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    Empresário que comprou hospital Matarazzo fala sobre centro cultural

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    09/09/2014 02h00

    Em seu escritório no segundo andar de um sobrado em São Paulo, em frente ao antigo hospital Matarazzo, o empresário francês Alexandre Allard mostra uma pulseira que ganhou de índios do Acre.

    "Quero vender isso aqui por R$ 1.000", sorri. "Isso vai comprar a liberdade desses índios, alimentar a aldeia inteira."

    Na visão de Allard, 45, o homem que comprou o antigo conjunto de prédios onde funcionou o hospital Umberto 1º até os anos 1990, a "cultura é um investimento" e "criatividade pode ser vendida", tanto que ele quer transformar o lugar num shopping, centro cultural e hotel de luxo.

    Essa ideia de cultura como motor do capitalismo parece orientar a mostra que Allard exibiu a convidados na semana passada e que será aberta ao público nesta terça, espalhando obras de arte pelas velhas alas do hospital.

    Bruno Poletti/Folhapress
    Alexandre Allard em frente à obra de Arne Quinze no hospital Matarazzo
    Alexandre Allard em frente à obra de Arne Quinze no hospital Matarazzo

    Na antiga lavanderia, Artur Lescher criou um trabalho que faz chover dentro do espaço. Há outras salas cheias de raios laser e fumaça, além de bichos de tecido gigantescos da portuguesa Joana Vasconcelos.

    É uma combinação de artistas famosos e trabalhos feitos para causar espanto, na tentativa de devolver a vida a um conjunto de prédios que ficou fechado por duas décadas.

    Financiada em parte com recursos incentivados –cerca de R$ 3,2 milhões dos R$ 15 milhões que Allard diz ter gastado–, a exposição despertou protestos de artistas, que a viram como truque publicitário para legitimar um shopping.

    "É uma exposição feita com dinheiro público para validar um projeto imobiliário", diz Maurício Ianês, artista que desistiu de participar da mostra.

    Cildo Meireles, que também declinou o convite de Allard, disse que "se soubesse que seria um projeto imobiliário, teria feito mais perguntas".

    "Estamos gastando dinheiro, investindo numa assinatura poderosa, mas não fazemos isso para vender nada", diz Eduardo Machado, diretor do grupo Allard no Brasil. "É uma exposição mecenas. Claro que ela tem a ver com nossas pretensões, mas não queremos vincular uma coisa à outra."

    No caso, a exposição é só a ponta mais visível de um investimento de R$ 1,4 bilhão, que envolve a construção de um hotel de 20 andares desenhado pelo francês Jean Nouvel e uma loja de departamentos, que venderá de artesanato indígena a biquínis de grife, gerando renda estimada de R$ 1,6 bilhão ao ano.

    Mas a construção disso tudo ainda precisa ser aprovada. A pedra no sapato de Allard é que o hospital Matarazzo é tombado como patrimônio histórico e qualquer intervenção ali tem de passar pelo crivo do poder público.

    Desde que comprou o terreno por R$ 117 milhões há três anos, o empresário tenta liberar o projeto. Em fevereiro deste ano, o Condephaat, órgão estadual de defesa do patrimônio, mudou o tombamento do conjunto, permitindo a demolição de um dos edifícios para erguer a torre de Allard.

    "Tivemos de criar uma máquina gigantesca para fazer dialogar vários grupos com visões distintas", conta o empresário. "Mas todo mundo que passa tempo com a gente acaba apoiando. Quanto mais você investiga essa história, mais se apaixona por ela."

    SENHOR MUITO LEGAL

    De fato, Allard é sedutor. Nádia Somekh, presidente do Conpresp, órgão municipal de defesa do patrimônio, que também mudou suas restrições a intervenções no hospital, comprou logo a sua ideia.

    "Esse senhor é muito legal", diz Somekh, falando sobre Allard. "Ele quer valorizar a arte brasileira. Nós não somos vendidos aos interesses imobiliários. Se isso pode trazer geração de riqueza, é do interesse da cidade."

    Mas nem todo mundo concorda. Embora elogie o projeto de restauro sugerido por Allard, o historiador Francisco Alambert, ex-integrante do Condephaat, critica o uso da exposição para promover um shopping. "É uma espécie de Cirque du Soleil do mercado imobiliário", afirma. "O dinheiro público financia um evento de interesse privado, que só usa a arte contemporânea como um espetáculo."

    Na espetacular festa de abertura da mostra, aliás, não faltaram celebridades. Gilberto Gil, Luciano Huck, Angélica, Letícia Spiller e Reynaldo Giannecchini deram as caras.

    Carlinhos Brown, acompanhado pelo artista Vik Muniz no reco-reco, fez até um show intimista na antiga lavanderia, enquanto VIPs disputavam tacinhas de espumante.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Artistas plásticos, mesmo os que levantaram a voz contra o projeto, também foram à balada. "Não podemos achar que há algum lugar puro, virgem para expor", diz Nino Cais, que está na mostra. "Não vou ficar lá fora imaginando o que acontece aqui dentro."

    Mas muito além das "dezenas de milhões de dólares" em arte contemporânea que adornam as alas do hospital, Allard pensa no show business como aliado de seu projeto e fala em criar um "centro de criatividade" no shopping.

    Depois que o Banco do Brasil desistiu de instalar uma nova sede de seu centro cultural paulistano no complexo de Allard, por considerar a ideia "desvantajosa", o empresário quer criar estúdios de música e cinema que serão alugados.

    "Não estamos aqui para pendurar telas nas paredes", diz Allard. "Se você quer que o Emicida trabalhe com o Kanye West, vai ser aqui. Mas se isso vai custar R$ 12 milhões, preciso ganhar dinheiro."

    Nesse ponto, Allard se compara aos Médici em seu apoio a Michelangelo na Renascença. "Não inventei nada", diz. "A verdade é que cultura é investimento e precisa gerar retorno, mas não vejo brasileiros vendendo cultura, transformando isso em business."

    CRONOLOGIA

    1904

    Começa construção do complexo hospitalar; novos pavilhões foram sendo erguidos até os anos 1970

    1993

    Hospital vai à falência e é vendido para a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil

    2007

    Grupo Allard faz primeira oferta pelo terreno e seus imóveis, mas donos recusam proposta

    2011

    Terreno é vendido ao grupo francês por R$ 117 milhões após acordo com moradores e governo

    2013

    Condephaat, órgão estadual de defesa do patrimônio, faz audiência para alterar tombamento

    2014

    Governo muda tombamento de 1986, permitindo demolição de um prédio e construção de uma torre

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