A porta para a casa de Michael Keaton estava escancarada. Do lado de dentro, o ator —Batman duas vezes e Beetlejuice uma— aparece vindo da cozinha para me receber, em uma imaculada camiseta branca, shorts cáqui e tênis.
"Aceita um chá?", ele oferece. Agradeço e recuso. "Mesmo? Sou meio irlandês. Para mim é estranho não servir chá a um convidado".
Ele me mostra sua sala de visitas, em tons de bege, na casa em Pacific Palisades. Sobre a mesinha de centro, um livro sobre pescaria, escrito por seu amigo Thomas McGuane, com quem Keaton costuma pescar em Montana, onde o ator tem uma casa. No canto da sala, um piano meia cauda, usado por Sean Douglas, compositor e seu filho.
Valerie Macon/AFP | ||
O ator Michael Keaton que estrela "Birdman or the Unexpected Virtue of Ignorance" |
Nas paredes, paisagens e fotografias discretas. Keaton coleciona arte, especialmente imagens esfumaçadas da metade do século 20, com temas americanos.
Hoje em dia, seu trabalho fotográfico pode ser visto no Instagram —imagens em close de jogos de beisebol, da vida rural e de safáris. Estúdios de cinema e seus colegas de elenco não são presença tão frequente.
"Minha vida é grande", diz Keaton, se acomodando em uma poltrona. "E sou curioso sobre muita coisa". Os fãs também sentem curiosidade sobre o percurso desse artista versátil, que ganhou fama nos anos 80 e 90 por seu trabalho em comédias, dramas e filmes de super-heróis, antes de aparentemente desaparecer das salas de cinema.
Enquanto isso, Keaton, conhecido pela oscilação de suas preferências e pelas recusas frequentes a ofertas de papéis, estava alegremente instalado em Montana, escondido sem que precisasse se esforçar para isso. Agora, seu talento está ressurgindo.
Em "Birdman or the Unexpected Virtue of Ignorance", uma comédia de humor negro que estreou em 17 de outubro nos Estados Unidos, ele interpreta um ator de filmes de ação cuja carreira está em decadência mas que deseja tentar um retorno. Alguns paralelos com sua vida são intencionais. Apesar da oposição de um alter ego, o super-herói Birdman que serve de título ao filme, seu personagem espera recapturar o prestígio artístico ou ao menos um vislumbre daquilo que o levou a atuar, para começar.
No filme, os resultados desse esforço são menos que satisfatórios. Do lado de lá da tela, porém, a situação é bem diferente. "Birdman", dirigido e co-roteirizado por Alejandro Iñárritu, estreou sendo aplaudido de pé nos festivais de cinema de Veneza e Telluride, e ficou com prestigiosa sessão de encerramento do Festival de Cinema de Nova York.
Narrativamente complexo e tecnicamente audacioso, o filme já está atraindo o tipo de crítica que conduz a favoritismo na disputa do Oscar.
O filme é um metacomentário sobre os percalços da fama, ambição e ego, mas propicia a Keaton, 63, um papel audacioso que pode definir sua carreira. "É raro que você tenha a chance de participar de uma experiência maravilhosa como essa", diz. "O filme tem um lado sinistro e um lado engraçado, e por isso você vive se equilibrando sobre a prancha, tentando encontrar o balanço certo. Gosto disso, gosto de tentar descobrir se tenho a capacidade necessária".
No papel de Riggan Thompson, um ator que no passado tinha músculos e muito mais cabelo, ele adapta, dirige e estrela uma adaptação para o teatro de "What We Talk About When We Talk About Love", famoso conto de Raymond Carver.
O filme o acompanha nessa trajetória, muitas vezes em closes espiralados, enquanto o projeto se desmantela pouco a pouco; seus colegas de elenco na Broadway, Edward Norton e Naomi Watts, são um casal da elite do teatro e Emma Stone interpreta a desbocada filha e assistente de Thompson.
Ao longo da história, a voz e a imagem de Birdman (também Keaton, em plena glória uniformizada) surgem para fazê-lo recordar impiedosamente de que um dia foi celebridade. "Quando terminei de escrever o roteiro, sabia que Michael não era uma possibilidade ou opção: ele era o cara para o papel", diz Iñárritu, cineasta conhecido por trabalhos como "Babel", "21 Gramas" e "Amores Perros".
