A escritora Ruth Guimarães morreu às 14h desta quarta (21), aos 93 anos, em Cachoeira Paulista, cidade onde nasceu. Ela havia sido internada pela manhã por complicações geradas pela diabetes no pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia São José, na cidade do interior paulista.
O velório acontece na casa da escritora em Cachoeira Paulista, a 212 km de São Paulo, e o enterro será realizado nesta quinta (22), às 10h, no cemitério municipal da cidade de Cruzeiro.
Se fosse solicitado a Guimarães definir o que é "ser caipira" —o que sua obra tem feito há mais de 60 anos—, certamente ela não diria que é algo relacionado à geografia. Como com Guimarães Rosa, para quem o sertão é o mundo", também para ela "ser caipira" era uma condição antes espiritual e ontológica do que exclusivamente regional.
Eduardo Knapp - 26.jan.11/Folhapress | ||
Retrato da escritora Ruth Guimarães, em 2011 |
Afinal, a autora, uma espécie de poeta oficial do Vale do Paraíba, também fez filosofia na USP —e foi orientada por Roger Bastide, a quem chamava de "Bastidinho"—, escreveu para diversos jornais do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, foi amiga pessoal de Mário de Andrade e a primeira escritora negra a obter repercussão nacional, em 1946, com o romance "Água Funda".
Além disso, foi empossada, aos 89 anos, como membro da Academia Paulista de Letras, em 2008. São todas atribuições cosmopolitas, sem dúvida. Mas Ruth Guimarães Botelho e sua literatura são a demonstração de que caipirice e cosmopolitismo não são termos necessariamente excludentes.
Nascida em 1920, veio para São Paulo aos 18 anos, onde estudou na Faculdade de Letras e Filosofia da USP, com gente como Soares Amora, Fidelino de Figueiredo e Silveira Bueno, dentre os maiores profissionais especializados em língua portuguesa da época.
Estudou folclore e antropologia com nomes como Mário de Andrade e se tornou revisora e tradutora de editoras como a Cultrix, onde trabalhou muito próxima a José Paulo Paes. Antonio Candido, de quem ela se tornou amiga, prefaciou seu primeiro livro, "Água Funda".
Mas, mesmo diante de tamanha proximidade com a intelectualidade urbana, Ruth não quis abrir mão de suas raízes negras e caipiras, negando-se a se estabelecer na cidade, em que tantos caminhos se encontravam abertos. Voltou ao Vale do Paraíba, onde se dedicou, ao longo de toda a vida, à educação e à pesquisa dos costumes, lendas e folclore negros e do interior de São Paulo e onde escreveu cerca de 20 livros.
Com admirável capacidade de simpatia humana e artística, a sra. Ruth Guimarães teceu-a com a própria concepção do caboclo: à maneira do primitivo, para este nada na vida tem causalidade lógica; o mundo é povoado de forças misteriosas, que precisam ser aplacadas; cada doença, cada desgraça, é fruto de mau olhado.
Em "Água Funda", perpassa, tema constante, a fatalidade das pragas, das maldições e dos feitiços. Todos, como Sinhá Carolina, marcham para a sua tragédia com inflexível precisão: "é questão apenas de tempo para os homens morrerem de tiro, veneno de cobra, desastre; para as mulheres se perderem", Antonio Candido escreveu no prefácio ao seu primeiro livro.
Quase 70 anos mais tarde, ainda era a concepção mágica do real, só que no seu caso temperada de forma única pela racionalidade e pelo conhecimento da literatura universal, que povoa sua obra e a torna original, sem deixar de ser caipira.
"Porque a terra é redonda e nossa vida também é, a gente dá duas voltinhas e vai parar na Grécia. Que culpa temos nós de que a sua filosofia seja tão profunda e poderosa, tão arguta e sábia, que nos revelou a nós mesmos, e revelou as sociedades a si próprias com uma dolorosa verdade?"
Assim é que a autora, "dando voltinhas", misturava a Grécia a sacis, perfazendo uma literatura cronística, poética e romanesca, sem deixar de ser "contação de causos", recuperação de nossas raízes negras, chegando, inclusive a críticas ferinas à política atual: "Li um bocado nos jornais e fiquei inspirada a respeito de resolver ou não essa história do PAC e outros assuntos congêneres. E essa balela de transformar pobreza em classe média? Então o que estamos vendo é o treinamento do consumidor para o desfrute do inútil. (...) O que é necessário combater? A satisfação do pobre dentro de uma pobreza patrocinada."
Dificilmente um teórico economicista poderia diagnosticar com mais contundência um fenômeno que muitos —dos vários arcos que compõem a esquerda e a direita— vêm tentando descrever.
Ruth Guimarães teve noves filhos, escreveu romances, contos, poesia, palestras sobre educação, política, cultura, fez crítica literária, escreveu para alguns dos jornais mais importantes do país —publicou crônicas semanais para a Folha durante os anos 1960— e era membro da Academia Paulista de Letras.
Mas, para muitos, permanece anônima, principalmente nas grandes cidades. Certamente não no Vale do Paraíba, onde é um nome fundamental. É um caso a se pensar e, mais ainda, a reparar. Ela deixa quatro filhos e quatro netos.
Colaborou CESAR SOTO, de São Paulo
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Veja abaixo a bibliografia de Guimarães:
- "Água Funda", Edição da Livraria do Globo (1946)
- "Filhos do Medo", Editora Globo (1950)
- "Mulheres Célebres", Editora Cultrix, (1960)
- "As Mães na Lenda e na História", Editora Cultrix (1960)
- "Líderes Religiosos", Editora Cultrix (1961)
- "Lendas e Fábulas do Brasil", Editora Cultrix (1972)
- "Dicionário da Mitologia Grega", Editora Cultrix, (1972)
- "O Mundo Caboclo de Valdomiro Silveira", Livraria José Olympio Editora/Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do Estado de São Paulo/Instituto Nacional do Livro (1974)
- "Grandes Enigmas da História", Editora Cultrix (1975)
- "Medicina Mágica: As simpatias", Global Editora (1986)
- "Lendas e Fábulas do Brasil", Círculo do Livro (1989)
- "Crônicas Valeparaibanas", Centro Educacional Objetivo/Fundação Nacional do Tropeirismo, (1992)
- "Contos de Cidadezinha", Centro Cultural Teresa D'Ávila (1996)
- "Vestuário", Donato Editora Ltda.
- "Esta é a Segunda Carta que lhe Escrevo", in "Cartas a Mário de Andrade". Organização Fábio Lucas, Editora Nova Fronteira (1993)
- "Água Funda", com prefácio de Antonio Candido, Editora Nova Fronteira (2004)
- "Calidoscópio - A Saga de Pedro Malazarte", JAC Editora (2006)