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    Ministério Público move ações para devolver peças de Aleijadinho a MG

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A MINAS GERAIS

    13/10/2014 02h00

    Uma santa chama mais a atenção do que as outras na sala dedicada a Aleijadinho no Museu da Inconfidência, na cidade mineira de Ouro Preto. Seguranças cercam a Samaritana sempre que alguém tenta chegar perto.

    Essa é uma das mais de 600 obras de arte sacra que foram recuperadas em ações do Ministério Público de Minas Gerais na última década.

    Desde que entrou para o poder público há 13 anos, o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda adotou como missão quase obsessiva a recuperação de imagens que sumiram de igrejas barrocas.

    Muitas delas, em especial do escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1737-1814), acabaram nas mãos de colecionadores privados. Eles são alvos da promotoria, que proclamou uma espécie de guerra santa contra donos dessas peças.

    Em alerta, muitos venderam suas coleções, e agentes do mercado de arte afirmam que valores –um bom Aleijadinho chega a valer R$ 4,5 milhões– estão em queda por causa das apreensões.

    "Pessoas choram até hoje em razão da subtração dessas imagens", diz Miranda, em seu escritório no centro de Belo Horizonte.

    O caso mais recente é a apreensão do busto de são Boaventura, uma peça de Aleijadinho esculpida entre 1791 e 1812. A imagem avaliada em R$ 1,2 milhão e já exposta em Paris, Moscou, Lisboa e no Guggenheim, em Nova York, pertenceu a João Marino, colecionador morto em 1997 que formou um dos maiores conjuntos de arte sacra no país.

    Herdeiros de Marino tentam reaver a peça, que foi parar na reserva técnica do Museu Aleijadinho, em Ouro Preto, por ordem judicial.

    De acordo com a promotoria, o busto pertencia à igreja de São Francisco de Assis e é para lá que deve voltar caso o órgão ganhe a ação.

    INTERPOL DAS PARÓQUIAS

    "Não tem nada de heroísmo nisso. Meu trabalho aqui é sério e técnico, tudo muito pé no chão", diz Miranda.

    Ele conta que conduz agora cerca de cem investigações atrás de imagens barrocas em todo o mundo e que já encontrou santos escondidos até em caixas d'água. Também conta que criou uma base de dados com fotos de santos procurados, uma espécie de Interpol das paróquias.

    Arregalando os olhos, Miranda diz que "cada bem cultural tem corpo e tem alma". "O corpo é só o objeto, a alma é o valor cultural. Você pode ser proprietário do corpo, mas o valor cultural pertence à coletividade."

    Miranda tem usado uma tese jurídica no mínimo inusitada, invocando uma lei da época do Império, assinada em 1830 por dom Pedro 1º, segundo a qual a propriedade da igreja fazia parte do patrimônio da monarquia -a lei não está mais em vigor.

    "Se ele emplacar essa tese maluca, acabam as coleções de arte sacra no Brasil", diz Pedro Bicudo, neto de Marino e advogado de defesa da família. "Isso abre um precedente perigosíssimo. Uma coisa é recuperar peças roubadas, outra é começar a perseguir as coleções privadas."

    Miranda lembra que só vai atrás de peças de culto coletivo, ou seja, de pelo menos meio metro de altura, e de antes da proclamação da República, em 1889, alegando a tese de que até então tudo era propriedade do Estado.

    "Não estamos criando nenhuma lei nova. Os comerciantes e colecionadores vivem no mundo do risco, sabendo da possibilidade desses bens terem procedência ilícita", afirma Miranda.

    Na opinião do professor de filosofia do direito da USP Ari Marcelo Solon, ações do tipo conduzidas pela promotoria mineira configuram "violação dos direitos patrimoniais" e a tese ancorada na lei imperial não se sustenta.

    Enquanto a briga corre na Justiça, Miranda adverte colecionadores incautos. "Só deve temer o Ministério Público quem tem algo a esconder", diz o promotor. "Mas não existe nenhuma caça às bruxas." Só aos santos.

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