendo material para a Sudene, depois o Rio começou a comprar, São Paulo.

    Em 2002 o sr. dizia que estava ficando cada vez mais reacionário. Esse reacionarismo continua aumentando hoje? Como ele se manifesta?
    Essa palavra reacionário é muito antipática. Em relação a certas bobagens que escuto hoje em dia, a propósito de supostamente esquerda, que nós não temos esquerda no Brasil. Temos um partido trabalhista aliado à burguesia paulista, a isso que Lula diz "as elite". As elites estão todas do lado dele, não conheço ninguém que não esteja do lado de Lula --as grandes construtoras, os banqueiros, os grandes empresários aderiram totalmente.

    Nos últimos meses ganhou força a possibilidade de o governador Eduardo Campos se candidatar a presidente. O sr. dizia que conheceu o pai dele [o escritor Maximiano Campos]...
    Trabalhei com o avô dele, trabalhei na Casa Civil do governo [Miguel Arraes] Arraes [no início dos anos 1960]. Ele me chamou para fazer uma tentativa de transformar a antiga Casa da detenção numa Casa de Cultura [o projeto de Brennand, que teve a participação da arquiteta Lina Bo Bardi, foi engavetado; anos mais tarde um outro projeto criou a Casa da Cultura no local].

    Mas como o sr. vê a possibilidade de Eduardo Campos se candidatar a presidente?
    Acho possível, sobretudo se a economia degringolar de fato, porque Eduardo tem ideias corretas a respeito do desenvolvimento do pais. Se ele fizer uma aliança vigorosa com o empresariado, com um bom programa político desenvolvimentista, acredito que ele terá sucesso. Porque carisma e capacidade política ele tem, inclusive familiar.

    O sr. votaria nele?
    Claro que sim.

    O que o sr. acha da presidente Dilma Rousseff e do governo que ela comanda?
    [longa pausa] Eu acredito que a Dilma Rousseff é cheia de boas intenções.

    E o que o sr. achou dos anos Lula?
    Mexeu um pouco com os brios de uma burguesia absolutamente estagnada e egoísta. Eles estão mais atentos agora.

    Acha que foi bom para o país esse período dos governos Lula?
    [pausa] Acredito que o período de Lula não terminou, ele próprio não desencarnou, continua a influenciar diretamente todos os acontecimentos e vai influenciar ainda mais.

    Seria possível o sr. se definir numa palavra?
    Uma vez disse três palavras para me definir. Feudal. Supersticioso. Pornográfico. E continuo. Feudal no sentido de que eu não posso me compreender sem estar ligado a uma terra e a um local. Porque sempre nasci aqui e vivi aqui. Fiz viagens, mas sempre voltei.

    Que projetos tem?
    Nenhum projeto à vista. Tenho projeto de trabalho. Meu desejo é pintar ainda bastante, fazer alguns quadros.

    Mais quadro do que escultura?
    Mais quadro do que escultura.

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