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    Análise: Alice Brill ultrapassou clichês ao fotografar SP

    DANIELA ALARCON
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/07/2013 03h30

    Pouco mais de 200 fotografias 3x4, tomadas com uma câmera Bela Box, da Europa a São Paulo.

    Alice Brill, que morreu no último sábado (29), tinha 12 anos quando, em 1933, em pleno exílio, produziu esse lote de fotografias. Filha de pais judeus -o pintor Erich Brill e a jornalista e militante socialista Marte Brill-, a menina deixava a Alemanha nazista para se estabelecer no Brasil, onde produziria uma obra fotográfica vigorosa.

    Decidida a sobreviver de arte, a jovem Alice tornou-se fotógrafa, ofício então incomum para mulheres.

    Entre o final da década de 1940 e o início dos anos 1960 ela produziu cerca de 16 mil imagens. À época, outros refugiados do nazismo -Hans Gunter Flieg, Hildegard Rosenthal e Peter Scheier- também se estabeleceram em São Paulo como fotógrafos.

    Seus aportes, como enfatiza o pesquisador Boris Kossoy, foram fundamentais à consolidação de uma visualidade moderna no Brasil.

    O principal objeto de Alice foi a cidade, retratada segundo uma abordagem moderna, em que confluíam referências europeias (sobretudo a herança do pai, assassinado em um campo de concentração, em 1942), conhecimentos autodidatas e a convivência com artistas modernistas, em especial os do Grupo Santa Helena.

    Alice Brill/Acervo Instituto Moreira Salles
    Vale do Anhangabaú, na década de 1950, em foto do acervo do Instituto Moreira Salles
    Vale do Anhangabaú, na década de 1950, em foto do acervo do Instituto Moreira Salles

    ÍNDIOS E LOUCOS

    Além das fotografias urbanas, produziu fotorreportagens (sobre os índios Karajás e os pacientes do hospital psiquiátrico do Juqueri), retratos de artistas, reproduções de obras de arte, retratos de crianças e famílias.

    Entre 1952 e 1954, a convite do crítico e historiador Pietro Maria Bardi, Alice produziu uma ampla documentação de São Paulo, revelando as linhas da cidade em contraluzes, ângulos e enquadramentos inusitados.

    Se as representações hegemônicas da metrópole, às vésperas de seu quarto centenário, contribuíam para a legitimação do processo de modernização da cidade, Alice, contudo, ultrapassou os clichês mais difundidos, revelando as zonas escurecidas pelo discurso dominante.

    Perscrutando vestígios de temporalidades anteriores, apagadas pela vertiginosa "picareta do progresso", ela registrou silenciosos atos de força, na forma de casarões espectrais esmagados por espigões.

    A experiência urbana das classes populares também foi meticulosamente documentada -o homem-placa, a oficina do sapateiro, a conversa na esquina da vila operária, as lavadeiras no cortiço.

    A intenção de Bardi -reunir as fotografias em um livro- frustrou-se por falta de financiamento. Assim, a São Paulo de Alice ficou adormecida durante quase cinco décadas, encaixotada na casa da fotógrafa.

    Nos últimos anos, pesquisas acadêmicas e exposições vêm demonstrando um reiterado interesse por sua produção, restituindo ao conhecimento público um conjunto fotográfico de valor inestimável, um espelho profundo do processo de modernização brasileiro.

    DANIELA ALARCON é jornalista (USP) e mestre em ciências sociais (UnB), autora de "Diário Íntimo: A Fotografia de Alice Brill" (no prelo).

    Alice Brill/Divulgação
    Crianças na praça Buenos Aires, em São Paulo, nos anos 50, fotografadas por Alice Brill
    Crianças na praça Buenos Aires, em São Paulo, nos anos 50, fotografadas por Alice Brill

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