Ele disse que o ator tinha o alcance emocional e o charme de um homem comum, necessários para contrabalançar as mudanças de humor e o narcisismo de Thompson. "Ele é um dos poucos homens do mundo a ter vestido aquela capa", disse o cineasta, em referência aos filmes de Keaton como Batman, em 1989 e 1992.
"A autoridade e a acessibilidade que ele oferece são cruciais", mas quando eles se encontraram para jantar e discutir o projeto, "a primeira coisa que ele me perguntou foi se eu estava tentando zombar dele", relembra Iñárritu. Duas garrafas de vinho mais tarde, o diretor havia conquistado a confiança de Keaton.
"Quando estou trabalhando, meu Birdman, meu ego, cresce muito", disse Iñárritu. "Pode me elevar, mas 30 minutos depois me destrói. É um tirano".
Ele prossegue, explicando: "Meu processo criativo é assim. Dou dois passos à frente e três para trás, e depois começo a amar o produto". Foi só pouco antes do filme com Keaton, acrescenta, que ele aprendeu a administrar suas dúvidas internas, "e é por isso que fiz o filme". "Birdman" funciona como uma sátira aos bastidores do teatro (entre os personagens há um amargo crítico teatral do "New York Times") e como ataque muito bem informado sobre a vida e as hierarquias de Hollywood.
Norton vê temas universais no filme: "Todo mundo procura aprovação", ele disse. "Todo mundo chega a um dado momento em sua vida no qual sente ter se desviado da visão que tinha para si mesmo, em momentos anteriores e mais idealistas". (Ele também vê claramente a marca de Iñárritu em seu personagem, e por isso pediu ao figurinista do filme que copiasse as roupas do diretor. Na capa de seu roteiro, como guia temático, Norton escreveu uma citação de Dorothy Parker: "Basta arranhar um ator que logo abaixo da pele você encontra uma atriz". Ele observa que "se você arranhar um diretor, encontrará três atrizes por sob sua pele".)
Iñárritu concebeu "Birdman" inicialmente como curta-metragem, para revelar a vida interior estreita e autorreferente de um homem atormentado pelo próprio ego, e planejava filmar a produção em um take só. O longa, escrito com Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris e Armando Bo, foi concebido como se transcorresse em uma única e longa tomada -um labirinto visual e emocional que os personagens e os espectadores precisam desvendar (e do qual precisam escapar).
Filmado em parte no St. James Theatre, em Manhattan, o filme contou com a colaboração de Emmanuel Lubezki, diretor de câmera premiado com o Oscar por "Gravidade", e requereu ensaios exaustivos. "Não há improviso, nenhum", diz Iñárritu. Os atores e a equipe, percorrendo os intermináveis corredores dos bastidores do teatro, tinham de respeitar rigorosamente as suas marcas, para que a câmera pudesse circular em torno deles nas cenas longas e contínuas.
Cada cena foi gravada diversas vezes —ai do ator que errasse uma fala aos seis minutos de uma longa cena— mas os movimentos de câmera eram coreografados cuidadosamente, o que deixava pouco espaço para a interpretação e ainda menos opções de corte para os editores. (Em um dos cenários de bastidores, criado em estúdio, os corredores se tornavam progressivamente mais estreitos, a fim de mostrar as paredes do mundo de Thompson se fechando sobre ele.)
No começo do trabalho, Iñárritu mandou ao elenco uma foto de Philippe Petit atravessando na corda bamba o espaço entre as torres gêmeas do World Trade Center, com o texto: "Pessoal, é esse o filme que vocês estão fazendo: se caírem, caíram". Para Keaton, que sempre se esforçou em seu trabalho como ator para não se concentrar na posição da câmera, era como interpretar de modo reverso.
"Houve momentos, para ser honesto com você, em que parávamos para perguntar por que ele estava rodando o filme daquele jeito, porque ele simplesmente não fazia um filme como é costume fazer", conta. "Em termos práticos, eu tinha de me manter trancado. Um trabalho muito rigoroso, o mais difícil que já fiz".
