Poucos transeuntes que passam pela movimentada esquina das avenidas Entre Ríos e San Juan, em Buenos Aires, se dão conta. Os mais atentos, porém, verão ali uma modesta placa que homenageia Rodolfo Walsh (1927-1977).
Há 36 anos, agentes da repressão desceram de um par de carros verdes Ford Falcon (modelo usado pelos temidos "grupos de tarea"), cercaram o escritor e o crivaram de balas.
Armado, o autor argentino tentou reagir, mas testemunhas contam que seu peito se abriu devido a tantos ferimentos, e que seu sangue escorreu aos borbotões. Apressadamente, os agentes o colocaram dentro de um dos veículos. Seu corpo nunca mais foi encontrado.
Arquivo Clarin | ||
O escritor argentino Rodolfo Walsh |
A história de Walsh é violenta do princípio ao fim, como mostra a recém-lançada biografia "Rodolfo Walsh - Las Palabras y la Acción", de Eduardo Jozami (ed. Edhasa).
MONTONEROS
De ascendência irlandesa e inspirado pelos guerrilheiros que lutaram pela independência daquele país nos anos 20, Walsh foi um ativo membro dos montoneros (grupo marxista que apoiava Perón), que resistiram à ditadura militar (1976-1983). Sua filha, também montonera, suicidou-se para não se entregar às forças da ditadura.
Se Walsh hoje é um herói para muitos por sua postura de poeta-soldado, também é visto como vilão por outros, por ter estado envolvido na armação de atentados com vítimas fatais. Em outubro de 2011, os responsáveis por sua morte foram condenados à prisão perpétua, dentro dos julgamentos dos crimes dos anos 1970 promovidos pela gestão Kirchner.
Autor do clássico da não ficção "Operação Massacre" (Companhia das Letras, 288 págs, R$ 46), Walsh tem agora sua obra completa de ficção lançada no Brasil.
Sai pela editora 34 o terceiro volume de sua coleção de contos, "A Máquina do Bem e do Mal", reunião de 25 textos escritos entre 1950 e 1967.
Na introdução, Ricardo Piglia diz que os textos têm o mérito de mostrar "uma verdade referencial, mas nunca dizê-la".
Assim, Walsh diferencia-se do modo como a esquerda em geral sempre se pronunciou na Argentina, de maneira panfletária e caricata.
Seus contos estão carregados de sentido político, mas só um bom leitor de entrelinhas e conhecedor do contexto sabe interpretá-los assim.
É o caso do famoso "Essa Mulher", em que Walsh conta a história da disputa de dois homens por um cadáver feminino. No fundo, o autor trata de Eva Perón, um dos ícones políticos argentinos, cujo corpo esteve desaparecido.
Nos contos do volume, é possível traçar a filiação literária de Walsh. Estão presentes o romance policial, as alegorias fantásticas, os relatos do submundo.
"Não tinha o objetivo de despolitizar Walsh, mas de mostrar que sua obra literária merece atenção independentemente de sua trajetória como militante", diz à Folha o editor Sérgio Molina, organizador da série, cuja publicação foi viabilizada por programa de apoio à tradução do Ministério das Relações Exteriores da Argentina.
O principal recurso de Walsh para expor e criticar a realidade era construir personagens ligados a atividades secundárias, mas que revelam a microfísica da sociedade.
Autores como Walsh e Roberto Arlt, tidos como mais "populares" em comparação com os "elitistas" Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, vivem um momento de resgate, por serem identificados com o peronismo.
Assim, Walsh tornou-se exemplo de mártir dos anos 1970 nesses anos kirchneristas. Essa revalorização é importante por permitir traduções com apoio oficial do governo argentino. Por outro lado, porém, a complexidade do personagem se beneficia pouco de edições como essa, cujo enfoque é apenas o aspecto literário, isolando-o de sua trajetória cheia de nuances como guerrilheiro.
Mais que em outros países, na Argentina é impossível separar a literatura da política.
A MÁQUINA DO BEM E DO MAL E OUTROS CONTOS
AUTOR Rodolfo Walsh
TRADUÇÃO Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni
EDITORA 34
QUANTO R$ 44 (240 págs.)