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    Primeira guitarrista brasileira toca com crianças em bairros da periferia

    CARLOS BOZZO JUNIOR
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    11/11/2014 17h05

    A paulistana Lucinha Turnbull, 61, alcunhada de "primeira guitarrista brasileira", vai e volta do trabalho de "bus", como ela se refere aos ônibus.

    Seu "trampo" é na Associação Meninos do Morumbi, para onde vai duas vezes por semana utilizando duas conduções para ir e duas para voltar ao bairro do Pacaembu, onde mora.

    Há três anos, ela toca (sem revelar o quanto ganha) ao lado de crianças e adolescentes moradores de bairros afastados do centro de São Paulo, como Paraisópolis, Vila Sônia, Jardim Jaqueline, Real Parque e Caxingui, entre outros. O objetivo do trabalho é utilizar a prática musical como uma forma de criar alternativa às drogas e à delinquência juvenil.

    Taurina legítima, Turnbull parece afirmar, pela tradução do próprio nome (vindo do pai escocês), ser uma pessoa forte a ponto de "virar touro", e como gado ser transportada anonimamente nos ônibus lotados que circulam na capital, mas sem se incomodar.

    "Tenho carteirinha, não pago mais passagem e utilizo o assento de idosos", disse a artista, que há muito deixou de pintar os cabelos.

    "Aprendi a dirigir, mas esqueci. Minha única reclamação é que à noite e final de semana não tem ônibus. Sábado eles tiram 40% da frota e domingo, 60%. Isto é um maltrato com a população", disse, ressaltando que "a vantagem é que na hora do trânsito pesado você passa fácil e rápido pelos corredores, enquanto as pessoas estão neuróticas e paradas dentro de seus carros".

    Turnbull já experimentou drogas, mas não faz uso delas e raramente ingere álcool. "Sou fraca para isto", justificou.

    Simples e completamente descomprometida com o glamour que rotula seu nome, a instrumentista parece carregar uma espécie de herança conceitual dos tempos de adolescente, quando integrava sua primeira banda, a Capops (Cagando e Andando para a Opinião Pública).

    Carlos Bozzo Junior
    A paulistana Lucinha Turnbull, 61, considerada a primeira guitarrista mulher no Brasil
    A paulistana Lucinha Turnbull, 61, considerada a primeira guitarrista mulher no Brasil

    PARCEIRA DE RITA LEE

    Durante o trajeto de ida para o trabalho, que dura cerca de 30 minutos, o ônibus foi ficando cada vez mais cheio, até atingir a ocupação total. A instrumentista, que com cinco anos cantou o jingle dos biscoitos Aymoré em uma propaganda de TV, já está acostumada.

    Quando adolescente tietou, entre outros, os Mutantes e os Beatles. Chegou a beijar a tela suja de uma sala de cinema paulistano onde era projetado o filme "Help!" (1965), que tem os britânicos no elenco.

    Dos Mutantes tornou-se amiga e, em 1972, fez o show de abertura do grupo no Teatro Oficina. Mais tarde, formou uma dupla com Rita Lee (Cilibrinas do Éden), e em 1973 atacou de guitarrista e vocalista ao lado dela, no grupo Tutti Frutti.

    No ano seguinte, ganhou da extinta revista "POP" o prêmio de melhor guitarrista rítmica, porém não quis receber a condecoração. "Acho que mais por susto que por rebeldia. Hoje aceitaria", diz.

    Em 1975, tocou em uma festa na casa de André Midani —então presidente da gravadora PolyGram. A performance surpreendeu um dos convidados: o guitarrista Eric Clapton. No mesmo ano, namorou o diretor e dramaturgo Antonio Bivar e atuou no musical "Rocky Horror Show", no já demolido Teatro das Nações, substituindo a irmã de Sonia Braga, Ana, no elenco.

    Turnbull ainda integrou o Trio Bandolim onde tocavam o violonista Péricles Cavalcanti, 67, e o baixista e produtor Rodolfo Stroeter, 57, na época ainda menor de idade.

    Em 1977, fez vocais no LP "Refavela", de Gilberto Gil, e em "Refestança", com ele e Rita Lee. A guitarrista também colaborou nos álbuns "Cinema Transcendental" (1979), de Caetano Veloso; "Babilônia" (1978), de Rita Lee, e "Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira" (1979), de Moraes Moreira.

    Em 1979, lançou um compacto simples pela gravadora Odeon. De um lado uma balada, na qual tocava guitarras com som de violinos. Do outro lado, a marchinha "Ói Nóis Aqui Traveis", dos radialistas Joseval Peixoto e Geraldo Blota, com arranjo de Gilberto Gil e intervenções faladas pelos atores Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Lidoca e Sandra Pera. "Isto antes de a Blitz existir", comentou a artista, que lançou em 1980 "Aroma", seu único LP.

    ENTRE ANÔNIMOS

    Embora tenham "trampado" bastante juntas, Turnbull não tem mais contato com a primeira dama do rock nacional, Rita Lee. "Sabe aquela coisa de amigos da escola que com o passar dos anos perdem o contato? Foi a mesma coisa", explicou.

    Ao retornarmos de seu trabalho, sexta-feira, por volta de 22h, descemos em um ponto da avenida Paulista. No local, em uma limousine, garotas bebiam e faziam selfies do lado de fora do teto solar do enorme veículo. Na calçada, um "nóia" maltrapilho murmurava frases desconexas.

    "Que contraste, hein?" observou a instrumentista, que toca muito, mas sem se tocar que talvez o maior contraste seja ela própria em meio a passageiros ilustremente desconhecidos.

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