Disso derivou um trabalho de rigor matemático da parte do elenco, incluindo Zach Galifianakis, que contraria seus personagens habituais (lembra dele em "Se Beber Não Case"?) ao interpretar o sensato empresário de Thompson, e Amy Ryan, como sua ex-mulher.
Quando assistiu ao filme, diz Norton, ele ficou impressionado com o desempenho "seco" de Keaton, que inclui o uso de perucas nada lisonjeiras e uma corrida canhestra por Times Square.
"Michael foi fundo, ali", disse ele. "Não amaciou. Não era um daqueles trabalhos que tentam ser fofos para conquistar o afeto do espectador. Ele não hesita em retratar o sujeito que realmente jogou fora tudo de melhor que teve na vida".
Keaton disse que não foi por acidente que "Birdman" chegou a ele agora. Parte do processo se deve à sorte, e "parte envolveu esforço meu para que a coisa acontecesse", ele conta, ao procurar mais trabalho, o que ele vem fazendo recentemente agora que o restante de sua vida - família, casa -parece bem acertado.
Ele não disse não ter gostado do personagem, mas "não posso dizer que não existem cenas em que me identifiquei com ele", disse, especialmente com relação à histeria do super-herói e as consequências que isso acarreta.
Adam McKay, que dirigiu Keaton em "Os Outros Caras", comédia estrelada por Will Ferrell, o define como muito astuto e naturalmente engraçado, de um jeito imprevisto. "Ele é um cara confiante e bonitão, que tem autoridade, mas traz também esse vislumbre hilariante de neurose que parece existir por baixo de tudo", disse McKay. "Ele é um cara que poderia ser o sargento liderando um pelotão colina acima, mas ao final do combate perguntaria aos soldados se tudo correu bem, se ele fez seu trabalho direito".
Keaton começou como comediante stand-up, e tem o hábito, comum aos atores, de interpretar todos os papéis nas histórias que conta - para o que seu rosto expressivo e suas sobrancelhas de Jack Nicholson parecem perfeitos. (Keaton contou que Nicholson é seu amigo, imitando-o passavelmente.)
O sol da tarde estava se pondo ao final de nossas duas horas de conversa - "irlandeses falam demais", Keaton definiu - e ele estava discorrendo sobre sua infância, perto de Pittsburgh, onde cresceu fascinado por westerns e comandando as brincadeiras de seus amigos nos quintais do bairro.
Ele estudou um pouco para ser ator - conhece as técnicas de Meisner, Strasberg e Uta Hagen, segundo Susan Batch, que ocasionalmente dá aulas de interpretação a Keaton - e seu primeiro grande sucesso veio na comédia "Corretores do Amor", de 1982. Depois, ele passou a buscar papéis inesperados, um hábito que manteve ao longo da carreira.
Keaton admite ter aceito alguns trabalhos de baixa qualidade em Hollywood, atraído pelo dinheiro fácil, quando estava criando o filho - que agora tem 31 anos.
Enquanto esperava por uma mudança de gosto no setor de entretenimento, o ator se dedicou a outras coisas, como uma série sobre pesca para o Outdoor Channel, com McGuane e o jornalista Tom Brokaw, e um blog na ESPN sobre seu amado time de beisebol, o Pittsburgh Pirates.
Comparado a outros astros, "ele é um cara diferente", diz McGuane, o escritor, cujos amigos em Hollywood incluíam Marlon Brando e Steve McQueen.
"Ele optou por fazer muitas coisas que nada tinham a ver com o cinema". Talvez tenha sido isso que manteve seu Birdman sob controle. "Meu pai sempre me dizia que, se você encontrar o sucesso, deve só prová-lo e cuspir sem engolir, porque é algo de realmente venenoso", afirma Iñárritu. "Acho que isso é algo que Michael conheceu. E não acredito que venha a se deixar afetar demais" pelo entusiasmo quanto ao filme.
Quanto aos rumores de que "Birdman" estará entre os favoritos ao Oscar, Keaton diz: "O que acho a respeito? Acho que há galinhas e há ovos". Não importa qual seja o papel, ele acrescentou, recorrendo a uma metáfora esportiva para descrever sua carreira, "sempre jogo como se estivesse perdendo".
O filme "Birdman..." estreará no Brasil em 22 de janeiro de 2015.
TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI