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    Crítica: Narrativa enfadonha de Boyne retrata longevidade sem brilho

    LUIZ BRAS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    15/03/2014 03h30

    Adiar indefinidamente a velhice e a morte é o desejo supremo dos seres pensantes. Nos mais ajuizados, esse desejo é secreto. Só nos mais ambiciosos e atrevidos ele se manifesta abertamente.

    Pertencem ao segundo grupo os cientistas que trabalham com engenharia genética e nanotecnologia. Seu objetivo é aumentar nossa expectativa de vida para 200, 300 anos. Algo que, na literatura, sempre foi comum.

    A busca pela imortalidade já aparece no mais antigo texto literário conhecido, a "Epopeia de Gilgamesh", de uns 40 séculos atrás.

    A longevidade também é a principal característica de Matthieu Zéla, protagonista de "O Ladrão do Tempo", de 2000 — romance de estreia do irlandês John Boyne, o aclamado autor de "O Menino do Pijama Listrado" (2006).

    Matthieu nasceu em Paris em 1743. Aos 15, após o enterro da mãe e a execução do padrasto, que a espancara até a morte, o rapaz decide viajar para Londres, levando a tiracolo o meio irmão, Tomas.

    No final do século 18, Matthieu descobre que parou de envelhecer aos 50 anos. Mas logo o espanto dá lugar à aceitação. A longevidade não lhe parece uma clausura insuportável. O único fato que o perpétuo senhor não consegue aceitar é a morte prematura das pessoas amadas.

    No início do século 21, Matthieu não é mais um pobre coitado. Depois de acumular e perder dinheiro inúmeras vezes, tornou-se, aos 256 anos, um grande acionista de uma importante rede de TV.

    Outro fenômeno estranho é o que ocorre com Tomas e seus descendentes, todos do sexo masculino, todos batizados de Tomas. Cada vez que um novo Tomas é gerado, o anterior encontra a morte.

    A principal ocupação de Matthieu, nesse tempo todo, é cuidar dessa amaldiçoada linhagem de sobrinhos.

    "O Ladrão do Tempo", apesar da condição excêntrica de seu protagonista e dos muitos Tomas, não entusiasma. A narração enfadonha de Matthieu consegue reduzir a espantosa longevidade a uma experiência sem brilho.

    Faltou a John Boyne a ambição e o atrevimento dos tecnocientistas e dos biotecnólogos. Ou dos ficcionistas menos convencionais.

    "O Ladrão do Tempo" propõe reflexões simplórias sobre permanência e morte. Comparado ao conto "O Imortal", de Jorge Luis Borges, e a outras obras sobre o tema, o romance de Boyne perde feio.

    Faltou ao romancista sujar as mãos e expor as entranhas do efêmero e da matriz assassina do tempo. Algo que Oscar Wilde, no perverso "O Retrato de Dorian Gray", e Virginia Woolf, no visionário "Orlando", não se recusaram a fazer.

    LUIZ BRAS é crítico literário e escritor, autor do romance "Sozinho no Deserto Extremo" (Prumo)

    O LADRÃO DO TEMPO
    AUTOR John Boyne
    TRADUÇÃO Henrique de Breia e Szolnoky
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 54 (568 págs.)
    AVALIAÇÃO regular

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